A ilusão melancólica
(foto: Bob Sousa)
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“Pois as verdadeiras lembranças não devem tanto explicar o passado quanto descrever precisamente o lugar onde o pesquisador tomou posse dele”.
Walter Benjamin, Imagens do pensamento.
O mais recente espetáculo da Armazém Companhia de Teatro, Brás Cubas, baseado no romance de Machado de Assis, investe, seja pela via da dramaturgia (assinada por Maurício Arruda Mendonça), seja pela da direção (a cargo de Paulo de Moraes), em um tipo de jogo discursivo e teatral que chama bastante a atenção por operar uma temporalização complexa, cujo efeito é expor os espectadores a uma mais do que bem-vinda presença perversa do bruxo do Cosme Velho. Perversa porque, etimologicamente, o escritor apresentado em cena em momento algum converte-se em uma figura redundante, protocolar, pitoresca, refém do imaginário difusamente sentimental por meio do qual o espectador comumente se relaciona com o maior homem de letras brasileiro do século 19.
A partir de três planos que se entrecruzam com muita habilidade, Brás Cubas constitui um exercício lúdico cuja prontidão crítica é notável. Aos dois primeiros planos presentes originalmente no romance – o da enunciação do defunto-autor e o dos enunciados narrativos vividos diretamente pelo protagonista – a dramaturgia vem acrescentar um terceiro, impregnado de um ilusionismo repleto de possibilidades de significação: é o próprio Machado de Assis – eloquente, vulnerável, delirante, assaz contemporâneo ao ano de 2024 – quem está em cena, interferindo sobremaneira no modo de recepção de sua mais famosa criação literária. Um Machado que, embora não se furte a assumir o papel de intelectual que a história do Brasil reservou a ele, aparece para nós sob uma forma muito original, vazada na mais pura sensorialidade. Em Brás Cubas, vemos Machado em cena, mas é ele quem olha para nós. De um lugar e de um tempo suscetíveis de se converterem no aqui-agora. Muito desse fenômeno se deve, sem sombra de dúvida, ao trabalho de Bruno Lourenço, cuja eletrizante atuação percorre a voz, a postura física e o estado d’alma com o qual o ator se lança sem amarras à performance.
Como um mestre de cerimônias pouco afeito a amenidades cordiais, Machado dá início ao espetáculo, falando veementemente da abjeção da escravidão. (A fonte utilizada foi o parecer do escritor, então funcionário do Ministério da Agricultura, sobre o desrespeito à Lei do Ventre Livre praticado pela classe senhorial do país.) Ao contrário do romance, em que o leitor é apresentado a um narrador cuja principal característica é a “filosofia ácida”, sim, mas “expressa de modo elegante e comedido, que faz da leitura uma experiência agradável”, como afirma Antonio Candido, a peça nos apresenta um autor enervado, exasperado, sanguíneo. Com apetite para o protesto e a indignação. A mesma indignação expressada posteriormente na cena em que o escritor se converte em um rapper moderno e presta homenagem ao sineiro da Igreja do Outeiro da Glória, um ex-escravizado doado àquela instituição religiosa em 1853, morto, sem pompa e circunstância, cerca de meio século depois e somente lembrado pela pena do escritor. A fonte aqui é uma crônica de 1900 na qual Machado atrela à notícia da morte daquele homem comum outros dois eventos mais ruidosos: a falência do Banco da República do Brasil e o terremoto que na ocasião abalou a Venezuela, traçando como de costume um retrato emaranhado, dissimulado, e contundente, do país:
“Porque a queda do Banco Rural, em si mesma, não vale mais que a de outro qualquer banco. E depois não há bancos eternos. Todo banco nasce virtualmente quebrado; é o seu destino, mais ano, menos ano. O que nos deu a ilusão do contrário foi o finado Banco do Brasil, uma espécie de sineiro da Glória, que repicou por todos os vivos […] Quanto ao terceiro caso triste da semana, o terremoto de Venezuela, quando eu penso que podia ter acontecido aqui, e, se aqui acontecesse, é provável que eu não tivesse agora a pena na mão, confesso que lastimo aquelas pobres vítimas. Antes uma revolução. […] As revoluções servem sempre aos vencedores, mas um terremoto não serve a ninguém. Ninguém vai ser presidente de ruínas. É só trapalhada, confusão e morte inglória. Não, meus amigos. Nem terremotos nem bancos quebrados. Vivem os sineiros de oitenta anos, e um só, perpétuo e único badalo!”
É esse espírito inconformado e ferino que surge na cena em que Machado se nos apresenta como um poeta da periferia a denunciar os (d)efeitos da cor sobre nossa esfarrapada sociabilidade. Um mano. Preto. Pardo. Brown.
Dirigido com muita perspicácia e inteligência por Paulo de Moraes, Brás Cubas configura-se uma experiência teatral que consegue ultrapassar o estatuto de admiração que professamos por um grande autor, e da atitude um tanto quanto tautológica que nos leva a querer somente confirmar a genialidade desse autor. Ao privar ao mesmo tempo da sensorialidade da figura machadiana, e de suas criações, e das imagens críticas que a literatura concebida por ele propõe, nós, espectadores, ultrapassamos o credo que devotamos a esse “medalhão” de nossa cultura literária. E o fazemos ao modo de um impasse. Não queremos mais apenas consumir o frasista inspirado, o cronista ameno do “absurdo à brasileira”, embora não saibamos lá muito bem como usufruir verdadeiramente esse autor que parece sempre muito maior do que o estatuto que lhe conferem, sempre à frente da sucessão de futuros que constantemente nos pegam de supetão e nos iludem. Arremedando a metáfora benjaminiana, Machado é a chama que incendeia a cortina por meio de cujas cinzas é possível vislumbrar a janela. (Aberta?). A um só tempo, ele é a flama, a cortina que se inflama e o resíduo incandescente. Do qual, então, rimos. Dessa trágica conflagração que nos assola diariamente desde a constituição do país não nos resta nada além da atitude derrisória? Machado nos alerta de que estamos sempre perdendo o jogo, mas nos contentando em obter, como prêmio de consolação, uma miríade de ditos espirituosos e anedotas de autodesmoralização.
O elemento biográfico também é explorado em cena, tratado com a devida liberdade criativa. O Machado golpeado pela morte de Carolina aparece na figura do capitão que conduz Brás à Europa, também desgostoso com a morte da mulher, que lhe inspira uns versos compungidos. Igualmente combalido surge o Machado com o qual o espetáculo se encerra. O homem intimidado pelas crises de epilepsia. No plano da narrativa dramática, o derradeiro Machado em cena irrompe diante de nós com medo dos sintomas da crise angustiante que vai levá-lo, primeiramente, ao delírio; depois, à morte. No plano da enunciação dramatúrgica, a imagem ganha em agudeza e crispação: Machado de Assis torna-se ele mesmo o sintoma do país delirante. Eis aqui um dilema inescapável: nosso modo de olhar de esguelha para o escritor e personagem contrasta com a maneira pela qual ambos, ao olharem de cima do palco para nós, nos obrigam a encará-los penetrantemente.
Brás Cubas confronta o espectador do século 21 com uma questão essencial: a da relação entre um objeto de culto do passado – a ser evocado, memorizado, desenterrado – e seu lugar de emergência nos tempos atuais. Quando tal objeto de outrora vem à superfície no aqui-agora, pensamos tê-lo apreendido. Mas melancolicamente algo dele nos escapa, em razão da quantidade de terra desperdiçada no ato daquela exumação. Tal qual em uma escavação amadora. Como afirma Georges Didi-Huberman, “Isto não quer dizer que a História seja impossível. Quer simplesmente dizer que ela é anacrônica”.
Há que se destacar a visível coesão do elenco na difícil tarefa de dar vida a personagens tão conhecidos. O Brás Cubas de Sergio Machado é um primor de composição, fruto da mistura de técnica e espírito cômico. Impossível não entrever um relance de Alonso Quijano em seu Dom Brás. Lorena Lima também se sobressai, seja pela adorável embusteira cuja paixão pelo protagonista durou onze contos de réis, seja pelas demais personagens coruscantes que defende, seja ainda pela bela voz com a qual interpreta os primeiros versos de It’s a long way, de Caetano Veloso, cantada em chave de réquiem. A propósito, a direção musical e execução instrumental de Ricco Vianna conferem à empreitada um conjunto de nuances emocionais; imaginativas; cômicas; às vezes, puramente estéticas – todas a serviço ora da cena, ora do som, ora do sentido. Isabel Pacheco e Felipe Bustamante não defendem personagens tão dardejantes; mas nem por isso deixam de explorar com muita segurança seu talento em cena. O único reparo, talvez, no quesito das atuações recaia sobre o estilo de narração adotado por Jopa Moraes, mais empertigado do que cínico; mais recreativo do que cético; mais afeito à blague do que à desfaçatez de classe. O ator não compromete a performance; mas cerca as possibilidades expressivas do narrador sem as atingir de fato.
A Armazém Companhia de Teatro resolveu tocar o dedo na putrefação de um cadáver ilustre, fazendo do teatro do Sesc Santo Amaro uma espécie de cova aberta, a partir da qual é possível olhar verticalmente o tempo. O tempo em cujas malhas as coisas se esfumaçam até nós as perdermos de vista. O tempo que nos enreda na inutilidade de nossas vaidades e ambições, com as quais perdemos muito tempo. Em Brás Cubas, o defunto-autor continua a usar a máscara da comédia, enquanto seu criador empunha a do drama. Machado está no palco de um teatro, o lugar onde é visto. Nós estamos na plateia, o lugar de onde assistimos. À comicidade do outro mal disfarçada em nossa própria melancolia.
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.
BRÁS CUBAS
Até 5 de maio
Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 18h
Sesc Santo Amaro – Teatro
Rua Amador Bueno, 505 – Santo Amaro – São Paulo (SP)
Duração: 110 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Ingressos: R$ 60, R$ 30 e R$ 18
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