Absolver Michel Foucault?

Absolver Michel Foucault?
O filósofo francês foi acusado pelo escritor Guy Sorman de abusar de crianças tunianas nos anos 1960 (Foto: AFP)

 

Em 28 de março, somos surpreendidos por uma publicação do jornal O Globo que nos fora divulgada pela amiga e pesquisadora Barbara Rodrigues Barbosa, da UNIFESP, sabedora de nossa atenção à importância do pensamento de Michel Foucault. Trata-se da matéria “Escritor afirma que filósofo Michel Foucault abusou de meninos na Tunísia”.

Guy Sorman, um ensaísta de 77 anos, alegou ao The Sunday Times e ao programa de TV Ce Soir que o pensador francês abusava de crianças de 8 a 10 anos em Sidi-Bou-Saïd, na Tunísia, no final da década de 1960. Afirmou igualmente que isso não deve “cancelar” Foucault – como se diz atualmente –, nem mesmo levar a rejeitar sua obra, mas a “vê-la de maneira diferente”. Sorman declarou, por fim, que reprova a si mesmo pelo fato de, na época, não ter denunciado Foucault à polícia.

É importante compreender a ocasião em que a alegação de Guy Sorman vem à tona. Trata-se da publicação de seu novo livro, Mon dictionnaire du bullshit, no final de fevereiro deste ano, cujos exemplares de segunda mão já são mais numerosos, nas livrarias de Paris, que os novos. Para nossa surpresa, é no verbete “pedofilia” que o autor menciona o nome de Foucault e apresenta originalmente sua acusação.

Antes de mais nada, é preciso destacar que a referida delação se situa num quadro mais amplo, descontextualizado por Sorman: o debate em torno de uma carta aberta, dirigida à comissão de revisão do código penal francês, da qual podem ser lidos excertos na edição do jornal Le Monde de 23 de maio de 1977.  Seu conteúdo questionava o regramento legal a respeito da idade de consentimento sexual na França, mais precisamente no que concernia ao critério discriminatório que estabelecia idades distintas de consentimento para relações homo e heterossexuais. A carta, redigida pelo escritor Gabriel Matzneff*, reúne 69 signatários, dentre os quais estão Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Louis Althusser, François Châtelet, Roland Barthes, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, Christiane Rochefort e Michel Foucault. Longe de fazer apologia à pedofilia, a carta aberta, que tinha por foco a autonomia da criança, se insere no horizonte de inúmeras intervenções públicas.

Isto posto e considerando que a grave denúncia de Sorman é realizada anos após o hipotético crime e com inquietante serenidade, decidimos analisar sua matéria.

Guy Sorman menciona ter se reunido com Michel Foucault na Páscoa de 1969, em Sidi-Bou-Saïd, onde, segundo Sorman, o pensador residia. Como observado por Philippe Sabot e por Judith Revel, para constatar o disparate da declaração, basta recorrer à cronologia da vida de Foucault redigida por Daniel Defert, seu companheiro. Ela está disponível em duas versões: a primeira, de 1994, presente na coleção Dits et écrits, reeditada em 2001, e a segunda, de 2015, na edição de escritos de Foucault para a coleção Pléiade. Já na primeira versão, lê-se acerca do mês de outubro de 1968: “No dia 27, no barco que o traz de volta a Marseille, Foucault é informado da morte de Jean Hyppolite.”. Logo, na Páscoa de 1969, Michel Foucault já havia regressado à França. Entretanto, busquemos reconstituir detidamente a circunstância de seu retorno, de modo a não nos restringir ao testemunho de Defert, ainda que ele nos bastasse.

Edgard Faure, então Ministro da Educação de Charles de Gaulle, propõe a abertura de uma universidade experimental em Vincennes como resposta às manifestações estudantis de 1968. Helène Cixous é chamada a organizar o grupo de professores da instituição e, por sugestão de Jacques Derrida, entra em contato com Michel Foucault, incumbindo-o da direção do departamento de Filosofia, função que formalmente assume em dezembro de 1968.

O Centre Universitaire Expérimental de Vincennes – que, nos anos 1970, ganha a alcunha de Université Paris 8 – inaugura o sistema de diplomação por créditos. Até então, a licence francesa, como é chamada ainda hoje a graduação, era organizada em certificados. Os prédios são construídos às pressas e as atividades se iniciam em janeiro de 1969.

Contudo, não somente Vincennes reclamava a presença de Michel Foucault. Em março de 1969, é publicado A arqueologia do saber, livro em que explicita seus pressupostos metodológicos e que contribui para que, em 30 novembro de 1969, a criação de uma cátedra destinada a acolhê-lo seja defendida, diante da assembleia de professores do Collège de France, pelo epistemólogo Jules Vuillemin.

Desse modo, é possível asseverar que, em 1969, a presença de Michel Foucault na França era indispensável para a concretização de seus diversos projetos.

Por fim, sublinhemos dois dados relevantes. A denúncia de Guy Sorman, que ostenta a fantasia digna de um filme de horror – os hipotéticos encontros de Foucault com garotos ocorriam, segundo ele, no cemitério de Sidi-Bou-Saïd – emerge 52 anos após o suposto crime e 37 anos depois da morte do pensador. Ademais, ele alega condenar a si mesmo por, na época, não ter delatado Foucault à polícia.

Tomemos a fantasia por realidade, a conjectura por verdade: se Guy Sorman não denunciou um delito dessa gravidade naquela ocasião e preservou-o por tanto tempo, seria ele conivente com um criminoso ou partícipe nas violações? Nem um, nem outro. Não será preciso absolver Michel Foucault, nem mesmo Guy Sorman. Afinal, a acusação de monsieur Sorman não passa de um desprezível embuste com traços de marketing.

*Houve diversas versões de petições e de cartas abertas relativas ao mesmo tema naquele período. A carta mencionada neste artigo, assinada pelos pensadores listados e publicada na data citada, não fora a primeira versão redigida por Gabriel Matzneff com 69 signatários, mas uma posterior com ainda mais subscritores, dentre eles o próprio Matzneff.

Alessandro Francisco é doutor em Filosofia pela PUC-SP e pela Université Paris 8, em regime de Duplo Doutorado, pesquisador associado ao Laboratoire d’études et de recherches sur les logiques contemporaines de la philosophie (Université Paris 8) e professor de cursos de pós-graduação Lato sensu do UNIFAI.

Ivan Sampaio é doutorando em Filosofia na École Doctorale Sciences des Sociétés (Université de Paris) e na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP), em regime de Duplo Doutorado.


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