A aspiração e a oportunidade de um golpe militar hoje
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
As Forças Armadas brasileiras encaram com tédio e irritação o caráter à paisana da democracia. De Canudos ao AI-5, sempre souberam como tratar a rebeldia que eventualmente emerge na sociedade. Por isso, elas nunca se contentaram com o papel que o Estado brasileiro lhes reservou. Face à carência nacional de inimigos e guerras, preferem ser o personagem que rouba as cenas – mesmo que apenas para desaparecer depois.
O imaginário positivista de que os militares são o partido do desenvolvimento, da modernização, da tecnocracia, parece nunca ter deixado o alto oficialato. Mesmo após os sucessivos fracassos com o poder nas mãos e as sequelas na reputação castrense, eles nunca abdicaram da possibilidade de retomar o centro do comando. Em vez disso, parecem agir como se aguardassem a mudança geracional que propiciará um retorno triunfal pelo clamor de segmentos da própria sociedade.
Quando o capitão expulso recrutou generais da ativa e da reserva para uma guerra cultural, vislumbrava-se que o Exército, acionista majoritário das Forças Armadas no governo, pudesse mandar no país outra vez, tendo a democracia não mais como inimiga resiliente, mas como paciente resignada. Como se Bolsonaro fosse um ticket para um governo democrático de milicos, que fecharam apoio pela candidatura vencedora e passaram a lotear os cargos comissionados do executivo.
No início do governo, trocaram o discurso de guerra cultural que repercutiram na campanha pelo dos tecnocratas qualificados e diplomáticos. Pareceu até que queriam recompor a reputação destruída pela ditadura e esquecer a humilhação que lhes trouxe a Comissão da Verdade. Agradaram a grande mídia, mas conquistaram a ira da ala olavista, que alertava possíveis traições a Bolsonaro.
Sob o ataque dos apoiadores do presidente, decidiram dividir os papéis entre os operadores competentes e os escribas do Palácio do Planalto. Receberam aí duras críticas da imprensa, mas recuperaram apoio nas redes sociais e nessa mídia que absorve o imaginário surgido das redes e o coloca no lugar do jornalismo, substituindo reportagens por comentários. Ganharam então mais cargos e se aninharam ainda mais ao poder.
Após dois anos de uma gestão que involuiu da frustração à calamidade, e sob o feitiço exercido pelo presidente, que consegue liquidar ou bolsonarizar tudo o que toca, o exército se contentou com o papel de corporação parceira do mandato, reduzindo-se às funções de uma agência bolsonarista.
E eis que algo foi ficando novamente claro aos olhos de todos. Apesar de expulso por inaptidão, Bolsonaro tem em comum com os militares algo profundo: eles não compreendem, não respeitam e não toleram a democracia. Ainda na campanha eleitoral, o candidato Jair conseguiu recrutar super-ministros queridos das elites que, de alguma forma, são também alinhados a esse temperamento. Moro veio como quem compreende e tolera a democracia, mesmo não a respeitando. Guedes se anexou como quem a compreende e até a respeita, mas não a tolera. O primeiro já caiu. O segundo está entre ser totalmente bolsonarizado e seguir agonizando – ou aguardar para ver se o Brasil vai se aproximar do modelo político com o qual ele colaborou no Chile.
Nessa virada para 2021 os militares retornam ao centro do poder, mesmo já estando formalmente vinculados ao governo. E agora com as aspirações antidemocráticas revitalizadas. O descalabro do governo e a completa inaptidão do presidente à democracia o faz aspirar a um golpe de Estado. Ninguém duvida que Bolsonaro quer dar um golpe e assumir o poder total e que só não o fez por incapacidade. É que a aspiração por si só não basta. Ela tem se convertido em impulsos trapalhões e ações semicoordenadas, como a comunicação direta com jovens oficiais e com policiais de baixa patente. Claro que há, além da aspiração, a oportunidade do apoio residual de um terço da população e da sedução que ele conseguiu exercer sobre os homens de farda. Há um imaginário bolsonarista nas polícias de todo o país que se verifica na identificação estética e moral do baixíssimo oficialato com a figura pessoal de Bolsonaro e no acato conjuntural irrestrito do médio e alto oficialato ao seu discurso.
Os militares são quem, combinando as aspirações do presidente com a oportunidade de apoio de 30% da população e a adesão dos homens armados do país, são capazes de conceber um projeto de golpe e executá-lo. Diferente dos episódios golpistas anteriores, o objetivo imediato do iminente seria a manutenção, não a tomada do poder. Sem os militares, Bolsonaro não conseguiria transformar a sua aspiração em projeto. Sem Bolsonaro, os militares não conseguiriam que um projeto de golpe tivesse oportunidade dentro da democracia. A união de Bolsonaro com os militares é a consumação de um golpe adjacente que, por estranho que pareça, a democracia enseja contra si mesma. Sim, a democracia que nunca barrou Bolsonaro e que nunca inibiu institucionalmente as Forças Armadas de investir, pelas margens do poder civil, e tomá-lo de volta.
Nesse momento, as forças que se articulam para inibir o golpe não encontram respaldo na oposição partidária ao governo, que não pensa em outra coisa senão nas articulações para 2022. Parte da imprensa tem prestado um importante serviço em alertar o perigo, mas não tem sido suficientemente enfática em denunciar os porta-vozes também da imprensa que entoam os clarins do golpismo pelo enaltecimento irrestrito a Bolsonaro. O STF, praticamente sozinho nessa empreitada, ameaça tropeçar nas próprias pernas, o que seria a gota necessária de querosene para o incêndio antidemocrático. Felizmente, um golpe ainda visto como uma aventura extremamente arriscada por parte do Estado Maior – estamento que segue sendo um contrapeso à inclinação castrense do assalto ao poder.
Bolsonaro age como quem nada tem a perder. Um golpe de Estado com a orquestração das Forças Armadas e o apoio das Forças Auxiliares seria para ele o próprio paraíso. Há que se dizer e denunciar isso exaustivamente. Não é que já haja um golpe em marcha. O que há são condições factíveis e agentes conscientes e interessados em sua execução.
Tiago Medeiros é doutor em Filosofia pela UFBA. Professor do Instituto Federal da Bahia. Membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (IFBA) e do GT Poética Pragmática (UFBA).