A educação pela revolução
O que distingue o pensamento de Marcuse é o modo pelo qual democracia e revolução permanecem vinculadas
Wolfgang Leo Maar
A motivação política é permanente no pensamento de Marcuse. O que lhe confere atualidade é justamente sua participação numa luta ainda em aberto, o bom combate que todos nós travamos coletivamente contra a alienação que afeta as relações intra-humanas e com a natureza na sociedade capitalista contemporânea. A essência material dessas relações é o fulcro determinante da reflexão inovadora da teoria crítica da sociedade de Marcuse.
O que distingue o pensamento de Marcuse é o modo especial com que se relacionam democracia e revolução. Muito além de evitar que ambas se contraponham, ele até mesmo vincula democracia e revolução de modo essencial. Assim, no mesmo sentido em que se tornou habitual caracterizá-lo como filósofo associado à revolução, cabe em igual medida distingui-lo como pensador de um profundo compromisso com a democracia.
Ele publicou em 1964 O homem unidimensional – Estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Foi um extraordinário êxito, um dos livros mais importantes da década de 1960. Um best-seller de esquerda que, de Los Angeles a Tóquio, de Paris a São Paulo, vendeu centenas de milhares de exemplares conforme assinala Douglas Kellner, um dos editores da sua obra completa.
“Marx, Mao, Marcuse” era uma frase eloqüente inscrita em muitos muros da Paris de 1968 e mundo afora. Conforme aponta Eric Hobsbawm em O breve século vinte, segundo uma pesquisa de nomes de esquerda que apareciam em órgãos de imprensa nas décadas de 1960 e 1970, somente Che Guevara foi mais citado. Em seu livro Tempos interessantes o mesmo historiador relata como essa referência a Marcuse na mídia declinaria até se extinguir quase por completo a partir dos anos oitenta.
Previsões confirmadas
A ironia dessa história está em que o curso dos acontecimentos comprovou precisamente a previsão feita por Marcuse em seu livro de maior êxito entre os rebeldes de 1968. Isto é, que nos encontramos objetivamente numa formação social sem oposição. Sem oposição objetiva: pois as barricadas, afinal, eram do desejo; em outras palavras, eram sobretudo de uma forma social da subjetividade que, embora “objetivada” nos termos da sociedade vigente, na verdade carecia de base objetiva como agente de uma reconstrução social da sociedade para além das amarras perpetuadoras da dominação capitalista. Os apoios angariados pelos contestadores se dissolviam na unidimensionalidade das formas sociais vigentes de sujeitos pautados pelo existente. Mas os rebeldes eram mais do que unicamente os apoiadores de Marcuse: ao incensá-lo, demonstravam também que eram os objetos da análise de Marcuse, numa teoria que não era apenas sobre a história presente, mas era histórica, ou seja, examinava seu próprio contingenciamento contextual, as suas condições subjetivas e objetivas.
O nosso autor tinha algo a dizer ao presente naqueles anos de 1960 e 1970, algo cujo significado não deixou de existir a partir da década de 1980, apesar de o seu contexto de acolhimento passar a mudar radicalmente a partir de então. Afinal, 1980 seria a década de graves transformações nas formas sociais do sujeito social; uma de suas marcas seria o desaparecimento da importância dos novos movimentos sociais, agora integrados à sociedade vigente com a ampliação global do alcance das políticas chamadas de “neoliberais”. Estas se caracterizam pelo eclipse das políticas públicas de inclusão, em prol dos circuitos de intervenção social privada, que são garantidores do status quo, até mesmo pela exclusão dos que não se enquadram no âmbito da sociedade do consumo.
Marcuse também tinha algo a dizer sobre o futuro. Previu de certo modo o movimento de contra-reforma conservadora que varreu o mundo nas últimas três décadas. Nessa medida suas reflexões ostentam uma extrema e marcante atualidade, atualidade até mesmo crescente pois só hoje nos damos conta em toda sua clareza dos dividendos da “cultura afirmativa” denunciada pelo autor há mais de meio século.
Novos movimentos sociais
O potencial de transformação social não pode ser examinado adequadamente sem visar com igual perspicácia à contenção da transformação. Crítica e práxis necessitam um exame conjunto, ainda mais quando a práxis é estabilizadora. É necessário explicar justamente isso: como é que as novas formas de subjetividade sucumbiram na tarefa emancipatória que se atribuíam? Afinal o âmbito da atuação política, que antes se considerava restrito às classes em seu sentido tradicional no plano da economia, foi ampliado para uma luta geral contra a alienação capitalista; essa seria a marca dos novos movimentos sociais, desde os movimentos de estudantes, até o feminismo, os movimentos das minorias, a denúncia da barbárie militar no Vietnã etc. A leitura dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx feita por Marcuse logo após a publicação dos mesmos, em 1932, vai justamente nessa direção, a de um marxismo que, para além do economicismo vigente até então quase com exclusividade, tinha o que dizer a respeito da alienação dos homens em sociedade. Porém como os movimentos sociais constituídos sucumbiram na tarefa emancipatória que era sua razão de ser diante de uma sociedade que fez deles massas reprodutoras da própria alienação geral que se propunham a combater? Como a liberdade em sua forma social concreta terminou por ser veículo de estrita adequação ao existente? As múltiplas situações em que isso ocorre constituem o objeto da obra de Marcuse.
A civilização nos moldes capitalistas impõe uma cultura que pereniza e reproduz a mesma; por isso, aliás, Marcuse insiste na necessidade de haver uma re-determinação da cultura mediante uma teoria crítica da sociedade. Nos termos de A ideologia da sociedade industrial, a organização tecnológica da sociedade impede que sujeitos se organizem coletivamente com motivação crítica e em direção a uma práxis transformadora. Essa forma social afeta os próprios meios com que se realiza a experiência da sociedade. Assim “desaparecem” os novos movimentos sociais enquanto novos sujeitos políticos potenciais. Nesses termos a democracia convertida em técnica, seja de representação, de participação, de gerenciamento, constitui a forma social da sociedade que é o modelo de contenção da transformação. Ou seja: ocorre a conversão da sociedade em organização social e da política em técnica de administração da mesma.
Sociedade do warfare
A formalização da democracia nos termos de uma racionalidade tecnocientífica se impõe à sua substância humana: a contenção da revolução coloca em pauta a liberdade, a emancipação e a própria razão. No prefácio à Ideologia da sociedade industrial Marcuse afirma: “A nossa sociedade se distingue (das anteriores) por conquistar as forças sociais centrífugas mais pela tecnologia do que pelo terror, com uma dupla base: numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente.” A própria organização da sociedade converte-se em ideologia. Impõe-se portanto considerar liberdade, emancipação, razão no âmbito material organizativo. Apreender simultaneamente a democracia e a revolução possui justamente esse sentido: o de superar o plano meramente “idealista espiritual” da crítica – tal como, segundo Marcuse, ocorre na crítica “existencial” de Heidegger à técnica, totalmente insuficiente. A resposta prática precisa interferir no âmbito material sob pena de ser ilusória. Em seu famoso ensaio sobre a “tolerância repressiva”, Marcuse destaca sua crença na necessidade de recorrer a meios extralegais pelos oprimidos, se os meios legais esgotaram sua eficácia. Não se trata de um apelo à violência, mas sim de uma apreensão da violência que, a rigor, já se encontra institucionalizada como partícipe necessária da construção da realidade social em que nos inserimos. Afinal, conforme a obra marcuseana “a sociedade do welfare é uma sociedade do warfare”.
A reprodução econômica extravasa os limites da “economia”, para se erigir como totalidade no conjunto da formação social. A lição básica de Marx, pela qual cabe explicar “como os homens se alienaram pelo seu trabalho social”, como mediaram o trabalho nos termos do valor, constitui o eixo central da investigação marcuseana. A razão se vincula à revolução, porque a economia não basta para explicar a acumulação capitalista, que exige a política. A dominação do trabalho produtor de valores de uso pelo trabalho produtor de valor, só pode ser explicada politicamente, historicamente, socialmente, e não filosoficamente ou no plano da racionalidade científica. Cabe explicar a “racionalidade” dessa aparente irracionalidade, de que a filosofia no sentido tradicional não dá conta. Cabe verificar os momentos históricos congelados na filosofia, os momentos políticos presentes na acumulação. A “irracionalidade” capitalista tem uma racionalidade que precisa ser decifrada. Isso porque a formação social capitalista abrange a própria “razão”: a razão técnica formal se converte em ideologia ao se confundir com esta razão tomada como modelo ou até mesmo constituindo-se como norma da relação entre fins e meios. A formação social capitalista, uma forma determinada, se apresentaria doravante como sendo a sociedade. Essa fora a conclusão apresentada por Marcuse numa conferência sobre Max Weber no congresso da Sociedade Alemã de Sociologia e que instruiria a escrita de A ideologia da sociedade industrial.
Nexo da crítica com o engajamento prático
Nas contribuições de Marcuse existe uma simultaneidade de crítica e práxis. A presença da crítica não basta: ela corre o risco de evaporar como práxis subjetiva. A crítica depende de um nexo com a práxis objetiva. Por conta desse engajamento prático, existe quem considere que Marcuse seria um autor dúbio, orientado ao mesmo tempo por um pensamento crítico e por uma ação afirmativa, ao ser, por exemplo, um defensor da luta pelos direitos civis. Trata-se de um equívoco decorrente de uma inadequada compreensão do plano que confere sentido à luta pelos direitos civis. Os direitos civis correspondem a uma concepção substantiva dos direitos que formam a democracia, quando a mesma é apreendida no mesmo plano de sentido da revolução. Ou seja, quando a democracia é focada no âmbito de seu potencial para além da formalização a que foi subordinada conforme os moldes vigentes. O elogio à luta pelos direitos civis – luta destacada pela presença do filósofo na realidade norte-americana – representou para Marcuse o reforço necessário aos elementos embrionários materiais substantivos presentes nessas demonstrações coletivas, contrapostas ao esvaziamento formalista e meramente técnico dos fins humanitários, igualitários e libertários nas práticas vigentes. O que Marcuse valoriza em ações “extralegais” é o quanto elas podem significar para superar as práticas estabelecidas como verdadeiras “normas” no que se refere à relação entre fins e meios na cultura da sociedade tecnológica. Esse é o sentido da referência permanente à revolução na reflexão sobre a democracia. Os fins sociais não podem ser apreendidos como fins exclusivamente na sociedade vigente, pois terminariam por absorver a concretude pálida da mesma, sua formalidade vazia, meramente operacional, realizando e reproduzindo objetivos já realizados e que em nada se contrapõem à ordem estabelecida. Os fins seriam esvaziados como utopia, mas é no presente que a transformação precisa se apoiar. O “outro mundo aparece no mundo estabelecido”, pondera Marcuse. Como prática transformadora, a revolução, para ser uma necessidade objetiva e não uma mera utopia, precisa se apoiar nessas “aparências”, que não são ilusões, mas potenciais reais que podem se efetivar sob a ação de sujeitos coletivos.
Por essa sua perspectiva Marcuse declinaria de advogar por uma filosofia com intenção prática, uma teoria a que bastasse o momento negativo de uma “negação determinada”, como a de Hegel, por exemplo. Em seu lugar ele dispõe a negação como “grande recusa”, uma práxis assentada na e direcionada à realidade social material. A “grande recusa” é uma experiência crítica com intenção prática transformadora da realidade social. Essa experiência visa identificar as contradições da formação capitalista do presente na estrutura da vida cotidiana, em especial de quem vive do trabalho, e que são bloqueadas atualmente mediante a permanente criação de novas necessidades a serem satisfeitas no consumo da sociedade de massa. Assim como no caso da luta pelos direitos civis, essa “grande recusa”, ao fomentar a experiência da contradição entre necessidades “verdadeiras” e “falsas” ou consumistas, tem por alvo realçar as bases materiais como apoio para ações políticas transformadoras.
“Nova sensibilidade”
Além da constituição de necessidades, a própria forma da experiência subjetiva das mesmas seria afetada pela sociedade capitalista: o próprio modo pelo qual a realidade material afeta os sentidos não passa imune na forma social tecnológica da sociedade. Nessa medida Marcuse reivindica uma “nova sensibilidade”.
A substituição da negação determinada pela “grande recusa”, no plano da criação de novas e falsas necessidades que caracteriza a sociedade tecnológica, bem como a substituição da experiência esvaziada, que concilia os conflitos sociais, pela formação nos termos de uma “nova sensibilidade” apta a apreender as contradições efetivas, são ambas justamente a realização de fins vinculados com um modelo alternativo de sociedade. É preciso ter em vista uma sociedade alternativa substantiva, para que a realização dos fins possa ser uma necessidade objetiva e histórica e não uma eventualidade meramente subjetiva.
Para divulgar seu livro A ideologia da sociedade industrial, Marcuse escreveu: “Esse livro diz respeito a certas tendências básicas na sociedade industrial contemporânea que parecem indicar uma nova fase da civilização. Essas tendências engendraram um novo modo de pensamento e comportamento que corrói os fundamentos da cultura tradicional. Sua característica principal é a repressão a todas as idéias, aspirações e valores que não podem ser definidos nos termos das operações e atitudes validadas pelas formas vigentes da racionalidade. A conseqüência é a integração de toda oposição no sistema estabelecido”.
O nexo entre sociedade e cultura era essencial para Marcuse. Em um de seus ensaios mais perspicazes e atuais – “Comentários para uma redefinição de cultura” – escrito para complementar A ideologia da sociedade industrial, ele se detém na cultura como sociedade apreendida enquanto “vir-a-ser” e, por conseguinte, nos fins como realidades que não podem dispensar o contexto social para serem efetivos. Isto é: apreende a realidade humana como uma construção social e histórica que não pode dispensar uma determinada cultura. Reportando-se a Kant, Marcuse insiste em que qualquer educação não deve se voltar apenas para esta sociedade, mas para uma sociedade melhor. Trata-se de evitar pensar só na sociedade vigente, para pensar a construção da sociedade como uma verdade para além do existente hoje. Uma sociedade para além da dimensão em que se reproduz e pereniza. A prática de realização dessa sociedade verdadeira é, hoje, o que atende pelo nome de revolução.
Wolfgang Leo Maar é professor de filosofia da UFSCar , autor de O que é política (Ed. Brasiliense) e um dos tradutores da obra de Marcuse no Brasil