A política real, suas contradições e desafios

A política real, suas contradições e desafios
O doloroso século 20 nos brindou duas da maiores críticas à crença na capacidade educativa da política (Arte Revista CULT)

 

Nicolo Maquiaveli, o brilhante pensador florentino do início do século 16, por muitos considerado o pai do pensamento político moderno, defendia que o mundo da política tinha sua própria lógica e que, portanto, deveria ser tratado como algo descolado das preocupações morais do seu tempo. O estadista deveria buscar compreender as motivações reais pelas quais as pessoas atuavam no mundo para, assim, motivá-las, por meio de incentivos e coações, a agir de acordo com os interesses do estado. Consolidava-se então uma visão pessimista do comportamento político e consagrava-se a astúcia como a regra de ação.

Mais de dois séculos se passaram para que uma visão alternativa pudesse ser esboçada de modo contundente. De Montesquieu a Kant, passando por Rousseau, Locke e Voltaire, sofisticados e bem elaborados argumentos foram esboçados a fim que sustentar uma visão propositiva e pedagógica da atuação política. Ainda que imperfeitas, às instituições públicas caberia o papel de criar um espaço para a lógica do convencimento, pela qual maiorias seriam construídas via diálogo e a promoção de valores coletivos partilhados.

Herdeiro dessa linhagem, o marxismo e seus correlatos defendiam, ao longo do século 19, que a sociedade poderia ser aprimorada por meio do trabalho de base e da defesa de projetos comuns mais inclusivos, ainda que, se necessário, se aceitasse que uma mudança mais efetiva pudesse requerer a ação revolucionária. Reconhecia-se, assim, o papel da ação política real mas continuava-se na defesa da papel elucidativo da práxis.

O doloroso século 20 nos brindou duas da maiores críticas à crença na capacidade educativa da política. Do ponto de vista conceitual, o vasto cabedal reflexivo proposto pela psicanálise, e pelas várias visões filosóficas que dariam sustento ao que viria a ser conhecido mais tarde como pós-modernismo, dilapidaram a crença na racionalidade iluminista, recuperando, assim, a desconfiança na capacidade e mesmo no interesse de um esclarecimento possível dos atores sociais. Da mesma forma, no campo da política real, o nazismo e as outras modalidades de autoritarismo da metade do século confirmariam de vez o lado perverso e irracional da política. Seu contraponto viria, mas sob o preço da incomensurável dor sentida.

O pós-guerra foi, de fato, definido pela tentativa de retomada da lógica iluminista na sua maior expressão, qual seja, na construção de organismos de cooperação entre estados e na promoção da democracia liberal doméstica, pelo menos nos países centrais. Que a Guerra Fria tenha dificultado esse projeto não diminui a presença da crença na capacidade do aprimoramento do real. Para além da necessidade estratégica de contrapor o comunismo real, a criação da social democracia foi a melhor expressão desse entendimento.

Presenciamos, contudo, o que parece ser, cada vez mais, a erosão definitiva da visão dialógica e pedagógica da política. Números crescentes de eleitores não se sentem representados na lógica eleitoral liberal e partidos tradicionais passam por crises históricas ao redor do mundo. O populismo de direita, fenômeno por muito tempo não relevante na maioria dos países, cresce por meio da defesa da política do ódio e da segregação, categorias que apelam não às esferas racionais mas, sim, às emoções mais viscerais e inconscientes. Trump e Bolsonaro são expressões claras desse processo. Mas se catalizam bem tais dinâmicas em seus respectivos países, o apoio que recebem de grande número de eleitores é o que mais preocupa.

Não está claro se conseguiremos reconstruir projetos políticos comuns por meio do diálogo em contextos de mídias oligopolistas e de uma visão da política como espetáculo diário. Pode ser que não seja mais possível remendar a lógica eleitoral partidária e que tenhamos que pensar em transformações mais profundas na lógica de representação.

A médio prazo, isso demandará um enorme esforço de reconstrução das categorias de participação e cidadania, sem que saibamos se isso dará resultados. No plano imediato, no contexto brasileiro, onde não mais presenciamos a existência da institucionalidade democrática, temos mais do que nunca que transcender os limites institucionais e retomar o que é constitutivo de ambas as lógicas políticas, realista ou iluminista; qual seja, a noção de que maiorias são construídas no embate real das ruas, ambientes de trabalho, movimentos sociais, etc.

É urgente que deslegitimemos o golpe e a farsa da eleição em curso. Isso requer que o país pare e se recuse a aceitar o que está aí colocado. Se a crítica da visão iluminista nos ensinou algo é que, a curto prazo, os eleitores de Bolsonaro não serão convencidos do absurdo representado pelo seu candidato. Não se trata de falta de informação a respeito do obscurantismo do mesmo, mas sim da exaustão do modelo atual e da falta de uma visão propositiva alternativa.

No contexto atual, só Lula poderia ocupar esse espaço. Isso não virá por meio de recursos legais mas, sim, de números nas ruas. Isso nunca deixou de ser o cerne da política e, mais do que nunca, talvez seja o único que nos resta.


RAFAEL R. IORIS é professor de História Latino Americana e autor do Livro Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista. (Paco Editorial, 2017)

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