Um intérprete modernista do Brasil

Um intérprete modernista do Brasil
O historiador Sérgio Buarque de Hollanda na entrada de sua casa na Rua Buri, em São Paulo (Acervo Família Buarque de Hollanda)

 

Sérgio Buarque de Holanda forma, com Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., a tríade de “intérpretes do Brasil”, responsáveis pelo que hoje entendemos por identidade nacional. Os três surgiram para nossa cena intelectual após a Revolução de 30, procurando dar uma resposta teórica às mudanças sofridas pelo país sob o impacto econômico da industrialização e sob o impacto cultural do modernismo. Em três obras clássicas – Casa grande & Senzala (1933), Raízes do Brasil (1936) e Formação do Brasil contemporâneo (1942) –, eles suplantaram uma historiografia descritiva e uma sociologia positivista (que via determinismos climáticos e raciais por trás de fatos históricos), adotando uma visão culturalista (no caso de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda) ou socioeconômica (no caso de Caio Prado Jr.) do processo de formação do Brasil.

Essa renovação teórica, sintonizada com a antropologia e a sociologia anglosaxãs, não apaga contudo as diferenças específicas entre eles. Se Caio Prado Jr. pode ser mais facilmente classificado como um historiador marxista, atento aos condicionamentos econômicos da luta de classes, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda partilham um mesmo horizonte temático de preocupações e se distinguem mais nitidamente pelo viés interpretativo, pelas tendências políticas e, last but not least, pelo estilo literário.

Discípulo dos antropólogos Malinowski e Franz Boas (que rejeitavam uma leitura evolucionista – de matriz biológica ou étnica – da vida social), Gilberto Freyre dissecou a peculiaridade do brasileiro a partir da miscigenação racial e de sua base material – a monocultura dos latifúndios. Seguramente o melhor “escritor” dentre os três, Freyre criou em Casa grande & Senzala um gênero singular de reflexão, oscilando constantemente entre a análise conceitual e uma prosa memorialística repleta de reminiscências de sua infância nos engenhos pernambucanos. (Não à toa, Roger Bastide usou a expressão “sociologia proustiana” para definir o livro de 1933)

Mas a forma nostálgica e voluptuosa pela qual ele transforma a promiscuidade entre a casa grande e a senzala num emblema de nossa identidade teria desdobramentos ideológicos pouco felizes: afinal, se a valorização do “caráter nacional” já era – do ponto de vista conceitual – um resquício da noção evolucionista de raça no coração de uma abordagem culturalista, a glorificação de nossa sensualidade mestiça também serviria para legitimar ideologicamente a conservação de uma infra-estrutura patriarcal e autoritária intrinsecamente ligada à “brasilidade”, levando Gilberto Freyre a apoiar o ditador português Salazar (cujo domínio colonial na África expandia o “luso-tropicalismo”) e o regime militar brasileiro.

Em seu principal livro – Raízes do Brasil –, Sérgio Buarque de Holanda faz eco às preocupações metodológicas de Gilberto Freyre, dando um peso equivalente a razões de ordem cultural e econômica na tentativa de definir nossa estrutura social e política. À diferença do autor de Sobrados e mucambos, porém, Sérgio Buarque teve como matriz fundamental a sociologia alemã, com a qual mantivera contato em 1929- 1930, quando foi para a Alemanha como correspondente de jornais brasileiros e da Associated Press, assistindo a aulas de Friedrich Meinecke, Ferdinand Tönnies e Max Weber.

É a partir de Weber que Sérgio Buarque cria uma tipologia cujos pares de contrários permitem detectar algumas constantes que perpassam o tecido social do Brasil desde a colônia até o século 20: o trabalhador e o aventureiro; o urbano e o rural; a burocracia e o caudilhismo; a impessoalidade e a afetividade. Tais conceitos mapeiam os traços deixados pela cultura ibérica na estrutura social brasileira e são uma anatomia de nossa identidade: personalismo, carência de uma “moral do trabalho”, baixa capacidade de organização social, prevalência do prestígio pessoal sobre o princípio de hierarquia e – como consequência paradoxal desse sentimento da falta de fundamento do dever – obediência cega à arbitrariedade de ditaduras e de instituições como o Santo Ofício.

Como observa a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias em ensaio do livro Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil (Fundação Perseu Abramo), “em oposição às tendências racionalizadoras do capitalismo moderno apontadas por Marx e Weber, Sérgio Buarque documentou no Brasil republicano a persistência do compadrio e de laços de relacionamento afetivo e pessoal” – magnificamente expressos na célebre imagem do “homem cordial”.

Pelo fato de perceber as linhas de força da identidade nacional a partir de seus opostos, a partir de uma relação dialética, Raízes do Brasil é um livro atento às transformações pelas quais o país passa no início do século 20 – e, nesse sentido, é muito mais contemporâneo de sua própria época do que Casa grande & Senzala, com sua descrição de um universo estático. Da mesma forma, por ter afirmado mais integralmente o caráter dinâmico da história e por ter uma visão menos idílica do Brasil, Sérgio Buarque assumiu publicamente posições diametralmente opostas às de Gilberto Freyre. Exemplos disso são a Carta de declaração de princípios contra a ditadura Vargas que ele assinou em 1945, seu ingresso no Partido Socialista Brasileiro, sua solidariedade aos intelectuais perseguidos pela ditadura militar e seu papel na fundação do PT, em 1980, dois anos antes de sua morte, em 4 de abril de 1982.

Esse paralelo não estaria completo, porém, se não tocasse ao menos superficialmente nas relações de Sérgio Buarque com a literatura. Se é verdade que ele nunca atingiu a densidade poético-narrativa de Casa grande & Senzala, pode-se dizer em contrapartida que sua obra manteve um diálogo muito mais cerrado com a tradição literária do que a obra de Gilberto Freyre. Visão do paraíso, por exemplo, é um mergulho na mitologia dos colonizadores em que a pesquisa histórica é indissociável de um estudo das formas de transmissão dos arquétipos do imaginário edênico – como demonstra o ensaio de Luiz Costa Lima publicado neste dossiê, em que o crítico aborda a influência do filólogo e romanista alemão Ernst Robert Curtius no livro de Sérgio Buarque.

Mas é em seus textos jornalísticos que se descobre que Sérgio Buarque foi não apenas um crítico literário militante, mas um leitor da envergadura de um Otto Maria Carpeaux ou de um Sérgio Milliet. Essa atividade jornalística começaria ainda em São Paulo (onde Sérgio Buarque nasceu), com colaborações nos periódicos A Cigarra, Revista do Brasil e Correio Paulistano, e continuaria no Rio de Janeiro, para onde ele vai em 1921, matriculando-se na Faculdade de Direito e trabalhando como representante da revista Klaxon, fundada pelos modernistas da Semana de 22. Nas décadas seguintes, Sérgio Buarque manteria – paralelamente a cargos ocupados no Instituto Nacional do Livro, na Biblioteca Nacional, e já de volta a São Paulo em 1946, no Museu Paulista e na USP – uma intensa colaboração em jornais como Diário de Notícias, Diário Carioca, Folha da Manhã, Correio Paulistano e Diário de S.Paulo e no “Suplemento Literário” de O Estado de S.Paulo. Esses textos críticos de assombrosa erudição, publicados entre 1920 e 1959, estão reunidos nos dois volumes de O espírito e a letra (Companhia das Letras), minuciosamente organizados e anotados por Antonio Arnoni Prado.

Estas reflexões – que vão de Metastasio e Goethe a André Gide e Ezra Pound, de Cláudio Manuel da Costa e Machado de Assis a Clarice Lispector e João Cabral, de Auerbach a Mario Praz – são testemunhos de um crítico que levava para o microcosmo da exegese textual suas preocupações de historiador, desvelando na superfície da escrita os processos de formação da obra literária e de sua inserção numa tradição literária que expressa de forma privilegiada as identidades nacionais. Nesse sentido, Sérgio Buarque de Holanda é o mais modernista dos “intérpretes do Brasil”.

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