O puxa e estica do neomilitante nas campanhas políticas

O puxa e estica do neomilitante nas campanhas políticas

 

Essa semana, um ativista pró-Lula, articulador e editor de grupos em favor do seu candidato em todas as plataformas digitais, insistia que a campanha precisa “debater o privilégio branco”. O tema é do interesse das franjas identitárias e consiste em exigir dos brancos, universalmente, que admitam, em quaisquer circunstâncias e antes de qualquer coisa, que se os negros não gozam de alguns direitos é porque eles, os brancos, apossaram-se de tudo na forma de privilégios. Sim, você enfrentou racistas e o fez muito bem, mas em vez de boas-vindas ao universo dos que lutam contra o racismo lhe exigiremos penitência e reconhecimento do racismo que há em o branco antirracista ter conseguido mais visibilidade do que os negros que fazem a mesma coisa. Você, em suma, foi beneficiária do racismo ao se insurgir contra o racismo.

Se nem eu entendo esse jogo de espelho de culpas e punições a quem fez o certo, porque, aparentemente, o branco está errado até quando acerta, imagina o efeito disso numa campanha eleitoral. É um desses temas que ficam bem em festas e feiras literárias, nos cadernos de cultura, nos seminários da vanguarda acadêmica e em posts de mídias digitais, situações em que a polêmica não só é inevitável como bem-vinda, há autênticos campeonatos de superioridade moral e a lacração é um caminho seguro para o acúmulo de capital social e visibilidade pública. Mas, em uma semana em que o Brasil inteiro ouviu e se comoveu com o áudio de um menino de onze anos que julgou, em sua ingenuidade e desespero, que a fome que castigava a sua família era caso de polícia, uma campanha de esquerda deve privilegiar a controversa discussão do “privilégio branco”?

Na mesma linha, há apoiadores de candidaturas progressistas que reagem ultrajados ante a constatação de não há vantagem alguma para a campanha assumir neste momento a defesa do aborto. Ou que não entendem quando se lhes diz que imprecar contra “os evangélicos” e defender teses sobre o mal que fazem à vida pública nacional – justo uma minoria composta de pessoas pobres e de periferia, que sempre se sentiu humilhada e desprezada por uma sociedade secularizada e progressista – é definitivamente empurrá-los para o bolsonarismo.

Ora, há temas que são campos minados nesta disputa eleitoral em que a contraposição ideológica é menos entre esquerda e direita do que entre conservadores e liberais. Há ganhos para liberais em provocar tão frontalmente a maioria conservadora do país, especialmente quando um dos candidatos favoritos da eleição, ainda com chances de vitória, é justamente o campeão da pauta ultraconservadora? Há vantagem em demonstrar para homens, heterossexuais, brancos e cis, que do lado de cá da Ilha só há para eles culpa e penitência e que, portanto, se quiserem votar a partir de sua identidade, os seus interesses estarão melhor representados pelo bolsonarismo?

Outras dessas armadilhas é a tal “regulação da mídia”, um tema polissêmico e dominado por interpretações mal-intencionadas e por suspeitas de parte a parte. Há problemas escondidos nesse verbete que precisarão certamente um dia ser objeto de debate público, mas como se pode colocar numa campanha uma expressão que significa uma coisa diferente em cada cabeça, sendo que algumas das coisas que significa são objeto do mais profundo temor por uma parte influente da sociedade? A não ser que se queira jogar água no moinho do bolsonarismo e atrair para ele as redações ultraliberais, que têm pesadelos cada vez que uma campanha de esquerda toca no tema.

O problema nem são os candidatos, macacos velhos que são, mas os neomilitantes que proliferaram em meios digitais e que estão envolvidos nas campanhas com incomum intensidade. Quem são eles? É simples. Depois de meio século de crescente apatia e desinteresse, e de índices de participação eleitoral declinantes em toda a parte, na década de 2010 começou um novo boom de interesse e participação política. Certamente, a transformação digital dos meios de informação e integração são parte da equação. De fato, os ambientes sociais digitais são o meio fundamental de expressão, informação, formação, envolvimento e interação para um novo e enorme conjunto de pessoas interessadas em política e dispostas a participar dela como se valesse a vida.

O que os distingue são diferenças de estilo e de compreensão da política. O militante tradicional sempre acompanhou o noticiário político e se envolveu em campanhas, tem alguma formação política e, eventualmente, experiência de participação política em cenários tradicionais de inserção presencial. Os neomilitantes claramente não tiveram tempo para isso. Ouviram o apelo do espírito do tempo para se jogar na política e entraram nela com urgência e com os recursos que tinham. Faltam-lhes, pelo menos, as habilidades cívicas para a interação com divergentes e uma compreensão da campanha como a arte do convencimento argumentado e da sedução por simpatia.

O militante tradicional sabe que campanha é persuasão, é captação de benevolência, é atrair os neutros e indecisos e demover os aliados do adversário. O neomilitante acha que uma eleição é uma guerra, que os adversários são inimigos, os aliados são adversários, os neutros são um caso perdido e quem está indeciso é um filho da mãe. Ele topa pisar em todas as pontas de pé, entrar em todas as tretas espinhosas, fazer todos os inimigos possíveis; ele quer ter razão, ganhar eleições e mandatos é coisa secundária e derivada.

Por isso as campanhas viraram essa tensão interna, entre militantes tradicionais que conhecem as manhas, sabem saltar armadilhas e evitar confusões desnecessárias. E os neomilitantes, cheios de convicções e energia, fazendo mais inimigos do que precisam, puxando brigas com aliados e fazendo constantemente os seus candidatos patinarem em gelo fino. Numa eleição que será muito disputada, os neomilitantes podem fazer toda a diferença, para o bem ou para o mal.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

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