Por que o furor anticorrupção não deixou um legado positivo contra a corrupção?
(Foto: Reuters)
Maria Hermínia Tavares, professora titular de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap, constatou em sua coluna na Folha de S.Paulo que a última onda de indignação pública anticorrupção veio e se foi: deixou estragos, mas não um legado construtivo que servisse para o combate consistente à prática no futuro.
A ideia de que a fúria popular e política anticorrupção vem em ondas é sugestiva. Quer dizer que a aversão coletiva à corrupção aparece de tempos em tempos, atrai a atenção pública e acumula um sentimento de ultraje e indignação moral, é usada politicamente para eleger ou punir, até que se esvai e, pouco a pouco, desaparece. Até que algum dia seja insuflada de novo por alguém que queira se beneficiar politicamente dela.
No caso brasileiro, a professora lembra da onda nos 1950, com a UDN e Carlos Lacerda, nos anos 1960 – primeiro com a vassoura de Jânio e depois com os promotores do golpe militar -, no final dos anos 1980, com Collor de Mello. E, é claro, com a enorme vaga que surge em 2013, alimentada pelo lavajatismo e surfada por Bolsonaro até a conquista da presidência em 2018.
De fato, vimos como a corrupção apareceu como o principal problema nacional para a maioria dos brasileiros, muito acima de temas tradicionais como saúde, educação e pobreza e, paradoxalmente, à frente das crises econômica e política que haviam sido a motivação para o impeachment de Dilma Rousseff em 2016.
O tema, contudo, parece ter perdido força. A professora vê indícios de que não será um tema central na agenda das próximas eleições. Sem mencionar que um Moro de estatura eleitoral até aqui minguante não é hoje sequer a sombra do herói nacional que foi durante os anos dourados da Lava Jato.
Eu acrescentaria a esses dois elementos a crescente atribuição de várias formas de corrupção a Bolsonaro, seus filhos, seu governo e aliados. Ele que foi eleito justamente para purificar e redimir a política brasileira deste grave pecado. A conclusão que daí deriva Maria Hermínia Tavares é que “a onda passou, sem deixar legado institucional algum”. Muito embora, como ela afinal constata, “fora da agenda dos partidos e dos candidatos, a certeza de que política e corrupção são unha e carne é disseminada entre os brasileiros”.
Gostaria de continuar deste ponto e me atrever a acrescentar algumas observações. Antes de tudo, reiterar a conclusão da professora de que não houve propriamente um legado anticorrupção do último hype, isto é, da mais recente histeria anticorrupção para a qual praticamente se drenou toda a energia política entre 2015 e 2018. Nem desse nem dos anteriores. Os episódios em que a política é conduzida pelo furor moral costumam ser excelentes ocasiões para demolir coisas e pôr abaixo sistemas, não se para de construir ou redesenhar instituições que deem conta do valor moral pelo qual a sociedade parece subitamente encantada.
Hype quem diz sou eu, não a professora, pois se tratou, a cada vez, de um excesso retórico e de um exagero narrativo, capazes de levar muita gente a pensar que todos os nossos outros problemas sociais e políticos ou se tornaram repentinamente secundários ou tornaram-se problemas automaticamente resolvidos assim que se resolvesse a questão da corrupção do sistema político. Assim, o problema endêmico e real da corrupção no Brasil foi certamente amplificado retoricamente, sem que nem de longe fosse tocado por diagnósticos corretos, por políticas públicas adequadas e por medidas legislativas apropriadas. Nesse sentido, a última onda de retórica anticorrupção, conduzida e alimentada pelo polvo político, judicial e midiático que foi a Operação Lava Jato, trouxe muito calor e pouquíssima luz. Como acontece em casos semelhantes.
A minha hipótese para o fato é que foi tudo baseado em um diagnóstico falso sobre um problema real. E o problema começa aí.
Se você perguntar a qualquer pesquisador que estude sistematicamente a corrupção política, ele dirá que os remédios mais bem-sucedidos para o fenômeno pressupõem melhores instituições de controle e um aumento exponencial da transparência pública. A corrupção sempre será praticada se os riscos, para o corrupto, de ser apanhado e de, se apanhado, ser punido, forem menores do que os benefícios da corrupção. É preciso, portanto, que a corrupção não compense.
A hipótese por trás dessa visão diz que a corrupção se sustenta no fato de que o Estado e o sistema político brasileiros não têm suficiente transparência nem se submetem a níveis suficientes de controle por parte de órgãos independentes, além de o Poder Legislativo operar corporativamente protegendo seletivamente os seus. Falo de “órgãos independentes” pois vimos como um MP que passou a agir partidariamente acabou comprometido com uma agenda política oculta e espúria, e posto que o método de formação dos Tribunais de Conta tende a tornar o órgão uma extensão da política institucional.
A solução precisaria passar pelo redesenho de instituições para assegurar mais prestação de contas, mais supervisão independente, mais transparência pública, mais responsabilização e imputabilidade da classe política e de autoridades do Estado.
No Brasil, contudo, sempre se adotou uma perspectiva moralizante em cada onda de indignação com a corrupção política. Na última, então, era clara a concepção de que o corrupto é uma maçã podre que, uma vez descartada, deixa de apodrecer as outras. De Dallagnol à tia do Zap, do pastor pentecostal da periferia ao Moro, compartilhava-se a premissa de que a corrupção é uma mera questão de caráter e de ausência de punições: os melhores são incorruptíveis, os piores são corrompidos por sua própria natureza e a sociedade não está punindo os maus.
O que é preciso fazer no país diante de tal diagnóstico? Identificar e eliminar as maçãs podres que, olha só que coincidência, estão quase todas em um partido e em uma orientação política. A mão pesada da Lei precisa, então, alcançá-los e os arrancar do poder para remover a corrupção do sistema e purificar a Nação. Depois disso é só colocar em seu lugar pessoas novas, de melhor índole moral, incorruptíveis, que não roubem nem deixem roubar, e o sistema todo será curado.
Espalhou-se a certeza de que a tarefa urgente e o único meio eficiente para a remoção da corrupção seria punir imediatamente os homens maus e colocar em seu lugar os homens de bem. Tudo será resolvido se a política for conduzida por varões virtuosos, recrutados dentre os críticos mais moralistas da vida pública brasileira ou nos ambientes de virtude ilibada dos militares e dos religiosos conservadores. Estamos vendo o resultado dessa mentalidade na (baixa) qualificação moral e intelectual seja das atuais legislaturas, seja das pessoas da “nova política”, que usaram as correntes de furor corretivo eleitoral como a pista mais rápida para chegar ao Poder Executivo.
A força tarefa da Lava Jato, principalmente a de Curitiba, e o juiz que, de forma escamoteada, a liderava, tinham tanta convicção nessa premissa que não viram problema algum em corromper o devido processo legal para promover a remoção das maçãs que consideravam podres, em primeiro lugar, e para, enfim, aderir de maneira quase automática aos homens de bem presumivelmente incorruptíveis e sem pecado original que assumiram o lugar dos corruptos que eles mandaram prender. Tudo para redimir o Estado e o sistema político brasileiro.
Não deixou um legado construtivo porque as premissas estavam erradas. Instituições bem projetadas e cultura política com os valores certos produzem comportamentos republicanos, mas o nosso julgamento sobre o caráter dos outros não. Transparência não é uma virtude, é um sistema de constrangimentos que compelem ao comportamento republicano todos os agentes do Estado ou da política, independentemente do seu bom coração ou de colocar Deus ou o Bezerro de Ouro acima de tudo. A corrupção do sistema político ou das autoridades do Estado não é corrigida com retórica, com caça às bruxas, com histeria moral, mas com instituições e políticas públicas adequadas e vigilância social sobre o Estado e a política. E isso nem de longe passou pela cabeça dos indignados que ansiavam apenas por demolir, punir, purificar e colocar no centro do Poder homens e mulheres de grande virtude. Deu no que deu.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes