De desastre em desastre, o revés do movimento woke
O estilo e a retórica da política identitária foram, nas últimas duas décadas, consideradas a grande inovação na luta política por direitos para as minorias. Chegou-se a tal ponto que jovens militantes têm dificuldade de reconhecer que havia feminismo e luta por direito civis, por exemplo, antes que o discurso e o comportamento beligerante, de pé no peito e dedo na cara, de assédio e linchamento, típico dos identitários, se tornasse a nova gramática moral da luta das minorias ou em defesa delas.
Mas justamente suas táticas de guerra permanente, a cultura do cancelamento e do linchamento, inclusive de inocentes, que promove sem cessar, a arrogância e a violência de suas abordagens, sempre na base da intimidação e do constrangimento, a incapacidade de criar pontes e estar dispostos a reconhecer que os de fora do grupo têm direito a existir numa sociedade pluralista, e, por fim, o fato de que efetivamente alimenta a polarização política, injeta combustível na guerra moral e ajuda a fortalecer a reação eleitoral da direita conservadora, que abriga cada vez os que se sentem agredidos ou que acham que estão cedendo direitos e valores demais para esse ramo da esquerda, tudo isso faz parte do passivo do movimento woke entre nós nos últimos anos
Embora a política identitária seja mais um fenômeno do nicho universitário, das vanguardas culturais, das redações jornalísticas e do terceiro setor, não se ousava criticar seus métodos e modos, nem as suas complicadas premissas, pelo menos nesses ambientes. Isso, contudo, está mudando.
Três episódios nas últimas semanas indicam essa mudança.
O episódio de falsa denunciação de crime seguida de linchamento moral e tentativa de destruição da carreira de uma professora da UFBA, por uma aluna trans e o seu séquito de ativistas identitários, foi um desastre. Por fortuna, gravações demonstraram tratar-se de uma expedição punitiva tão feroz quanto injustificada, mas o estrago estava feito. Não só sobre a vida da professora, mas sobretudo na reputação dos identitários, vez que ficou patente que era apenas mais um dos inúmeros casos de investidas violentas contra professores, sobretudo professoras, protagonizadas por esse tipo de militante.
No campo político-partidário, outro revés consistiu na reação da esquerda tradicional à enorme pressão, exercida por pessoas e organizações identitárias, para garantir alguém que os represente na vaga do STF disponível depois da aposentadoria de Rosa Weber. Petistas de alta patente vieram a público dizer o quanto estavam fartos do apetite identitário por cargos e bônus no Estado.
Um outro desastre veio da revelação de que uma assessora do Ministério da Integração Racial, em missão de trabalho, fez posts de cunho racista contra descendentes de europeus, paulistas e torcedores do São Paulo FC. Em seguida, descobriu-se que a pessoa em questão tinha o hábito de fazer posts racistas e preconceituosos. Claro, tudo baseado num dogma, o de que “negros não cometem racismo”, que segue o dogma correlato de que “não há racismo contra brancos”.
Sim, porque se trata de dogmas, uma vez que não há qualquer base racional-dedutiva capaz de sustentar uma afirmação ou outra. E os enunciados atendem completamente aos requisitos da definição de dogma: são doutrinas que não devem ser contestadas pela razão ou questionadas à luz de fatos, e que, além disso, todos os membros de uma fé são obrigados a aceitar sob pena de excomunhão.
O problema dos dogmas em geral são dois. O primeiro é que ninguém, fora da comunidade dos crentes, precisa acreditar nos dogmas dos outros. Dogmas, por definição, não têm validade universal, por mais que o pretendam os que nele creiam e ainda que tomem providências coercitivas neste sentido. O segundo é que apelar para sacerdotes e outras autoridades eclesiais para encontrar nele o fundamento racional da crença é como esperar que o papa fundamente o dogma da Santíssima Trindade de forma a convencer os não crentes que não partilham das suas premissas teológicas. Não funciona. Mas é isso que fazem os dogmáticos quando se lhes pede que ofereçam razões públicas e não fideístas para a sua doutrina, isto é, recorrem aos seus sumos sacerdotes.
Nada há, contudo, em qualquer definição aceitável de racismo, que exclua a priori que indivíduos brancos, asiáticos, indígenas, árabes, judeus, ciganos etc. possam ser alvo de racismo, restando aos negros o monopólio da condição de vítima. Ou aos brancos o monopólio do cometimento do crime. Sustentei isso quando a Igreja Identitária das Redações excomungou Riserio, em janeiro de 2022, e o sustento agora: para haver racismo é bastante acreditar que os seres humanos se dividem em raças, como outros bichos, e que pelo menos uma dessas raças produz humanos de um tipo inferior.
Acontece que os identitários acharam conveniente conceder aos seus membros uma excludente de ilicitude para o crime de racismo. Um duplo padrão moral injustificável, que as pessoas fora do círculo de fé identitária justificadamente recusam, horrorizadas, ainda mais quando os prints do histórico de declarações racistas da assessora começaram a ser divulgados.
A sensação geral, que vai se consolidando, é que a retórica da luta por justiça e as reivindicações de superioridade moral dos identitários progressistas podem muito bem não passar de uma fachada de moralidade para esconder e justificar comportamentos de grande injustiça, como o linchamento de professores, tanto quanto comportamentos imorais, como o racismo contra indivíduos considerados parte de grupos opressores.
Claro, os batalhões da condescendência se oferecerão como escudo para atacar quem ousa publicar tal heresia. Nesse caso, terão em mente o alvo errado, pois essa batalha não está sendo perdida na tensão entre colunistas e os poucos leitores, apreciadores e detratores, que porventura os acompanhem. Esta batalha está sendo perdida, de fato, na percepção pública e na política institucional, como se viu pelas reações nestas últimas duas semanas.
E não adianta, mais uma vez acusar de bolsonarista, racista, fascista, transfóbico etc. quem vai perdendo a empatia ou se cansando da retórica e do comportamento identitários. Não só estas cartas se desvalorizaram por excesso de uso, mas também por que vêm sendo usadas, justamente, para dar verniz moral ao comportamento inapropriado. São os desastres das táticas identitárias que fazem com que existam cada vez mais pessoas, inclusive progressistas e de esquerda, que os veem não como parte da solução, mas parte dos problemas da democracia contemporânea.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
(1) Comentário
Excelente texto. É um alívio ver esse tipo de posicionamento vindo de dentro de uma universidade. Apesar de eu ser professor de um universidade federal, me vejo cada vez mais com medo de debater certos assuntos. O dogmatismo está nos matando de forma cada vez mais acelerada.