A busca de unidade interior

A busca de unidade interior

A Consolação da Filosofia registra não apenas a consolação que Boécio recebeu da filosofia, mas também a que procurou oferecer a ela

Juvenal Savian Filho

O autor mais emblemático, na história da filosofia, para o tema da consolação é certamente Boécio (475-525), cuja obra de maior divulgação, aliás, intitula-se A Consolação da Filosofia.

A consolação, nessa obra, é apresentada em dois sentidos: aquela oferecida “pela” filosofia e aquela oferecida “à” filosofia. Como se diz em gramática clássica, toda a diferença está na partícula “da”, interpretada como genitivo subjetivo ou como genitivo objetivo. A Consolação de Boécio registra, assim, não apenas a consolação que ele recebeu da filosofia, mas também a que ele procurou oferecer a ela.

Consolação oferecida “à” filosofia

Com efeito, Boécio diagnosticava, em sua época – a fase final da desagregação do Império Romano –, um descaso com a atividade filosofia, ou, então, a manipulação e a dilapidação do patrimônio filosófico por parte de tendências que entravam na moda e saíam dela. Na obra escrita no cárcere, ele procura “consolar” esse patrimônio com um texto esmerado do ponto de vista literário e dotado de um conteúdo teórico que mantinha viva a herança clássica greco-romana.

É certamente em função dessa consolação que Boécio, nas primeiras páginas de sua derradeira obra, retrata a filosofia sob a forma de uma mulher, a dama Filosofia, cuja aparência, embora imponente, encontrava-se embaçada, e com vestes rasgadas por mãos violentas:

Apareceu-me uma mulher, acima de meu olhar. Seu aspecto era venerável; seus olhos, repletos de fogo, mais penetrantes do que podem ser os olhares humanos. (…) Suas vestes eram confeccionadas de fios muitos finos, trabalho delicado, matéria indestrutível; fora ela mesma quem as tecera. Podia-se ler, bordada na franja inferior, a letra grega Pi; e, no alto, um Theta. Entre essas duas letras, via-se como uma escada, com degraus que levavam da letra inferior à superior. Entretanto, sua indumentária havia sido rasgada por mãos brutais, que lhe arrancaram tantos pedaços quantos foi possível arrancar.

A imponência dessa mulher simbolizava a tradição filosófica greco-romana, incluindo os autores bizantinos antigos, bem conhecidos por Boécio. Quanto aos agressores, eles eram identificados como os ignorantes pretensiosos, os inimigos de Sócrates, alguns epicuristas e alguns estoicos.

Boécio não desvalorizava o estoicismo e o epicurismo em geral. Ele se punha, inclusive, em concordância com muitas teses dessas escolas. Mas via problemas nelas, como, por exemplo, a associação estoica entre a esperança e a infelicidade, ou a eleição epicurista do prazer como bem absoluto do ser humano. Esses modismos, somados à violência sofrida pela cultura clássica (em tempos “bárbaros”), estariam representados nas vestes rasgadas da dama Filosofia.

Para Boécio, apenas uma esperança ilusória seria causa de infelicidade (como, por exemplo, esperar justiça de um tirano), e o prazer seria apenas um bem relativo, nunca absoluto (o bem absoluto teria de ativar as capacidades racionais do ser humano, distinguindo-o dos outros animais). Numa palavra, a esperança autêntica deve ser lúcida, e o prazer, bem situado no conjunto dos bens humanos.

Esses exemplos apontariam para a elaboração da experiência prática, visando chegar à contemplação teórica da verdade sobre a existência: tal o sentido dos degraus que partem da letra pi (inicial de práxis, em grego) e levam à letra theta (inicial de theoría, em grego), bordadas respectivamente na parte inferior e superior das vestes da Filosofia.

Essa elaboração da prática, vazada em elementos platônicos, aristotélicos, cristãos e neoplatônicos – com pivô e ápice na Felicidade –, molda a consolação “da” Filosofia e denuncia o que, para Boécio, constituía formas de pensamento fáceis e sedutoras, porém equivocadas e autoilusórias.

Consolação oferecida “pela” Filosofia

A escalada dos degraus da práxis à teoria constituía, por sua vez, a consolação oferecida “pela” Filosofia a Boécio. Seus últimos dias, vividos na prisão, arremataram uma existência de coerência ética e política. De conselheiro do imperador Teodorico, ele passou, depois de uma acusação injusta, a ser visto como traidor do império. Foi, então, obrigado a manter residência forçada no norte da Itália, longe da família, dos amigos e de sua biblioteca, à espera da execução. Nesse período, ele compôs a Consolação.

Essa obra é o registro de um protesto contra sua sorte injusta, bem como a tentativa de responder a graves problemas filosóficos que, no contexto da prisão, revelaram, em cores fortes, seu caráter existencial. Suas queixas centravam-se na instabilidade da Fortuna, deusa caprichosa, responsável pelas variações da Natureza em geral, ora prodigalizando os seres de bens, ora subtraindo-lhes tudo, sem nenhuma razão aparente.

A Filosofia, então, para consolar Boécio, inicia com a aplicação de remédios suaves, até chegar a remédios amargos, porém mais eficazes. Os remédios suaves consistirão na lembrança dos bens concedidos pela Fortuna (o bem-estar passado de Boécio e o de sua família, sua carreira política, a carreira de seus filhos etc.) e os amargos, no esclarecimento de sua natureza variável, no enfrentamento do problema do mal, da liberdade, da providência divina etc.

A causa do sofrimento de Boécio estaria em confiar nessa deusa cega e caprichosa, esperando que ela se comportasse sempre do mesmo modo. Mas, caso ela se comportasse sempre do mesmo modo, então negaria seu caráter. A Filosofia mostra, então, como o desejo humano leva os indivíduos a desejar a constância da Fortuna.

O desejo, em si mesmo, não seria mau; equivocada é a ilusão que ele acarreta, ou seja, a crença de que a abundância de bens pode trazer a felicidade. Em outras palavras, haveria um erro humano, o de querer suprir as carências com a abundância. Aliás, a abundância seria antinatural, pois, segundo Boécio, os outros seres vivos precisam de pouco para sobreviver. Mas os humanos, além de se iludir com a abundância, nem sempre se dão conta de que têm algo a mais do que os outros animais. Para serem felizes, têm de acionar a capacidade que os distingue, a mente, ponto de semelhança, inclusive, entre eles e o ordenamento do mundo. Numa palavra, a realização humana residiria no desenvolvimento da capacidade mental e no uso correto dos bens.

Nesse sentido, a consolação oferecida pela Filosofia a Boécio consiste em fazê-lo avaliar com prudência a natureza das coisas (à semelhança da filosofia consoladora de Sêneca) e em ativar sua mente para o conhecimento de si. Essa é a razão de a Filosofia cantar em seus versos:

Oh, que feliz era aquele tempo antigo
que se contentava dos campos fiéis,
sem perder-se num luxo inútil.
E contentava-se dos frutos rústicos.
(…)
Oh, quão feliz seria o gênero humano,
se aos vossos espíritos regesse o amor;
aquele mesmo que rege o céu.

O bem próprio do ser humano, atividade interior de natureza espiritual, não seria redutível às experiências físicas, e a felicidade só seria atingível pela posse e pelo cultivo desse bem.

A atividade da mente, no dizer de Boécio, levaria ao conhecimento de si, e esse conhecimento, por sua vez, levaria ao conhecimento da inteligência amorosa que rege o universo. Da perspectiva desse conhecimento, tudo passaria a ter sentido, inclusive aquilo que se vive como sofrimento. As situações adversas passam a ser valoradas como consequência da fragilidade da Natureza e da vida humana, sem que o desejo irracional leve à ilusão de uma vida constante e sem imperfeições.

Por fim, o fato de se afirmar que o universo é regido por uma inteligência amorosa não significa tolhimento da liberdade. O exercício da liberdade ligar-se-á à capacidade humana de determinar o sentido da existência de cada indivíduo, em meio aos constrangimentos impostos pelo dinamismo da vida. Esses remédios são o consolo que a Filosofia oferece a Boécio. É no registro de uma busca de unidade na experiência interior (vivida no corpo e com os bens do corpo) que a filosofia, segundo Boécio, pode ter um papel consolador. Na linguagem clássica, a filosofia consola não porque extirpe o sofrimento, mas porque é Sabedoria.

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