A ação encantadora do silêncio
A despeito da convivência das duas línguas tanto passada quanto recente, a verdade é que poucas obras literárias foram até agora traduzidas do japonês para o português.
O contato inicial entre as línguas portuguesa e japonesa estabeleceu-se no distante ano de 1543, quando um navio mercante que havia partido de Portugal com destino à China teve sua rota alterada por uma tempestade e acabou por aportar acidentalmente na pequena ilha de Tanegashima, no extremo meridional do arquipélago japonês. Os mercadores portugueses e suas armas de fogo constituíram-se então em grande sensação muito bem recebida pelos japoneses. Estabelecida a rota, à primeira embarcação seguiram-se outras que passaram a mercadear em diversos portos da ilha de Kyushu e, em 1549 – seis anos mais tarde, portanto, uma delas trouxe ao Japão o jesuíta Franciso Xavier em missão catequizadora. Como a maioria dos religiosos da Companhia de Jesus, Francisco Xavier era também destacado lingüista e intérprete: ao se retirar do Japão alguns anos mais tarde, já havia preparado um alentado dicionário japonês-português, ao qual até hoje se referem alguns pesquisadores em busca de informações sobre aspectos da língua falada naquele distante passado. O contato assim estabelecido entre os dois idiomas – íntimo a ponto de ser responsável pela incorporação, à época, de alguns vocábulos portugueses à língua japonesa – teve brusco fim em 1640, quando o então xogum Iemitsu Tokugawa ordenou o fechamento dos portos japoneses ao comércio exterior e a expulsão dos missionários católicos do país. A conexão interrompida só foi restabelecida de modo consistente há quase cem anos, com a chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil.
A despeito da convivência das duas línguas tanto passada quanto recente – a última representada pelos cem anos de imigração japonesa no Brasil –, a verdade é que poucas obras literárias foram até agora traduzidas do japonês para o portu-guês, situação que me chamou a atenção há cerca de quinze anos e me levou a pensar em revertê-la, mesmo que minimamente.
A publicação há cinco anos do volumoso Musashi, obra do escritor Eiji Yoshikawa que retrata as peripécias de um samurai do século 17, forneceu um breve esboço da história e da vida do povo japonês desse distante passado até então desconhecido dos leitores brasileiros. Ao coincidir com o despertar do interesse das editoras brasileiras pela literatura japonesa, esse constituiu-se casualmente em adequado livro predecessor das diversas obras que viriam a ser traduzidas em seguida.
Eiji Yoshikawa (1892 –1962) era filho de um samurai que, como a maioria dos integrantes de sua classe, arruinou-se financeiramente no Japão pós-Meiji. Viveu uma infância abastada e uma adolescência de pobreza. Autodidata, especia-lizou-se em narrar a vida romanceada das grandes figuras históricas do seu país em obras extensas e é comparado pela crítica japonesa a Alexandre Dumas tanto pela semelhança dos temas por ambos explorados quanto pela importância de suas figuras nos panoramas literários dos respectivos países. Repleta de referências religiosas budistas e xintoístas, assim como de citações dos clássicos chineses, Musashi é uma obra que espelha a realidade de uma época.
Junichiro Tanizaki (1886 – 1965) é um escritor intimista e muitas de suas obras assumem tom confessional. Adota prosa fluente e elegante, de leveza cuidadosa que beira o informalismo de uma conversa descontraída. Os vaivéns de raciocínio, que à primeira vista podem parecer típicos dessa prosa inconseqüente, escondem cuidadoso planejamento. Seu texto é de clareza exemplar, não deixa espaço para dubiedade. Bastante exigente nesse aspecto, Tanizaki chegou a publicar ensaios em que reclamava da nova geração de jornalistas – descuidada no seu entender – e lhe mostrava como ordenar os termos da oração para evitar a ambigüidade. Tão exímio era ele nesse ordenamento que extensas frases de uma clareza ímpar contendo diversos blocos de pensamento e inúmeras informações transformaram-se numa constante em suas obras e em dificuldade a mais no momento de traduzi-las. A língua japonesa é gramaticalmente flexível, mas a portuguesa, comparativamente mais presa à regras, obriga o tradutor a decompor tais frases originais em outras duas ou três menores a fim de não torná-las indecifráveis, ou ainda a efetuar malabarismos mentais para encadear o pensamento na tentativa de, sempre que possível, mantê-las intactas.
Seu oposto é Haruki Murakami (1949), autor do romance Caçando carneiros. Escritor da geração atual, encontrou estilo próprio de escrever um tanto distante do dos colegas que o antecederam. Caracterizado por frases curtas e objetivas, mas destituídas de agressividade, seu texto revela sensibilidade poética genuinamente japonesa. O autor busca romper o isolamento cultural com referências globalizantes, o que é visto por alguns críticos como tentativa de americanização ou de ocidentalização da sua obra, mas um exame mais cuidadoso logo desnuda a alma japonesa que a anima.
Já o romance Mar inquieto, de Yukio Mishima (1925 – 1970), foi uma interessante escolha dos editores. Diferente da maioria das obras deste polêmico escritor, essa retrata o amor cândido de dois adolescentes numa minúscula ilha do Japão. Alguns críticos japoneses acreditam que o autor tenha se inspirado numa fábula grega, mas outra comparação possível é com o romance Mar morto, do brasileiro Jorge Amado, cada um descrevendo à sua maneira a vida e os amores de uma população que no mar encontra a subsistência e, muitas vezes, também a morte.
A despeito do tema sentimental, os cortes aplicados à narrativa e que lembram uma espada em ação não deixam a história descambar para a pieguice.
O panteão dos escritores japoneses é vasto e dele fazem parte dois detentores do Nobel de literatura: Yasunari Kawabata (1968) e Kenzaburo Oe (1994).
A obsessão de Kenzaburo Oe (1935) por recém-nascidos fisicamente deformados é dolorosa. Sua prosa é repleta de alegorias e comparações surrealistas que espelham agudeza de espírito e imaginação fértil.
As considerações acima constituem-se, na verdade, em apanhado brevíssimo e superficial das características de algumas obras japonesas e de seus autores. A tradução do japonês para o português não é tarefa fácil. A par da exigência básica de bom conhecimento das línguas fonte e alvo, necessária a qualquer indivíduo que se dedique a traduzir, a de possuir conhecimento profundo da cultura japonesa, exótica em diversos aspectos, é também essencial para não incorrer em sério erro de interpretação.
A preocupação por falsos cognatos pode ser totalmente retirada dos ombros do tradutor do japonês, já que as raízes das línguas em questão nada têm em comum. Mas essa única facilidade é plenamente compensada, se assim podemos dizer, pelas dificuldades que a própria diferença das línguas representa. A começar pelo ordenamento da idéia (em português, prevalece a ordem: sujeito e predicado – objetos, adjuntos adverbiais; em japonês, porém, outra é a ordem: sujeito, adjuntos adverbiais, objeto indireto e direto), tudo contribui para tornar a tradução do japonês um trabalho bem mais interpretativo que o da trdução das línguas de raízes latinas, por exemplo. Em outras palavras, exige do tradutor a reestruturação da frase e, não poucas vezes, de um período inteiro; requer completo distanciamento do texto original sem abrir mão da fidelidade ao pensamento nele contido. E quando o romance se ambienta no período feudal em que a sociedade japonesa era dividida hierarquicamente em castas, em que cada casta possuía um linguajar típico e em que as classes inferiores empregavam expressões e formas verbais de deferência no trato com as superiores, a dificuldade aumenta a ponto de impossibilitar a transposição fiel de algumas sutilezas da linguagem original. Frases longas em que discursos indiretos e diretos se sucedem perfeitamente dissolvidos uns nos outros – outra proeza da língua japonesa – constituem-se em nova dificuldade de tradução, a exigir cuidadosa análise das frases originais no momento de decompô-las. Mas a despeito das dificuldades, a galeria de escritores japoneses é vasta e representa rico veio digno de ser explorado.
Leiko Gotoda
tradutora de, entre outros trabalhos, Voragem, de Junichiro Tanizaki, e Caçando carneiros, de Haruki Murakami. Leiko é sobrinha direta do escritor Tanizaki