A infinidade de amores na dor de existir

A infinidade de amores na dor de existir
'Os amantes', de René Magritte (1928)
 
 
 

O desejo de saber o que o amor é esbarra com algo indizível. Assim, o que não pode ser dito e escrito converte o amor em “um mal, que mata e não se vê”, em “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei por quê” (Camões). Amar e saber o que é amar são coisas diferentes. Amar é um acontecimento que nunca se esquece; é inventar sentidos para a existência no mundo. Saber o que é amar é impossível, porque “quem ama nunca sabe o que ama; nem sabe por que ama, nem o que é amar” (Fernando Pessoa).

Diante da impossibilidade de saber toda a verdade, fala-se de amor. Isso é o que vem sendo feito há séculos. Platão, em O Banquete, retrata os lugares do discurso: o do amante e o do amado. Jacques Lacan (1901-1981) baseia-se no amor grego para articular o par amante-amado com a estrutura do amor. Aquele que experimenta a sensação de que alguma coisa lhe falta, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de sujeito do desejo (amante); aquele que sente que tem alguma coisa, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de objeto (amado). O paradoxo do amor reside justamente no fato de que o que falta ao amante é precisamente o que o amado não tem. Se Eros nasce de uma aspiração impossível, que é de dois fazer um, o ser humano inventa o mito do amor, sustentado na promessa de felicidade. E, enquanto isso não vem, o bem se transforma em mal, inaugurando uma escola de amor infeliz.

Freud e a teoria da sexualidade humana

Em O mal-estar na civilização, Sigmund Freud (1856-1939) adota a versão do amor que se encontra no poema “Sobre a Natureza”, do filósofo grego Empédocles (490-430 a.C.): Eros é uma força que tende para a unificação. Em As Pulsões e Suas Vicissitudes (traduzido em português por Os Instintos e Suas Vicissitudes), Freud cria o conceito de pulsão para construir uma teoria da sexualidade humana: as pulsões são os representantes psíquicos de estímulos internos, situando-se no limite entre o psíquico e o somático, e apresentam-se divididas em pulsões sexuais e pulsões do eu (pulsões de autoconservação).

As pulsões sexuais (oral, anal e genital), constituídas por quatro elementos (impulso, fonte, alvo e objeto), passam por quatro processos de transformação: reversão a seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, recalque e sublimação. A reversão a seu oposto caracteriza-se pela transformação do amor em ódio. Essa metamorfose se refere a um tempo arcaico, regido pelo autoerotismo (narcisismo primário), o qual é dividido em duas fases. Na primeira fase, as pulsões do eu e as pulsões sexuais têm o mesmo alvo, porque ainda não se separaram: é a satisfação autoerótica. Sob o domínio do princípio de prazer, constitui-se um eu primitivo, interessado pelo que lhe dá prazer e desinteressado do que lhe dá desprazer. Essa indiferença, nomeada de “repúdio primordial do eu narcísico”, inaugura o ódio.

Na segunda fase, o eu da realidade, transformado em eu do prazer purificado, realiza a distinção entre o fora e o dentro pela via da fantasia: o que causava desprazer e era odiado é expulso do próprio corpo, passando a constituir, então, o campo dos objetos; o que causava prazer passa a ser amado e, como tal, incorporado ao próprio corpo (eu do prazer). É importante ressaltar que a precedência do ódio sobre o amor está diretamente ligada às suas fontes: o ódio nasce sob o domínio do princípio de prazer e o amor inaugura-se no momento em que se constitui a pulsão. Do acoplamento do amor ao ódio resulta a marca primordial do amor, a ambivalência (amor/ódio).

Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução, Freud aborda o amor a partir da escolha de objeto. Todo ser humano tem dois objetos sexuais: ele mesmo e aqueles que desempenham as funções de alimentação e de proteção. Em função disso, temos duas escolhas: narcísica e anaclítica. Na escolha narcísica, ama-se o que se é, o que se foi ou o que se gostaria de ser. Aqui, o objeto é amado com a mesma intensidade que outrora o eu do prazer fora amado no autoerotismo. Na escolha anaclítica, ama-se a parte do eu que foi renunciada e transferida para o objeto, fazendo com que o objeto seja revestido das funções materna e paterna: a mulher que alimenta ou o homem que protege.

Freud retoma, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, a escolha do objeto amado pelos mecanismos de idealização e de identificação. A idealização caracteriza-se pelo engrandecimento do objeto e a identificação pela forma mais arcaica de laços afetivos com o objeto. Na idealização, o intenso investimento do eu no objeto implica não só o empobrecimento desse eu, mas também a sua ligação com o objeto, mesmo depois da perda ou do abandono.

A separação é vivida como dilaceração, fazendo com que o eu experimente a dolorosa sensação de que uma parte de si mesmo foi arrancada para sempre. Por sua vez, na identificação, a perda ou o abandono do objeto conduz à incorporação de suas propriedades pelo eu. Assim, na idealização, o objeto é colocado no lugar do ideal do eu, e, na identificação, o objeto é colocado no lugar do eu. Na idealização, ingressamos no reino da paixão, onde o amante, encantado pelo objeto amado, é levado à servidão sem limite. Na cegueira da paixão, o enamorado pode inclusive ser arrastado ao impulso do crime. A perda do objeto da paixão converte o amor em ódio, fazendo com que o desejo de posse se transforme em desejo de destruição.

Lacan e o amor como paixão e dom ativo

Lacan, em seu projeto de retorno à obra de Freud, faz questão de enfatizar que é preciso distinguir entre o amor como sentimento da paixão e o amor como dom ativo. O amor como paixão inscreve-se no plano das relações imaginárias, nível das relações especulares, em que as imagens do eu e do outro se confundem. O amor como dom ativo inscreve-se no plano das relações simbólicas, dimensão da palavra, cujo registro é o da verdade, da mentira, da equivocação e do erro. A paixão visa ao outro como objeto e o amor visa ao outro como sujeito.

Na paixão, exigem-se provas de amor. Mesmo que as provas sejam dadas, nunca o apaixonado se dá por satisfeito, porque não se trata de ser amado, mas, sim, de querer ser amado do modo pelo qual se imagina que se deva ser amado. Qualquer particularidade do outro amado tem de ser apagada para que se mantenha a fantasia de que de dois se faz um. Lágrimas são derramadas pelo que deveria ter sido e não foi. O fracasso de um sonho torna-se a causa do sofrimento de amor, o qual se transforma em ódio de si mesmo e do outro. Na paixão, amar é querer enviscar-se no objeto, capturando-o; odiar é querer desvencilhar-se do objeto, aviltando-o. Lacan afirma inclusive que “o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário”.

Não basta o exílio, a prisão, o assassinato; é preciso a injúria para denegrir o ser do outro odiado. Se não se pode eliminar a existência do outro odiado na linguagem, o caminho da difamação é a via pela qual se tenta associar um nome à indignidade e à vilania. Um terceiro elemento é acrescentado ao par amor-ódio: a ignorância. O desejo de não querer saber está para a paixão assim como o desejo de querer saber está para o amor. O amor como dom ativo está para além da fascinação imaginária, porque se dirige ao ser do outro em sua particularidade. Trata-se de um amor que se inscreve no regime da diferença, onde dois não fazem um, mas dois.

No Seminário 4: a Relação de Objeto, Lacan aborda outra modalidade do amor, aquele concebido como recusa do dom e situado em torno do que o objeto amado não tem. Três elementos entram em cena: amante, objeto amado e para além do objeto. O que se ama está para além do objeto. E o que estaria nesse além senão a própria falta? Justamente por isso, Lacan diz que o dom dado em troca não é nada: “o nada por nada é o princípio da troca”. Na dialética da recusa do dom, o sujeito sacrifica-se para além daquilo que tem. Então, amar é dar o que não se tem, e o acento está no amor, não no objeto amado. Esse acento comparece no amor cortês (o trovadorismo dos séculos 12 e 13), na concepção barroca de amor, em Fernando Pessoa etc. O que se ama é o próprio amor.

Lacan introduz, ainda, no Seminário 11, o conceito de sujeito-suposto-saber (SsS) no amor de transferência: “Desde que haja em algum lugar o sujeito-suposto-saber, há transferência”. A introdução de um sujeito-suposto-saber no amor de transferência não modifica a sua estrutura, que é a mesma da paixão. Por isso, ao amar alguém, suponho um saber; ao odiar a alguém, suponho um não saber (o saber que está em jogo é um saber sobre o desejo).

Há uma infinidade de amores. Mesmo assim, o amor não é a panaceia para a dor de existir, inclusive porque, como nos ensina um poema do século 16 atribuído a Camões (“Amor É Fogo que Arde sem Se Ver”), como se pode esperar paz, harmonia e felicidade nos corações humanos, “se tão contrário a si é o mesmo amor”?


Nadiá Paulo Ferreira é psicanalista e professora titular de literatura portuguesa do Instituto de Letras/UERJ.


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(8) Comentários

  1. A tentativa foi ótima, mas como psicóloga acredito que o texto poderia ter sido mais maleável (compreensível).

  2. Gostei da matéria e do teórico escolhido para falar de amor. Acredito que seja difícil para alguns entederem os termos e definições do Lacan, mas ao meu ver o texto abre possibilidades de busca de conhecimento sobre o mesmo.

  3. Concordo com a Camila. O objetivo do texto está ótimo mas a forma utilizada para explanar a idéia é de difícil compreensão para um leigo.

  4. Concordo com os comentários dos colegas acima. O texto realmente é bem escrito e bastante explicativo.
    Porém discordo de algumas críticas: afinal, saber o que é amar não é de fato impossível? A letra, segundo o próprio Lacan citado acima, não é a tentativa do humano tentar abraçar, capturar justamente o impossível? E esta mesma tentativa não será sempre falha? Então qual é a dificuldade do texto? 😉

  5. Comprei a revista e li quase todo dossiê. As matérias são ótimas mesmo, mas tem esse pequeni probleminha: se você é leigo mesmo, no sentido de nunca ter ouvido falar das teorias psicanalíticas ou filosóficas, por exemplo, fica meio boaiando. Mas, de qualquer forma, é um material e tanto, mesmo que mais “acadêmico”.

  6. “(amor/ódio)” Colocados assim em ambivalência mais parece termos religiosos do que científicos. Isto se lê já na introdução do texto, quando se afirma nada mais que ‘mais um’ paradoxo é o responsável pelo mal estar infinito da civilização, e, claro, nós, leitores, ficamos “mais uma vez” na esperança.
    O segundo bloco, dedicado a Freud, é uma repetição à exaustão do primeiro parágrafo, onde novamente se afirma o tal paradoxo, porém na tentativa vã/óbvia de apontar quem é/foi o primeiro, amor/ódio.
    No terceiro, sobre Lacan, vemos uma separação tanto na parte amor, quanto na parte ódio, dá-se o nome de paixão, onde então vislumbramos quem vem primeiro: o amor antes do ódio. E, mais à frente, coloca-se um novo aparte: a transferência, amor/ódio comumente relacionado a todo espaço psicoterapêutico, onde o paciente ama/odeia aquele que detém o saber que falta para a própria cura.
    Na continuação, olha que curiosidade, aponta-se que o nada é o resultado de todo desejo amoroso, tanto no fracasso quanto na satisfação, “Então, amar é dar o que não se tem, e o acento está no amor, não no objeto amado. (…) O que se ama é o próprio amor”. Ora, tem-se então uma revelação? Amor é uma doença sem cura!
    O que os leitores precisam fazer, pelo menos aqueles que acreditam, mesmo sem saber o que seja, no amor, é se levar por uma ou por outra variante: a cura, não desejar amar, ou a doença, desejar, porém sem jamais tentar chegar a amar. Uma receita pronta para evitar “em casa” ou ficar bem com suas próprias neuróses? Mas se engana que este embuste seja inconsciente, pelo menos no texto.
    Finalmente, o grande ás da manga, no último parágrafo, a autora afirma, redimindo-se, sem dúvidas, que no campo vasto do amor e seus objetos de desejo, não devemos depositar todas as nossas preocupações, o que então isto sim é uma maneira de enfrentar o mal estar da existência.
    Gostei muito deste texto. Um forte abraço, Nadiá Paulo Ferreira.

  7. Queria acrescentar uma ressalva ao meu comentário anterior, em respeito à revista, que merece todo elogio em questão de qualidade e emergência ao muito que nos falta, no Brasil: Obviamente a discussão fica aquém da questão se psicanálise merece ou não a categoria de conhecimento científico.

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