A greve e o que significa ter direitos hoje
Os trabalhadores têm direito de greve, mas o que podem fazer com esse direito? (Foto Brayan Martins/ PMPA)
A forma como o Tribunal Superior do Trabalho tratou o anúncio de greve dos petroleiros é uma excelente demonstração dos limites da expressão “ter direitos”. Os trabalhadores têm direito de greve, mas o que podem fazer com esse direito? É sempre bom questionar, mesmo sabendo que sempre houve um fosso entre o texto generoso do art. 9º da Constituição (“É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”) e a realidade, a começar pela regulamentação trazida pela Lei 7.783/89, que levou poucos meses para mostrar que, neste tópico entre tantos, o futuro da chamada “Lei Maior” seria delimitado por espertíssimas “leis menores”.
Atendendo a pedido da AGU e da Petrobrás e afirmando que a greve tinha “uma pauta de cunho essencialmente político”, a ministra Maria de Assis Calsing fixou inicialmente uma multa diária de R$ 500 mil e, dias depois, aumentou o valor para R$ 2 milhões porque “o valor inicialmente arbitrado não se revelou suficiente a compelir o cumprimento da medida”. Além da multa para manutenção de todas as atividades, a ministra determinou a investigação de crime de desobediência e deixou margem para a responsabilização pessoal dos dirigentes sindicais. À sombra de martelo tão pesado, deu o resultado mais que previsível: fim da greve dos petroleiros.
Essa greve, desmontada pela decisão individual da ministra, havia sido aprovada, semanas antes, nos sindicatos que integram a Federação Única dos Petroleiros, seguindo todo o roteiro legal, mas a greve dos caminhoneiros, iniciada poucos dias antes da paralisação programada pelos petroleiros, fez pesar sobre esta categoria a pecha de oportunista. A ministra, aliás, qualificou a categoria como “despojada de toda e qualquer sensibilidade”, porque os efeitos da sua greve seriam a continuidade dos “efeitos deletérios” da greve dos caminhoneiros.
É um nó difícil de desatar, temos que reconhecer, ainda mais diante da conjuntura mais ampla, que envolve não apenas a sobreposição dos efeitos das duas greves, uma delas com fortes elementos de locaute, mas também a crise generalizada em que o país está afundando, os atos do “golpe continuado”, as tensões do ano eleitoral, a “reforma” trabalhista etc.
No entanto, o modus operandi do Judiciário no tratamento da greve dos petroleiros não é novo, não é fruto do momento especialmente complexo que vivemos da direita à esquerda, das instituições às ruas. Pelo contrário, remete à anulação – ou, como prefiro, domesticação – da força política dos trabalhadores que está no cerne dos direitos dos trabalhadores desde sempre. E é aí que aprendemos algo.
É bastante revelador, neste sentido, que o Judiciário, na apreciação do direito de greve, utilize a palavra política com acepção negativa. Política, aliás, em grande medida, é tudo o que o direito quer negar aos trabalhadores. Historicamente, o direito engole a força política que a organização dos trabalhadores pode ter, dentro ou fora dos sindicatos, e cospe normas (como não lembrar aqui do romance Agora é que são elas, de Paulo Leminski: “De normas, vocês sabem, o inferno está cheio”?). Assim o faz dentro de processos individuais ou coletivos, na regulamentação das atividades profissionais e sindicais, enfim, em toda e qualquer fresta pela qual pudesse vazar o poder de classe dos trabalhadores em oposição aos interesses do capital.
Num clássico sobre o tema, escrito em 1978 e recentemente traduzido no Brasil, A legalização da classe operária (Boitempo, 2016), Bernard Edelman explica esse processo de captura da força “selvagem” dos trabalhadores pelas instituições, de alto a baixo, criando uma linha de obediência que envolve Estado e partidos políticos, empresas e sindicatos, dentro das quais o trabalhador é uma peça a ser bem encaixada e politicamente neutralizada. Quando em greve, aparentemente o trabalhador se opõe a essa submissão ao poder do direito, mas, na verdade, apenas será considerado no uso legítimo (não abusivo) do seu direito de greve se comportar-se dentro dos limites que lhes são fixados pelas autoridades: “Qual é o estatuto do grevista, então? Ou bem uma máquina submetida à autoridade sindical, ou bem um bárbaro”.
É curioso notar, nas duas paralisações das últimas semanas, a dificuldade até mesmo para chamar de greve o que estava acontecendo. No caso dos caminhoneiros, a própria composição heterogênea da categoria (motoristas profissionais contratados de várias formas, proprietários de caminhões a serviço de empresas etc.) dificulta o encaixe no conceito jurídico de greve, totalmente mediado pela figura dos sindicatos e, não menos, pela estrutura da empresa. Daí que o ataque à paralisação não tenha sido feito pela via tradicional – o Judiciário. Exigiu, isso sim, a atuação direta do governo junto às lideranças parciais entre os caminhoneiros; a investigação policial contra os empresários quanto ao locaute; e a acusação de “baderna”, com uso de forças militares, contra todos os caminhoneiros que não se encaixassem numa e noutra hipótese.
No caso dos petroleiros, por sua vez, o trabalho de desqualificação da greve, desmobilização dos trabalhadores e criminalização das lideranças pode ser feito pelo Judiciário, não sem o apoio da mídia alinhada ao golpe e o impulso do governo, que vê sua sobrevida (e, portanto, a das tarefas destrutivas que ainda pretende realizar) comprometida a cada prova de resistência dos trabalhadores. Em meio ao clima de pavor gerado pelo desabastecimento em poucos dias sem circulação de caminhões, não era difícil ouvir nas ruas as pessoas acusando os petroleiros de oportunismo, com as mesmas palavras que a ministra do TST usou em sua decisão.
Foi ideologicamente bem-sucedido, portanto, todo o esforço para que nem os trabalhadores nem a sociedade em geral se reconhecessem num direito de greve mais amplo do que aquele que interessa, direta ou indiretamente, ao capital, porque, entre outras funções, mantém os trabalhadores funcionando mesmo parados e, no limite, acomoda as tensões decorrentes do constante arrocho da exploração.
Nesse ponto, é importante notar que o Judiciário, desde 1988, se dedica a fazer com que o direito de greve previsto na Constituição seja menos do que nossa boa vontade de intérprete à esquerda quer fazer possível. E isso não diz muito sobre o Judiciário. Diz muito, na verdade, sobre as expectativas bastante ilusórias que, à esquerda, temos (tenho?) alimentado sobre um direito que, tanto em textos legais mais “progressistas” quanto na sua interpretação “ativista”, poderia ser utilizado para afrontar o poder do capital e, no limite, criar condições para sua superação.
As lições que nossos tribunais têm dado sobre essas expectativas são duras o bastante para demover ou, no mínimo, silenciar mesmo o mais otimista dos defensores da “luta por dentro” contra o capital. O mais belo, claro e consagrado texto legal transforma-se em fumaça quando se bate contra a rocha dos interesses materiais do capital, representados nos mais variados setores e níveis da sociedade, mesmo por quem deles não se beneficia. Por outro lado, o mais falho, ilógico e injusto artigo de lei (p. ex., os da “reforma” trabalhista) ganha vida nos tribunais e nas empresas, batendo no dia seguinte como um martelo sobre a cabeça dos trabalhadores.
Ao refletir sobre as expectativas específicas do direito de greve a partir do texto constitucional, no confronto com o que dele tem sido feito pelos legisladores, juízes e mesmo trabalhadores, voltamos à indagação sobre o que significa, para a classe trabalhadora, “ter direitos”. Ter direitos, não apenas hoje, mas pela própria natureza do direito na sociedade capitalista, é estar adstrito a uma determinada forma de participar do jogo. Se o jogo, no todo, é político, ter direitos é fazer política dentro dos limites restritos que foram definidos, são fiscalizados e redefinidos a bel-prazer pelos donos do jogo. Sim, as regras do jogo só existem para – contra – os trabalhadores. São válidas em algumas situações, mas são deformadas ou surrupiadas quando necessário.
É sintomático que, ainda hoje, ao tratar do direito de greve, os tribunais se refiram à palavra política com o mesmo preciso desdém de Hans Kelsen, no capítulo final da Teoria pura do Direito (1934), ao explicar que a interpretação do direito é, mais que tudo, ato de vontade da autoridade que pode criar direito dentro ou mesmo fora da “moldura” dada pelo texto da lei. Kelsen, que não tinha nada contra o sistema, é singelo e cruel na apresentação das regras do jogo: dizer como os direitos devem ser interpretados é apenas uma tentativa de influenciar a criação do direito, portanto não passa de política – “tão-somente um juízo de valor político”.
Na decisão recente do TST sobre a greve, o que temos é a ilustração dessa verdade incômoda. Podemos passar horas a fio demonstrando que, a partir do texto constitucional, os petroleiros jamais poderiam ser compelidos a abortar o movimento grevista, mas quem detém o poder de decidir e, portanto, criar direito (no caso, uma multa diária de R$ 2 milhões!) já tem a sua “convicção” formada; se ela é científica ou não, se corresponde à lei ou não, se é justa ou não, podemos discutir infinitamente, mas os petroleiros terão que engolir a decisão. Se muito, podem tentar recorrer, mas devem lembrar que no STF, por exemplo, a conversa de bastidores e as declarações para a mídia coincidem, no geral, com os fundamentos daquela decisão…
Os trabalhadores estão de mão atadas? Sim e não, mas nunca estiveram longe disso. É ingênuo, diante do perfil majoritariamente conservador do Judiciário, acreditar que os protestos e greves que se fazem necessários para combater os golpes do golpe e a agenda neoliberal serão tratados “democraticamente” pelos tribunais (outro bom exemplo está na decisão sobre o acampamento Lula Livre, em Curitiba, sujeito agora a severas restrições de dias e horários).
No entanto, quando os trabalhadores constroem suas lutas contra os limites definidos pelo capital e seus representantes, têm a oportunidade de mostrar que “ter direitos” é algo que não cabe dentro dos autos judiciais. É nesse ponto que falar em direitos talvez se torne desnecessário e política pode voltar a ser uma palavra que abre caminhos, não o contrário.
TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.