A nova aparição de Elena Ferrante

A nova aparição de Elena Ferrante
A pesquisadora e crítica literária Fabiane Secches, autora de 'Elena Ferrante -Uma longa experiência de ausência' (Foto: Fabio Audi)

 

O frenesi do lançamento de A vida mentirosa dos adultos (Intrínseca, tradução de Marcello Lino), primeiro livro de Elena Ferrante após a tetralogia napolitana, foi cercado por enorme expectativa: muitos se perguntavam se a autora italiana seria capaz de superar a própria obra prima. Temos, agora, uma Giovanna adolescente que, ao escutar de seu pai que é feia, empreende uma busca a suas origens, à origem de sua família, personificada por tia Vittoria, com quem é comparada. Ambientada em Nápoles como a tetralogia, a procura entabulada pela protagonista nos faz voltar a perscrutar temas caros a Ferrante, como feminilidade, desejo e as ambivalências na amizade entre mulheres.

Elena Ferrante publica sob pseudônimo desde 1992, quando lançou Um amor incômodo, mas foi só com a publicação da tetralogia napolitana que a busca pela pessoa por trás do nome se intensificou. Pode não ser coincidência que justamente A amiga genial, que atingiu a impressionante marca de 16 milhões de cópias vendidas, tenha levantado suspeitas de uma escrita autobiográfica, por mais estranho que isso soe em se tratando de uma identidade que insiste em permanecer oculta. A psicanalista, crítica e pesquisadora de literatura Fabiane Secches já nos apontou que encarar Ferrante como personagem que se expande dos livros até à autoria é uma das maneiras de se dissolver esse estranhamento.

Autora do brilhante Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (Claraboia, 2020), mergulho profundo e poético com o olhar da psicanálise, Secches consagrou-se como a maior especialista em Ferrante no Brasil e provavelmente uma das maiores em escala mundial. Na conversa a seguir, ela analisa alguns aspectos de A vida mentirosa dos adultos e comenta questões literárias levantadas pela obra da autora ― e personagem ― que, sob pseudônimo, segue nos fazendo ver a complexidade, o assombro e a potência da literatura e da mulher.

Cult – A recepção do lançamento pode ser influenciada pelo fato de que agora já não é Elena quem  narra, mas Giovanna? O elemento autobiográfico ou sua suspeita conferiria, em tempos de superexposição, uma força maior à narrativa, ou seria o contrário, a verdade literária de Ferrante que construiria a necessidade de uma vida real que o amparasse no imaginário do leitor? Não fica claro quem narra A vida mentirosa dos adultos, quem a narradora se tornou ao narrar. Seria esse um espaço deixado aberto por Ferrante para que ali ela mesma pudesse continuar a caber?

Fabiane Secches – A vida mentirosa dos adultos é um romance de qualidade literária acima da média da literatura contemporânea, mas concordo que não alcança a complexidade da tetralogia napolitana, com suas múltiplas camadas de leitura. Na recepção da tetralogia, a confusão entre a autora (Elena Ferrante) e a narradora (Elena Greco) embaralhou um pouco as fronteiras entre realidade e ficção. Mas se acreditarmos que Ferrante é, mais do que um pseudônimo, também uma espécie de personagem, uma criação literária, então a equação vai se tornando mais e mais sofisticada. De todo modo, a força de sua obra não se apoia apenas nessa perna. Se a gente pensar nos livros Dias de abandono e A filha perdida, por exemplo, temos outras questões constitutivas, que deram origem a romances que considero memoráveis.

Nas sociedades pré-modernas, o jovem era concebido apenas como alguém que ainda não era adulto, e a juventude era, segundo Franco Moretti, invisível e insignificante. O mundo capitalista desestabiliza esse lugar, e a juventude passa a carregar grande valor simbólico no embate entre velho e novo, personificando justamente a novidade, o próprio elemento desestabilizador. Hoje, a tensão entre velho e novo não se extinguiu, e o romance de formação nunca deixou de viger. Esse tipo de romance sofreu alterações na atualidade? A destruição que parece resultar do embate encontra aqui alguma expressão específica? Como esse elemento de ruína apareceria em A vida mentirosa dos adultos, que também poderia ser caracterizado como um romance de formação?

Franco Moretti escreveu um livro muito importante para quem se interessa por esse gênero — O romance de formação (Todavia). Para quem quiser saber um pouco mais sobre as suas transformações ao longo do tempo, é uma ótima leitura. Em A vida mentirosa dos adultos, temos uma jornada de formação às avessas, com a descida de Giovanna a uma espécie de inferno (talvez uma referência a Dante Alighieri e sua A divina comédia). Ao contrário das protagonistas anteriores de Ferrante — que nascem pobres e ascendem socialmente, carregando essa marca ao longo da vida —, Giovanna é filha de professores, cresce numa área abastada de Nápoles, no alto da cidade, e só vai conhecer melhor o bairro pobre em que vive a família paterna, em especial uma tia maldita, quando é adolescente. No lugar do percurso de ascensão e construção social, marca comum aos primeiros romances de formação, é na descida e na demolição que está a jornada de aprendizado de Giovanna.

Conhecer a fundo um autor é perscrutar suas referências, ir ao encalço do caminho literário trilhado por ele, destrinchar suas influências. Seu livro Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência assumiu essa empreitada de modo exemplar, realocando a obra de Ferrante como a parte visível de um universo literário que a sustenta, desde a literatura clássica até à moderna, ainda que esse universo não se manifeste necessariamente de maneira explícita. Como essas referências aparecem em A vida mentirosa dos adultos? Há alguma diferença entre a tetralogia e o último livro quanto a esse escorar-se na tradição?

As relações de intertextualidade estão sempre presentes nas obras de Ferrante, mas a autora maneja essas relações com mão leve: se a gente pega essas referências, a leitura pode ganhar profundidade, mas, se não as alcança, ainda assim consegue acompanhar o desenrolar do texto e do enredo. Em A vida mentirosa dos adultos, há um eco do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, logo nas primeiras linhas: Giovanna conta que ouviu o pai dizer para a mãe que ela era muito feia, lembrando o que Emma Bovary disse sobre a própria filha no clássico de Flaubert. Também vejo elementos de A divina comédia, como mencionei antes, dos mitos clássicos e até mesmo bíblicos — a religião ganha um destaque inédito nesse novo romance. Se a gente continuar pensando, vai encontrando outros fios para puxar, outros paralelos para estabelecer — incluindo aí algumas aproximações entre livros diferentes da própria Ferrante. A tia de Giovanna, por exemplo, tem algo de Lila e de Melina, da tetralogia napolitana, e também da “pobre coitada”, de Dias de abandono.

Alguns objetos perpassam a obra de Elena Ferrante, repetem-se dentro de um romance e ecoam em outro. Em A amiga genial, a mãe de Lenu oferece à filha um bracelete quando ela está se sentindo feia e não quer ir a um evento da biblioteca da escola; em História de quem foge e de quem fica, Lenu menciona o mesmo bracelete ao encontrar-se com Nino. É como se a peça instaurasse um diálogo entre as narrativas, abrisse caminhos de reconhecimento e estranhamento. Como você vê esse fenômeno? 

Concordo com a sua interpretação sobre a força dos objetos nessas histórias, da rica carga simbólica que Ferrante atribui a eles. Em alguns casos, ela faz isso de uma maneira mais difusa e enevoada, um pouco mais ambígua e, por isso, mais interessante. Em outros casos, a relação é mais direta, como acho que ocorre em A vida mentirosa dos adultos. A pulseira, que funciona quase como um fio condutor da narrativa, talvez seja um artifício muito demarcado. Por isso, pode ter um efeito menos inquietante do que as bonecas da tetralogia, por exemplo.

A sexualidade, em A vida mentirosa dos adultos, parece explicitar-se mais que nos outros livros de Ferrante. Até a boneca torna-se um “falo” quase literal ao ser utilizada pelas amigas, na infância, para o prazer genital. Também aparece de forma mais evidente a sensualização da relação de amizade entre amigas mulheres, que era antes mais sutil. Seria possível dizer que a amplificação da manifestação erótica pode lançar uma luz de interpretação também erótica onde, a princípio, não havia sexualidade abertamente manifesta, como na relação entre Lila e Lenu?

Gosto mais da ambivalência das obras anteriores, como a que encontramos na relação das protagonistas da tetralogia napolitana e também entre Leda e Nina, personagens de A filha perdida, por exemplo. Mas há quem prefira A vida mentirosa dos adultos justamente por abraçar alguns temas mais abertamente. Talvez a coisa em si não seja mérito nem demérito. Acho que cada obra acaba encontrando seus leitores. A gente se aproxima de um livro porque ele nos convida ou desafia. Eu me sinto mais convidada e desafiada pela tetralogia napolitana, mas fico contente de poder ler um novo romance escrito pela Ferrante, ainda que o considere aquém da obra anterior.

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Cena de “My brilliant friend”, baseada na obra de Elena Ferrante e adaptada pela HBO (Divulgação)

Na tetralogia, a cidade é o lugar do desamparo e do abrigo, da violência e da intimidade. É o lugar ambivalente que ecoa a ambivalência que os personagens experienciam. A relação com a cidade, a mesma Nápoles, é muito diversa em A vida mentirosa dos adultos, assim como a relação com o dialeto. A imagem do Vesúvio, vulcão silente, mas sempre ameaçador aos pés da cidade, teria uma simbologia parecida nas duas obras? Quais seriam as semelhanças e diferenças?

O que muda, essencialmente, é a posição de origem da narradora e isso muda quase tudo. As personagens da tetralogia napolitana nascem e crescem pobres, num bairro operário localizado na periferia de Nápoles, e se confrontam com essa marca, cada uma à sua maneira, até a velhice. Já Giovanna nasce e circula num ambiente diferente da cidade, quase numa outra Nápoles. Tem uma experiência social e cultural muito distinta, pois ainda que não seja exatamente rica, tem acesso a livros desde pequena, é muito protegida e estimulada, e só mais tarde vai conhecer o embate que constitui o mundo, e também a cidade em que vive. É mais ou menos na idade com que Elena Greco sai do bairro para frequentar a nova escola que Giovanna faz o caminho oposto ao se aproximar da tia Vittoria.

Você viajou para Nápoles quando estudava A amiga genial durante o mestrado. Poderia contar um pouco dessa viagem? Como foi estar no cenário real de um mundo inventado? Você chegou a conhecer também os lugares onde se passa A vida mentirosa dos adultos? Há sobreposições de localização dos dois romances?

Para nós, que vivemos no Brasil, é mais fácil entender essa vertigem da sobreposição entre “alto” e “baixo” que constitui a obra de Ferrante. Sabemos que a riqueza e a pobreza coexistem e se retroalimentam, que basta cruzar um quarteirão, às vezes nem isso, para que contrastes econômicos sejam facilmente notados. Nesse aspecto, acredito que a Nápoles de Ferrante não é muito diferente dos grandes centros urbanos brasileiros, principalmente se pensarmos nos lugares em que a beleza da natureza e a hostilidade humana convivem de muito perto — como Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza. Por isso, senti que a cidade tinha algo de familiar. Mas, claro, também existem diferenças significativas. Ao longo da história, Nápoles foi palco de muitos embates. Embates de pessoas contra pessoas, como as guerras (da Segunda Guerra Samnita, em 327 a.C., à Segunda Guerra Mundial, no século 20 d.C), ou da natureza “contra” as pessoas, como os terremotos e as erupções vulcânicas. Por tudo isso, Nápoles acaba sendo o cenário perfeito para as histórias que Ferrante deseja contar. Mais do que isso, como você disse antes, a cidade e as personagens até mesmo se confundem, têm características compartilhadas.

Ainda que Elena Ferrante se deixe ver — ou se faça construir — por escrito, por meio das palavras, um espaço permanece aberto com sua recusa em aparecer, em ser também imagem, biografia, presença. Você acredita que seus livros, de fato, preencham suficientemente tal espaço, ou deixem-no vazio na justa medida? Será que a crítica literária poderia ocupar, mesmo que em parte, esse lugar? Ele seria apenas um vazio, ou também uma falta?

Se pensarmos, por exemplo, na repercussão do texto escrito por James Wood (um dos principais críticos literários contemporâneos, colaborador da New Yorker e professor de literatura na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos) e em como esse texto determinou a recepção da obra de Ferrante fora da Itália, talvez seja uma hipótese. Ainda assim, gosto de pensar que cada leitura, por mais atenta e cuidadosa, por mais criteriosa e experiente que seja, é apenas uma interpretação. Portanto, felizmente, continuamos com muito espaço para explorar. Com certeza, é um espaço que coloca uma série de questões e desafios incomuns, mas são questões e desafios que podem iluminar e enriquecer a nossa experiência de leitura.

Natalia Timerman é escritora, médica psiquiatra e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Em sua pesquisa, investiga relações entre a obra de Elena Ferrante e a obra de Karl Ove Knausgård.


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