A alma militante de Daniel

A alma militante de Daniel
Daniel Defert e Michel Foucault (Reprodução)

 

“Toda liberação revela o impensado da injustiça que a precedeu – uma injustiça da qual é difícil de se sentir completamente inocente”. Com essa frase, Daniel Defert, mais conhecido por ter sido o companheiro por 25 anos de Michel Foucault, responde à primeira pergunta que lhe é feita nesse livro de entrevistas. Ele se refere aos três momentos nos quais a ideia e a experiência da “liberação” lhe provocaram uma “emoção violenta”: em 1945, com quase sete anos de idade, a liberação de sua pequena cidade, ocupada pelas tropas alemães; o fim da guerra da Argélia, com a assinatura do acordo de Evian, em 18 de março de 1962, quando já era um ativo militante no movimento estudantil de esquerda na França e aluno da prestigiada Escola Normal Superior Saint-Cloud e, finalmente, a aprovação da união civil entre homossexuais, já no final do século passado.

Não é por acaso, portanto, que os entrevistadores e organizadores desse livro o intitularam de Uma vida política. Desde cedo, quando ainda era aluno do ensino médio, em Lyon, a política passou a fazer parte integrante da vida de Defert. Por meio de seu colega Alain Rouquié, futuro especialista em assuntos da América Latina, tendo sido inclusive embaixador no Brasil de 2000 a 2003, ele descobriu não apenas Marx, mas também o “tripé da cultura estudantil de esquerda” da época: o France Observateur, L’Express e Les Cahiers du cinéma! Em 1960, já aluno da Saint Cloud, era o delegado de sua instituição junto ao cartel das Escolas Normais Superiores, que incluía, é claro, a mais conhecida e famosa, a da rue d’Ulm, onde Foucault, Bourdieu, entre outros, estudaram e Lacan, durante algum tempo, realizou seu seminário. Militou arduamente contra a guerra na Argélia, num momento em que a UNEF, União Nacional dos Estudantes Franceses, estava próxima do PSU, Partido Socialista Unificado, cujo líder era Michel Rocard, que foi, posteriormente, Primeiro Ministro da França entre 1988 e 1991. As rajadas fortes que antecederam o maio de 1968 o encontraram já com o seu doutorado em Sociologia em andamento, como bolsista na Fundação Thiers. Defert nos conta o estado de terror que antecedeu, em Paris, o Maio de 68. O aparato policial em nada se assemelhava ao que havia quando das manifestações contra a guerra da Argélia. Agora, a mobilização policial expressava, de maneira altissonante, a “insuportável” violência do Estado. Ou melhor, como o próprio Defert acrescenta mais adiante, retomando a palavra que ouvira de Foucault, não apenas “insuportável” mas, principalmente, “intolerável”. Foram os anos de engajamento na GP, na “Gauche Prolétarienne”, a “Esquerda Proletária”. Mas foi também o período da descoberta de outro “efeito liberador”, aquele provocado pelo “movimento de massa”, de tal modo que, para ele, o métier do sociólogo deixou de ser o daquele que “analisa o social” para se tornar o próprio “movimento de massa”.

Encontro com Foucault

Terminando seu período de estudo e pesquisa sob os auspícios da Fondation Thiers, Defert retorna a Paris, desta feita direto para Vincennes, a universidade experimental criada depois do movimento de 68 e para onde Foucault fora chamado a organizar o curso de Filosofia. Vincennes foi, segundo Defert, o “viveiro de todas as tendências do esquerdismo”, dentre elas, a que levou à criação do GIP, o Grupo de Informação das Prisões, por Foucault, Pierre Vidal-Naquet e Jean-Marie Domenach. A criação do GIP foi antecedida pela participação de Defert na OPP, “Organização dos presos políticos”, uma célula da GP, da qual um dos líderes foi Jacques Rancière. A advogada dos presos era Marianne Merleau-Ponty, a filha do grande filósofo. Tudo parecia como se a Revolução Cultural maoísta tivesse sua continuidade nas experiências militantes daquela época. A vitória de Pompidou, nas eleições subsequentes, colocou um fim nessa ilusão. Mas Defert continua afirmando a peculiaridade da GP, que não era leninista, mas marxista, que não era formada por um grupo específico, seja de estudantes ou de professores, mas que “se inscrevia no seio das massas”. Sua questão principal era sempre “o que pensam as massas”, questão que, para ele, teve o valor de “educação política”. Talvez por isso ele não relembre esse período com o gosto amargo de uma “revolução fracassada”, mas “como uma grande insurreição que modificou profundamente na nossa sociedade as relações de poder, de autoridade, de sexo e, finalmente, também as próprias relações entre as sexualidades”.

É bem verdade que o encontro com Foucault, em 1960, foi decisivo na vida de Daniel Defert. Sua relação com Foucault ocupa, em diversos momentos e aspectos, o centro dessas entrevistas. Mas não se trata, evidentemente, de declarações a propósito da intimidade de ambos. Muito menos do elogio desmesurado ou da declaração de subserviência intelectual. Muito pelo contrário: o companheiro de Foucault teve sua própria vida, seja como intelectual, seja como militante. Mas quando as questões ligadas à sexualidade aparecem, elas estão quase sempre vinculadas às questões filosóficas e políticas, que também estavam em curso no pensamento de Foucault. É claro que o pano de fundo dessa relação é também o milieu homossexual parisiense da década de 1960, em especial aquele que se localizava em Saint-Germain de Près, onde pontificava o Fiacre, a boate mais famosa da época, local onde, antes de conhecer Foucault, Defert conhecera Roland Barthes. E que também alcançava os famosos cafés “existencialistas” daquele bairro parisiense. As histórias da conturbada relação do casal emblemático da geração existencialista, Sartre e Simone de Beauvoir, passam a conviver com outras histórias e certamente, muito da polêmica entre Sartre e Foucault foi discutida ali, entre grupos diferentes, tanto politicamente quanto no que diz respeito à orientação sexual, em meio às elegantes mesas do Deux Magots e do Café de Flore.

Intelectual específico

Mas o GIP tinha uma ambição bem maior do que a OPP. Sua criação, para a qual as ideias de Foucault foram fundamentais, ao contrário da política tradicional, não visava se confrontar com a administração das prisões, mas sim de caucionar as pesquisas clandestinas feitas dentro delas, para que a própria voz dos detentos pudesse ser ouvida. Não se tratava portanto de “representar” os detentos, de “falar por eles” ou mesmo de apresentar propostas para “reformar” as prisões. O que se almejava era que os próprios detentos entrassem no jogo político, se apropriassem de suas regras e seus gestos, de tal maneira que, ao final, eles dispensassem qualquer intermediação. Era, portanto, necessário vencer o silêncio que aprofundava todas as formas de estigmatização. O intelectual é assim, nos diz Defert, apenas uma espécie de relais, de um dispositivo que recebe determinada informação e a retransmite, ampliando-a. É uma outra maneira de definir o que Foucault chamou, numa célebre conversa com Deleuze, de “intelectual específico”.

A doença e a morte de Foucault levaram Defert a enfrentar um outro desafio. Inteiramente desconhecida à época de seu aparecimento, envolta na adjetivação discriminatória de “câncer gay”, a AIDS provocou um deslocamento fundamental no modo de entendimento da sexualidade, colocando em questão os ideais libertários herdados de maio de 68. Quando Defert chega ao hospital no dia 25 de junho de 1984, a direção médica pretendia eliminar do atestado de óbito a menção à causa da morte de Foucault, o que estava absolutamente de acordo com os padrões franceses da ética médica. Para Defert, entretanto, esse apagamento parecia não honrar a própria vida e as posições políticas de Foucault. Como ele mesmo disse, a única maneira de honrar a memória de Foucault era, sem dúvida, “fazer alguma coisa”. A alma militante de Defert, mais uma vez desperta, o jovem estudante “revolucionário” volta novamente à tona e ele acabou criando a AIDES, primeira e mais importante ONG francesa de combate à nova e surpreendente epidemia. Na palavra AIDES, Defert superpôs a palavra francesa “Aide”, “ajuda” e “AIDS”, o nome em inglês da nova síndrome, também consagrado em português. Defert nos conta as peripécias, as dificuldades, os enfrentamentos, o trabalho intenso desde a panfletagem nos locais gays até a primeira grande peça publicitária, da sua presença nos congressos internacionais, mas também do árduo estudo para tentar compreender o que era a nova síndrome. Na França, é impossível pensar a questão do combate a AIDS, desde a prevenção até as formas de atendimento na rede pública de saúde, sem o trabalho desenvolvido por Defert, que foi homenageado em 1988, com a “Legião de Honra”, concedida pelo governo francês. Ao mesmo tempo, seu engajamento se dá aqui inteiramente sob a égide das questões levantadas por Foucault na História da sexualidade ou ainda nos inúmeros artigos que o filósofo escreveu para o Gay Pied, uma revista cujo nome o próprio Foucault escolhera. O “pé”, o pied, transforma-se aqui numa espécie de alegoria do movimento e do devir, para além do “gueto” e apontando para o “gozo”. Foucault dissera, a propósito, jogando com as palavras: “Para sair do vespeiro (guêpier) dos guetos”.

“A vida política” de Daniel Defert aparece nesse livro como uma espécie de sismógrafo de nossa história recente. Daí que ele se completa, na parte final, com um conjunto de textos do próprio Defert, dedicados, na sua maioria, às questões relativas a sexualidade,  homossexualidade e à AIDS. São textos que reúnem o ardor da militância a uma posição política muito clara, a uma filiação teórica muito precisa. Nesse sentido, Defert não é um comentador de Foucault, mas é alguém que, como poucos, soube manejar muito bem a “caixa de ferramentas” do próprio Foucault, na medida em que se encontrou diante de uma questão, de um problema – o das relações entre corpo, sexualidade e política, por exemplo – para os quais aquela “caixa” continha preciosos instrumentos. No geral bem-humorado, às vezes melancólico, mas sempre afirmativo do ponto de vista de suas posições políticas, Defert nos oferece uma espécie de testemunho, o testemunho de uma época, cujo espírito insurreto não pode ser esquecido.


ERNANI CHAVES é professor da Faculdade de Filosofia da UFPA


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