A calamidade

A calamidade
(Foto: Louisa Gouliamaki)

A guerra de bombardeio era a guerra pura, escancarada. Contrariando qualquer razão, seu desenrolar faz transparecer que (…) as vítimas de guerra não são um sacrifício necessário no caminho para se alcançar um objetivo, mas sim, no exato sentido da palavra, são elas próprias esse caminho e esse objetivo.
W.B. Sebald,
Guerra aérea e literatura

Quando a guerra acaba, quando os bombardeiros são recolhidos aos hangares, depois de feita a contabilidade dos corpos e iniciado o trabalho de reconstrução do que se tornou ruína, nós somos capazes de compreender a calamidade, de pensar sobre as suas motivações, celebrar os heróis. Mas quando se está às vésperas da calamidade, quando as más notícias e as tropas se aproximam, nós ignoramos o que está por vir e dividimos nosso tempo entre certa indiferença e os preparativos para o pior, entre as tarefas corriqueiras e presságios.

Não podemos dizer que a invasão russa à Ucrânia nos últimos dias de fevereiro de 2022 pegou todos de surpresa; as guerras não começam de um dia para o outro, ainda que os noticiários tenham se ocupado de inúmeros outros assuntos nos dias anteriores a 24 de fevereiro (o futebol, os novos modelos de automóveis elétricos, os escândalos roteirizados das celebridades). As tropas russas ultrapassaram as fronteiras ucranianas e, com isso, uma besta que habita os porões dos lares europeus começou a fazer ruídos, arranhar as paredes, exalar seu odor.

Nesses dias incertos, estou em Colônia, cidade histórica de mais de 2000 mil anos que fica na Renânia do Norte – reza a lenda que os restos mortais dos Três Reis Magos, Melchior, Gaspar e Baltazar, estão sepultados aqui, na Catedral. Há cerca de 80 anos, Colônia foi alvo da ira dos ataques aéreos que praticamente a varreu do mapa, ardeu em chamas, e aquele foi um dia que já não havia uma cidade, só escombros e corpos. É desta cidade que eu acompanho, atônito, os primeiros dias de um pesadelo que todos pensavam ter ficado no passado: o perigo de um conflito envolvendo os países europeus e potências nucleares. Eu sou um estrangeiro, um professor de filosofia que tentava driblar, até há duas semanas, os obstáculos da pandemia para concluir um projeto de pesquisa em um renomado centro de pesquisa na Universidade de Colônia enquanto assistia à distância, numa espécie de exílio voluntário, a própria calamidade brasileira.

Caminho pelas ruas de Colônia entre o Neumarkt e a gigantesca, bela e aterrorizante Catedral de Colônia. O frio em torno de zero grau afugenta das ruas as pessoas usualmente alegres e simpáticas. Somente as obrigações e necessidades dão razão para se arriscar na paisagem inóspita. As poucas pessoas com as quais cruzo pela Cäcilienstraβe parecem seguir suas vidas, usam o metrô e os ônibus, muito eficientes aqui, vão ao supermercado e fazem planos – ainda que a televisão e os celulares não deem trégua, alertando para a desgraça a Leste.

O caso é que existe aquela besta no porão, um rumor, um segredo familiar que escapa pelas frestas e revela, inconveniente, que não faz muito que esta mesma Colônia foi destruída pelo furor da humanidade, por uma força maior do que a Natureza, um Mal que não se encontra nem no Inferno. As bombas caíram sobre Colônia sem piedade, as chamas consumiram Colônia, corpos incandescentes correndo por essas ruas, os gritos de desespero. Nem os deuses foram capazes de semear tanta ira e descontrole em nome do Bem.

Os sobreviventes, até hoje, tentam agir como se tivessem sido bem-sucedidas na arte de seguir em frente e deixar o passado no passado. Não teria sido possível seguir adiante se além das penas pelos crimes do Reich, eles tivessem que manter vívida a imagem do aniquilamento. Querendo ou não, aqui a calamidade está presente, mas escondida sob o asfalto, por baixo dos prédios de um modernismo duvidoso, atrás das paredes do metrô. Tudo é resto e linguagem sobre escombros, a verdade, a dor está soterrada sob a assepsia, a higiene, a limpeza, tudo protegido pelo perfume e pela cordialidade.

Eu ainda caminho como um estrangeiro e estranho pelas ruas de Colônia. Posso ver nos passos claudicantes de uma senhora que ela procura seguir para algum lugar. Com movimentos rápidos e irregulares, levemente inclinada para a esquerda, eu estimo que ela tenha um pouco mais de 60 anos. E eu imagino que ela pode ter estado aqui, em Colônia, enquanto os alemães estavam reconstruindo a cidade devastada.

Ela sabe o que acontece depois da calamidade. Certamente seus pais viveram a guerra e muitos dos seus tios-avós sucumbiram à calamidade. Ela era uma criança e viu o que veio depois, ainda que seus pais mantivessem o aniquilamento como um segredo familiar vergonhoso. Ela deve saber o que uma guerra causa, mas, assim como eu, ela desconhece o que acontece antes, quais são os sinais de que as coisas vão piorar.

A mulher que continua na minha frente sabe que em algum lugar existem homens que estão cuidando das coisas – afinal esses homens estão conscientes de que uma guerra não traria benefícios para ninguém, não haveria vencedores, só sobreviventes sem pátria para a qual voltar. Esse pensamento talvez a tenha tranquilizado e ela decide ir a uma loja de departamentos que já começa a vender artigos da primavera. Porém, um outro pensamento lhe passa rapidamente pela cabeça protegida por um lenço colorido que destoa com o resto da sua roupa escura e cinza como a paisagem. Como eles deixaram as coisas chegarem a esse ponto? Crianças com os meus netos se arrastam para a fronteira, desvalidos, desesperados. E já não há como reparar muita coisa. É provável que esse pensamento a tenha perturbado e ela desista das compras por hoje e volte para casa para se preparar – mesmo que ela não saiba o que esperar. Uma bruma de notícias, versões, imagens, interpretações, discursos se torna cada vez mais densa, impenetrável. Aqueles que fogem já sabem, aqueles que foram trucidados já sabem. Ela, não.

Eu mesmo estou inquieto. Se as coisas piorarem eu não posso simplesmente comprar uma passagem de volta para o Brasil, dar de ombros e sentenciar: Essa é uma calamidade que pertence a vocês e só a vocês, isso não me diz respeito. Se as coisas piorarem é provável que não exista para onde escapar. E eu não falo apenas que não haveria um lugar para se esconder das balas e da radiação. Não haveria o lugar seguro para nos proteger da calamidade.

A mulher de passos deselegantes está convicta de que se faz a guerra para matar e destruir, e aquele que matar mais, que destruir mais e demonstrar que continuará devastando caso lhe aprouver, esse vence. Só com a calamidade é que a guerra se faz plena. Como disse W. G. Sebald, a existência de pilhas de cadáveres apodrecendo pelo caminho, a existência de escombros pelo caminho onde havia uma cidade não é um custo indesejado, é o próprio caminho.

Colônia, 06 de março de 2022.

Waldomiro J. Silva Filho é professor titular de Filosofia da UFBA e Pesquisador do CNPq. Atualmente é Pesquisador Visitante do Center for Contemporary Epistemology and the Kantian Tradition da Universidade de Colônia, Alemanha.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

TV Cult