O MBL, além do “tour des blondes”
Há 8 anos o MBL (Movimento Brasil Livre) vem sendo um pouco de tudo na política nacional. Primeiramente foi um movimento de protesto, daqueles que emergiram no meio das convulsões de 2013 e 2014, em que as ruas e os meios digitais se combinaram pela primeira vez no país em manifestações inflamadas “contra tudo o que estava errado” e “para consertar o Brasil”. Lembrem-se de que aquelas ondas de protestos foram iniciadas e alimentadas por uma esquerda que se dizia apolítica até que, em um determinado momento, foram tomadas e controladas por uma nova direita antipolítica, parte dela sendo forjada ali, “ao vivo”, esculpida em fúria e revolta por um populismo voluntarioso e anti-institucional, crente no lema de que “quando a massa quer, a massa tem que conseguir”. O MBL e outros movimentos da nova direita digital (e da velha direita digitalizada) surgem aí, respondendo ao chamado do “vem pra rua” e “o gigante acordou”.
É importante entender isso: o MBL surgiu e ganhou vértebras e músculos por causa de uma crise política e moral, e para faturar com o caos das instituições políticas, com a raiva popular contra os políticos em geral e o PT em particular, com a percepção pública de que tudo estava (está) fora do lugar e de que a maldade e a corrupção da política estavam (estão) destruindo o país. MBL, Vem Pra Rua, Revoltados Online etc. surgiram todos da cepa populista, voluntarista, insurgente, digital e jovem do que a esquerda por muito tempo glorificou como as Jornadas de Junho de 2013. Tendo depois recebido o sacramento da confirmação no fogo santo das revoltas para a purificação da política, a partir de março de 2015, que resultaram no impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e na eleição de Bolsonaro em 2018. Em 2016, lembro-me muito bem do senador Cássio Cunha Lima a olhar para Kim Kataguiri, na galeria do Senado, enquanto afirmava que o impeachment era uma resposta à demanda do povo nas ruas. O MBL era o povo e as ruas.
No primeiro “ciclo revolucionário” dos protestos de rua, 2013-2014, um punhado de “garotos” (parece que “garoto”, no caso, é uma condição permanente dos membros do MBL) de São Paulo, o ambiente político ao mesmo tempo mais antipetista e mais business-friendly do país, descobriu um modelo de negócio promissor e resolveu investir nele. Em vez de uma startup de tecnologia, como era moda, ou de uma empresa com algum produto ou método inovador no setor de serviços, que tal uma startup de movimento social? Ora, mas já não existem os tais movimentos sociais da esquerda tradicional, como os sindicatos, movimentos estudantis e outros movimentos juvenis (como o próprio Movimento Passe Livre, MPL, que começou tudo)?
Além disso, é também a primavera dos famosos coletivos da esquerda identitária. Não já há concorrência demais nesse setor? Acontece que os movimentos sociais predominantes, por mais que proclamassem que são diferentes, como fazia o MPL – por sua reivindicação de independência de partidos políticos e na organização sem líderes que falem por todo mundo -, são justamente de esquerda e é a esquerda, governante, a ser identificada como parte do problema político que levou as pessoas às ruas e à revolta.
Uma startup política disruptiva
O que se percebeu, enfim, é que havia espaço para um novo tipo de movimento social, desde que organizado em um novo método, baseado em outro padrão de ação política e com outro tipo de ideologia. Os “garotos” que formaram o MBL não foram os primeiros a vislumbrar uma oportunidade naquela crise, mas foram provavelmente os mais bem-sucedidos em criar um conceito e desenhar um protótipo, em vendê-lo para o público e para a política partidária, e em prosperar com um leque de ofertas de serviços que alcançava desde a base até a elite da política.
Nasceu se chamando de movimento social (Movimento Brasil Livre), mas se formatou na verdade como uma startup, incubada no grande laboratório de inovação e insanidade política que foi o Brasil entre junho de 2013 e agosto 2016, quer dizer, entre os protestos dos 20 centavos e o impeachment da presidente petista. Uma estrutura flexível, profundamente atenta ao ambiente político para identificar desejos e tendências ainda não satisfeitas pelo mercado, com inovação nos métodos e processos (nada de assembleias horizontais, nada de massas reunidas e lideradas), e com um produto ideológico “disruptivo”: um hiperliberalismo-yuppie-de-direita combinado visceralmente como um conservadorismo vamos-proteger-as-criancinhas-dos-artistas-liberais.
Nada muito sofisticado, mas um pacote vistoso de slogans e percepções fáceis de vender a um público sem formação política, com raiva e pressa, irreverente, e que estava cansado das convenções e dos clichês políticos da esquerda e da direita moderada. Um catadinho, uma composição de premissas, extraídas de várias matrizes ideológicas, que não se combinam para formar um sistema coerente, mas que, justapostas, fazem vista, parecem modernas, inovadoras e se comunicam bem às novas gerações. Assim temos ideias retiradas dos ambientes libertários (“ninguém toca na liberdade de expressão, dane-se o resto”), ultraliberais (“imposto é roubo”, “o Estado é inercialmente um crime”) e conservador (“estão erotizando as criancinhas”), assim como da reação contra os exageros da política de identidade dos movimentos de minorias (o ataque e o desmascaramento do “ódio do bem”).
Tudo isso para se diferenciar o quanto seja possível da esquerda convencional que da esquerda identitária, seus dois concorrentes no mercado de movimentos sociais, mas também da elite intelectual e artística liberal. Foi assim que o MBL foi flagrado defendendo teses e políticas públicas baseadas no darwinismo social cru e bruto, assim como fez da provocação às pautas identitárias uma coisa tão radical a ponto de atingir os movimentos sociais que as adotam (feministas, LGBTQI+, antirracistas). Mas também foi visto várias vezes “denunciando” performances artísticas progressistas, como no caso da famosa performance do homem nu, no MAM de São Paulo, ou boicotando exposições de arte que consideraram degenerada ou “não artística”, como no caso do Queermuseu no Rio Grande do Sul. As acusações de “erotização infantil” com “uso de dinheiro público” não se diferenciavam em nada das patrulhas ideológicas do bolsonarismo vulgar. Basicamente, uma Damares yuppie.
Além disso, convém não esquecer que o movimento é digital, baseado na internet social que se consolida depois de 2010. O MBL representa o início no Brasil dos movimentos públicos (porque há os que se movem na internet profunda) que são digitalmente nativos, sustentados essencialmente por seus empreendimentos de comunicação política nas principais plataformas e usando todos os recursos do momento, dos podcasts às fake news, da fabricação desenfreada de memes ao assédio e assassinato de reputações online.
Nesse sentido, transformou-se em um bem-sucedido movimento de autopromoção, vorazmente interessado em ocupar todos os espaços de visibilidade, da mídia tradicional às plataformas, vendendo diariamente raiva política e a sensação de que a política brasileira é um abismo. Para, enfim, se apresentar como a cura milagrosa, o Santo Graal, a promessa de renovação da política por jovens empreendedores, hipsters, descolados, que entendem as pessoas e as suas necessidades, mas que, não, não são políticos. Por quase uma década o MBL foi isso: uma startup que promove a fúria política e a sensação de que tudo está fora da ordem para vender os seus membros e a sua própria ideologia como a transformação da política de que todo mundo está precisando. Nada muito diferente dos pregadores de igrejas que convencem as pessoas da miséria da própria condição para, então, poder vender aos pecadores formas vistosas e exclusivas de redenção.
Convertendo capitais para atender a diferentes clientelas
O capital social (prestígio, reconhecimento, rede) obtido nas manifestações contra Dilma, pelo impeachment e pela prisão de Lula era ao mesmo tempo convertido em visibilidade, fanbase e monetização no mundo da “influência política digital”. Enfim, a partir de 2018, esse capital pode ser convertido em mandatos populares, disputados em partidos da direita de sapatênis (DEM, NOVO) que os acolheram por afinidades eletivas. Pegava bem a partidos de direita que queriam parecer renovados por novas lideranças e ter um discurso descolado e diferente ter entre um MBL-boy dentre os seus quadros. O que ao mesmo tempo poupava o MBL de queimar a sua imagem de startupeiro com essa obsessão arcaica por se transformar em partido político.
O fato é que em alguns anos, e em uma linha contínua e ascendente, os “líderes de protestos” foram promovidos a “influenciadores” do YouTube, do Facebook, do Twitter e do Instagram e, enfim, a deputados estaduais e federais. O passo mais alto estava sendo cobiçado justamente neste momento, com a candidatura de Arthur do Val, o Mamãe Falei, ao governo de São Paulo, mas com sonhos até mesmo de ser alçado a vice-presidente na chapa de Sérgio Moro.
Politicamente, o antipetismo faz parte do código mais profundo do DNA do MBL: nasceu do antipetismo e para alimentá-lo. Fazemos, contudo, qualquer negócio. Quando lhes pareceu que dentre os movimentos baseados no antipetismo, o bolsonarismo é o que tinha maiores chances de prosperar eleitoralmente, amalgamou-se com gozo ao bolsonarismo, e os mandatos que agora ocupam vieram da onda marrom de 2018. Os bolsonaristas sabem disso e guardam rancor, agora que não são mais amigos. Quando, enfim, foi-lhes claro que o bolsonarismo iria afundar eleitoralmente em virtude da loucura de Bolsonaro, correram atrás de alternativas afins.
Primeiro tentaram promover a candidatura presidencial de Danilo Gentili, tal o desespero, depois passaram um tempo ciscando à busca da tal terceira via, até que, enfim, abrigaram-se junto a Sérgio Moro. Tornaram-se antibolsonaristas, pois não há MBL sem a promoção da frustração, da raiva e da revolta moral, e nada disso funciona sem que se tenha um inimigo devidamente satanizado. Tornou-se bolsonarista, porém, sem deixar de ser antipetista. E sopram as brasas do ódio aos dois inimigos mortais com o mesmo empenho. Se um dia precisarem ser antimoristas, por rancor ou sensação de que se trata de uma canoa furada, não resta dúvida de que saberão converter suas armas para uma nova frente de batalha.
O MBL começou vendendo badulaques (camisetas e canecas) como qualquer grêmio estudantil, depois passou a “monetizar” (quer dizer, transformar visualizações em grana) em plataformas digitais. No meio tempo, muitas vezes foram acusados de captar recursos de partidos e particulares interessados na sua capacidade de promover indignação política antipetista. Por fim, uma vez obtido mandatos populares e entrando no big business da política eleitoral, adaptou-se à arte da performance, do ato político encenado conforme um roteiro e uma intenção dramatúrgica. Era preciso parecer que não eram gentalha, apesar de misturados com porcos na política institucional. Daí os atos “simbólicos” de devoluções de vantagens e de exibição de uma ética espartana no gasto dos “privilégios”. Daí o esforço constante para se “diferenciar”.
Performando a diferenciação, enroscando-se no excesso
E foi de performance em performance que chegamos a membros do MBL fazendo vaquinha online para ir ao palco da guerra na Ucrânia a fim de levar, em mãos, a fortuna de 180 mil reais. O roteiro depois mudou para o engajamento hands on em atividades de guerra, para fabricar coquetéis Molotov, de modo que os ucranianos tivessem, enfim, artefatos bélicos capazes de enfrentar o exército russo. Para tudo se acabar em áudios de coaching sobre como se aproveitar sexualmente de refugiadas pobres no meio de uma guerra. Uma performance e uma aula e tanto de civismo, compaixão humanitária e “diferenciação” dessa galera da política tradicional que só fala e defende privilégios, mas não põe a mão na massa nem se arrisca numa guerra.
Quase uma década depois de inventado, o MBL, essa mistura de movimento social, startup de política e partido paralelo, enfrenta a sua primeira crise séria exatamente no território em que se revelou um campeão, a esfera pública, e realizando a ação política em que mais se mostrou eficiente, a performance. Há algumas semanas, Kim Kataguiri pegou a rebarba da onda de indignação social do episódio do Flow Podcast que atingiu em cheio Monark e a sua defesa do direito de constituição de um partido nazista. Como Monark pagou o pato, ficou mais ou menos por isso mesmo. Mesmo assim, não passou despercebido o fato de que certas coisas, que há não muito tempo o MBL e a sua geração de influenciadores digitais dos chamados “liberais conservadores” (sic) diziam sob aplauso dos seus seguidores, já não estão parecendo simpáticas nem aceitáveis para a sociedade em geral. Deveriam ter ligado o alerta de mudança de humor público, não o fizeram.
Não é surpresa que, na sequência, apareçam mais dois membros do MBL enrolados num escândalo de mídias digitais: o hiperperformático Arthur do Val – o segundo deputado estadual mais votado em SP em 2018, o sujeito que em 2020 recebeu 500 mil votos para prefeito da capital, pré-candidato a governador paulista pelo Podemos – e o coordenador geral do movimento, Renan Santos.
O teor dos áudios que nos escandalizaram – sobre as refugiadas ucranianas serem loiras fáceis posto que pobres – é conhecido, melhor saltar então diretamente para o modo como se reagiu a ele.
A reprovação foi contundente, não só porque a própria guerra na Ucrânia, em que eles foram excursionar para coletar fotos, fabricar uma narrativa heroica e satisfazer a libido, já atraia um volume considerável de visibilidade pública, como também por ter havido a coincidência, logo depois, do Dia Internacional da Mulher. Visibilidade extrema com reprovação moral ampliada têm consequências, principalmente em tempos de mídias digitais em que os áudios viajam de celular em celular e continuam alimentando a memória e a indignação.
O fato é que os áudios e a repreensão social furaram a bolha de complacência do antipetismo e do darwinismo social, que protege o MBL, e os lançou ao relento da indignação pública. Moro, “parça” de primeira hora, foi o primeiro a correr para se afastar de Arthur; o próprio deputado comunicou a desistência da candidatura ao governo do estado; o Podemos, que apostava muito na persona pública de Mamãe Falei, já o desligou; e até o MBL comporta-se como se a perda do mandato fosse já favas contadas. E parece improvável que a cadeia de punições pare neste ponto.
O MBL até tentou virar o jogo, recorrendo a uma estratégia em que tem expertise, e que consiste em construir uma versão dos fatos segundo a sua conveniência e difundi-la através de uma historinha bem contada. Renan já encenou um discurso de ultraje moral em que diz que o companheiro errou, sim, mas não se compara aos “vagabundos, criminosos e corruptos” que querem o seu lugar. No enquadramento pretendido, o MBL faz parte da elite moral perseguida por suas virtudes, apanhada por perversos linchadores digitais cometendo um “erro menor”. Não faz parte da escória imoral da antipolítica, da turma que fatura há quase uma década promovendo o vale-tudo, vendendo ódio político e alimentando o caos. Esqueceram o MBL que fechava exposições; promovem o MBL perseguido por petistas e bolsonaristas, por ser um Guerreiro da Justiça e da Virtude.
Desta vez, contudo, parece que a história reluta em prosperar. Primeiro, porque o MBL construiu-se ao longo dos anos a sua própria falange de inimigos, de tanto assédio, constrangimentos e ofensas infligidas. O estilo de “exibição de virtudes”, que é próprio da persona pública do deputado, não lhe deve ter rendido muita popularidade entre os coleguinhas da Alesp, tratados como gentalha. É a hora do ajuste de contas.
Segundo, o MBL agora luta em pelo menos duas frentes, no seu duplo antipetismo e antibolsonarismo, e, portanto, está flanqueado por grupos digitais muito competentes em ataque e contra-ataque. É improvável que afrouxem a corda agora que lhe alcançaram a garganta.
Por fim, e essa é a hipótese otimista, é plausível imaginar que tudo tenha um limite e que o limite da tolerância da sociedade brasileira com a barbárie antidemocrática, anti-iluminista, regressiva e reacionária talvez tenha diminuído. Tomara.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes