O cimento do método em ‘Visão do paraíso’

O cimento do método em ‘Visão do paraíso’
Sérgio Buarque de Hollanda em registro do documentário "Raizes do Brasil", 2003 (Reprodução)

 

Digo sem que me perguntem: tendo ao centro Raízes do Brasil (1936), Do império à república (1972) e Visão do paraíso (1958) formam o tripé das obras magistrais de Sérgio Buarque de Holanda. Se do primeiro e do segundo ainda se pode dizer que, basicamente, só interessam aos que se preocupam com o Brasil, a ausência da Visão do paraíso na bibliografia internacional se faz em detrimento desta. Independente, porém, de sua expansão temática, singulariza-o a questão do método que o funda.

Ao enunciar a questão, corremos atualmente o risco de provocar um ataque de alergia. Seriam dele responsáveis a burocracia universitária e os assim chamados órgãos de fomento à pesquisa. Ante a sombra – e como ela é extensa – das duas, falar- se entre nós em método antes parece uma provocação ao estado de nervos. Esquecemos a dignidade do nome método, as polêmicas que tem ensejado desde Descartes, a importância capital de suas repercussões por tão-só nos lembrarmos dos apavorantes relatórios e suas ridículas perguntas, a serem semestralmente preenchidos. Sou, entretanto, obrigado a recordar esse pesadelo porque é bem no método que subjaz à Visão do paraíso que quero pensar.

Consultando o que se escreveu do livro, destaco passagem de Maria Yedda Linhares. Em pequena nota publicada em 1977 na Gazeta Mercantil, afirmava a historiadora:“Diríamos que se situa como história das mentalidades, ao procurar reconstituir o universo intelectual do fim da Idade Média ocidental em contato com o novo mundo do Renascimento”.

Sim, a expressão “história das mentalidades” é correta, embora demasiado vaga, sem que isso prejudique a reconstituição aludida. É ainda de considerar que, insurgindo-se contra a distinção absoluta entre Idade Média e Renascimento, Sérgio Buarque escrevera: “A noção de que existiria uma fratura radical entre a Idade Média e o Renascimento […] tende a ser superada em grande parte da moderna historiografia pela imagem de uma continuidade ininterrupta”.

A afirmação de “uma continuidade ininterrupta” chega a ser surpreendente. Não era o próprio autor que, falando das atitudes de espanhóis e portugueses nos primeiros séculos da colonização americana, dissera que vicejava “facilmente, entre eles, um modo aparente de ver a natureza que consiste antes em ver através e apesar da natureza”? Ora, relacionando o modo de ver ibérico à maneira analógica e não-descritiva, não estava ele implicitamente apontando para dois modos de lidar com a natureza, de que o segundo, patrocinado pela ciência, fora cerceado na Idade Média? Duas conclusões provisórias se impõem: (a) os colonizadores ibéricos mantinham o modo analógico, que dominara quase de forma absoluta durante o Medievo e que, de fato, se prolongava em muitos dos pensadores reconhecidos do Renascimento. Portanto, um claro divisor de águas não poderia ser mantido entre aqueles dois períodos; (b) no entanto, a legitimação do analógico estava com seus dias contados e o ver experimental, o ver por cálculos e instrumentos ganhará cada vez mais terreno, fosse com a propagação do racionalismo cartesiano, fosse com a mais circunscrita das experiências científicas (cf. O nascimento da ciência moderna na Europa, Paolo Rossi, EDUSC). Que tem isso a ver com a referida “história das mentalidades”? Sua excessiva generalidade a torna imprópria para compreendermos o que o autor da afirmação discutida estaria fazendo. Imprópria porque vaga para entendermos o que teria motivado o autor para o uso de expressão surpreendente, “continuidade ininterrupta”. Se não tivermos outro recurso de método, teremos de baixar a cabeça e, simplesmente, manter nosso intrigado espanto.

Há, entretanto, um outro caminho. No longo prefácio que o autor acrescentaria à segunda edição do livro, há uma observação que merece nosso reparo:

“O tema deste livro é a biografia de uma dessas idéias migratórias, tal como se desenvolveu a partir das origens religiosas ou míticas (capítulos VII e VIII), até vir implantar-se no espaço latino-americano, mormente no Brasil. Para isso foi de grande serventia o recurso à Tópica, no sentido que adquiriu esse conceito, tomado à velha retórica, desde as modernas e fecundas pesquisas filológicas de E.R. Curtius, onde, conservando-se como princípio heurístico, pôde transcender aos poucos o cunho sistemático e puramente normativo que outrora a distinguia, para fertilizar, por sua vez, os estudos propriamente históricos.”

Como os pesquisadores nacionais não têm a desculpa de que o livro de Curtius, Europäische Literatur und Lateinisches Mittelalter (Literatura européia e Idade Média latina), lhes fosse inacessível, pois, graças à iniciativa de Augusto Meyer, esteve traduzido desde 1957, não terá sido por uma questão material que não têm prestado atenção ao que se transcreve. Em vez contudo de brigar com fantasmas, é preferível que enuncie como pretendo integrar a observação de Sérgio Buarque a seu próprio trabalho.

Minha hipótese assim se formula: foi o estudo da tópica por Curtius que serviu de principal ferramenta para que Sérgio Buarque pusesse em movimento e conseguisse um modo de articular sua imensa erudição, convertendo-a em um precioso instrumento interpretativo sobre a forma mentis dos colonizadores ibéricos.

Poder-se-á lamentar que o autor não houvesse voltado à importância da tópica na construção de seu objeto ou que nada tenha acrescentado como a trabalhara ou mesmo dela parcialmente discrepara. Mas quem nos assegura que o autor, no caso qualquer autor, reconhecesse exatamente seus passos? A exemplo do semeador de Vieira, o autor, qualquer autor, se assemelha ao semeador que planta, sem saber de antemão o que irá frutificar. É ao leitor interessado que cabe verificá-lo.

Que temos portanto aqui senão um primeiro leitor que notou a possível fecundidade de uma semente – a tópica acentuada por Curtius – que se apresta a distribuir com outros leitores a tarefa de comprovar se aquele grão de fato frutificou e como? Para tanto, contudo, uma tarefa prévia se impõe. Como Ernst Robert Curtius não é o pão nosso de cada dia, precisamos antes ter dele uma informação razoável, que, a seguir, nos permita restabelecer seu hipotético diálogo com Sérgio Buarque. Dividiremos, por isso, o que se segue em duas partes. Na primeira, apenas informativa, ofereceremos uma exposição mínima do romanista alemão. Na segunda, já então tratando da mão do semeador, pensaremos sobre a prática diversa que ensejou.

Vindo pois à primeira parte, destaquemos algumas passagens do Literatura européia e Idade Média latina (reeditado pela Edusp em 1996). A primeira não tem o historiador como objeto de eleição:

“Entre o livro e a imagem ressalta […] diferença essencial. (O livro) mostra a possibilidade de ter-se, em qualquer tempo, Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare ou Goethe ‘por inteiro’. Além disso, […] significa o ‘presente eterno’, essencialmente peculiar às Letras, que a literatura do passado pode continuar cooperando no presente. Tal é o caso de Homero em Virgílio […] Ésquilo, Petrônio, Dante, Tristan Corbière e a mística espanhola em T.S. Eliot.”

Aparentemente ociosa, a passagem terá um papel capital para Curtius: sua indagação parte da procura de descoberta do segredo da vitalidade permanente das letras. Vitalidade, por certo, dentro de um certo espaço, o espaço do Ocidente. Pois a mentalidade de Curtius permanecia a do pré-guerra, quando o mundo se reduzia à Europa. Era este o mundo que, em seu livro, ele gostaria de ressuscitar. Como fazê-lo? Dentro dele, a Idade Média funcionaria como uma ponte de duas mãos; uma remeteria de seu estabelecimento para os séculos vindouros; a segunda, ainda não entrevista no trecho a seguir, remeteria para trás, para o seio da Antiguidade:

“Só com Carlos Magno ficou completamente constituída a criação histórica que denomino ‘Idade Média latina’. Na literatura histórica este conceito não é usual. Com ele, designo a contribuição de Roma, de sua ideia de Estado, de sua Igreja, de sua cultura na formação de toda a Idade Média, e portanto de um fenômeno muito mais amplo do que a sobrevivência da língua e da literatura latinas. No decurso de muitos séculos, compreendera Roma a sua existência estatal como empreendimento universal. Já Virgílio o expressa em célebres versos da Eneida. Desde Ovídio (Arte de amar, I, 174) forma-se a equação orbis (mundo) e urbs (Roma), que depois, no tempo de Constantino, passa a inscrição de moeda; isto é, publicismo oficial; e ainda sobrevive na fórmula da cúria papal urbi et orbi. Com a elevação do cristianismo a religião do Estado, assume o universalismo de Roma duplo aspecto: ao lado do Estado, surgiu a pretensão do domínio da Igreja. Como continuação de Roma, a Idade Média tomou conhecimento da filosofia da história agostiniana.”

A terceira passagem há de ser resumida. É no passado longínquo que Curtius identifica o corpo então pulsante da retórica:

“Retórica quer dizer ‘arte da oração’; designa, pois, segundo a sua significação fundamental, o método de construir a oração artisticamente. Desse gênero desenvolvem-se, com o correr dos tempos, uma ciência, uma arte, um ideal de vida, uma educação básica da cultura antiga. De formas diversas, durante nove séculos, a retórica vincou a vida espiritual dos gregos e romanos. A sua origem ressalta aos olhos. Lugar: a Ática: tempo; depois da guerra persa.”

Duas catástrofes então sucedem: a passagem da Ática para Roma; depois, de Roma para a Idade Média. Com a primeira, sucedida no século II, a retórica passa a ter um caráter meramente pragmático. Adaptada a três fins, a que correspondiam três gêneros – o forense, o deliberativo, o laudatório –, com o ocaso da liberdade na Grécia e em Roma “o discurso forense perdeu quase sua significação”. A eloquência deliberativa, de sua parte, deixa de ser um instrumento político para se converter em recurso didático. No tempo do Império, “o estudante coloca-se na situação de qualquer personalidade conhecida do passado e reflete como deve proceder”.

Nada estranho pois o que sucede com o segundo colapso: “A Idade Média não sabia como aproveitar sua eloquência política e forense”. Resta, pois, no fim da Antiguidade e durante a Idade Média, o discurso laudatório, adaptado às circunstâncias da morte, das núpcias, do nascimento, da saudação etc. Em suma, do sistema da retórica antiga, a Idade Média é capaz de herdar apenas restos e migalhas. São, contudo, esses restos que importarão ao romanista. É fácil entendê-lo. Como todo discurso “deve tornar aceitável uma proposição ou causa”, precisará valer-se “de argumentos dirigidos à razão ou ao coração do ouvinte”. Tais argumentos são então separáveis do conjunto do discurso; funcionam como peças soltas, passíveis de ser recombinadas. Em latim, se chamavam loci communes. Como a expressão se desgastou, bem como seus correspondentes nas línguas modernas, emprega-se o correspondente grego, topos. E, paciente, Curtius exemplificava: “Um topos muito difundido é a ‘incapacidade de satisfazer as exigências do assunto’; um topos do discurso laudatório: ‘louvor dos antepassados e seus feitos’. Na Antiguidade colecionaram-se esses topoi.

Em síntese, a retórica tanto se expandira – não esqueçamos a observação do jovem Nietzsche, ainda professor de retórica: o texto antigo é tão bem construído que nos custa crer que fosse oral – que, embora reduzida a um gênero secundário, o discurso laudatório, era capaz de converter suas peças móveis, os topoi, em elementos que se expandiam para fora do edifício primitivo, e as ruínas da retórica se ressoldavam em poesia, penetrando “em todos os gêneros literários”. Mas isso não se dera por acaso. “No antigo sistema da retórica, é a tópica o celeiro das provisões. Contém os mais variados pensamentos: os que podem empregar-se em quaisquer discursos e escritos em geral”. E, talvez, porque soubesse que escrevia para um público que acabara de sofrer a mais terrível tragédia da vida nacional – a derrota na guerra, seguida de ocupação –, Curtius procurava a formulação mais simples. É assim que exemplifica com o verso de Horácio:

“Prolongada velhice consumiu Titono” (Longa Tithonum minuit senectus).

O topos, no caso, se concentra em Titono: “Ele foi outrora um dos mais belos jovens dos tempos heróicos (irmão de Príamo) e por isso Eos o rapta (‘La concubina de Titone antico’, Purgatorio, 9, 1). Ela pediu a Zeus que lhe concedesse a imortalidade, mas, como deixara de pleitear ao mesmo tempo a eterna juventude para o seu protegido, veio a ficar decrépito com a idade. A esposa fugiu-lhe e, a seu pedido, o transformou numa cigarra.”. Pois tanto nomes próprios, designações de situações ou estados anímicos podiam engendrar topoi – “O Elísio (com primavera eterna, sem perturbações meteorológicas), o Paraíso terrestre, a Idade de Ouro; bem como potências vitais: o amor, a amizade, a inconstância” – e sua abundância não diminuía porque se quebrara o vaso da retórica. Se os tribunais já não funcionavam, se a vida política já não frequentava as praças públicas, em troca os homens continuavam a precisar ativa ou passivamente da persuasão e do deleite da palavra. A tópica respondia a essa necessidade. Uma pequena amostra é dada pela relação dos impossibilia, pelo topos do mundo às avessas, pelo ubi sunt, popularizado tanto por Villon como por compositores da música popular brasileira, pelo locus amoenus, que se industrializaria tanto pelo cinema de Hollywood quanto pela telenovela etc.

Passemos ao segundo esclarecimento. Nele, nos perguntamos como Curtius sistematizou a tópica e como sua máquina operacional funcionou.

Publicado em 1948, a Europäische Literatur encontrou naquele Alemanha arrasada um campo particularmente propício. E isso por duas razões. Primeiro, porque, com o nazismo, a história literária alemã se convertera em manual nacionalista. Embora tenha havido o estímulo do próprio regime, para essa meta já encaminhava a historiografia do século XIX ao afirmar que “a ideia da individualidade nacional seria a parte invisível de todo fato (Hans Robert Jauss, A história da literatura como provocação à teoria literária, editora Ática; a parte grifada é citação de W. von Humboldt). Embora a crítica a essa concepção de história e de seu ramo literário fosse anterior à ascensão do nazismo, à derrocada do regime correspondia a sensação de alívio por scholars e estudantes ao se depararem com uma abordagem, como a de Curtius, que desconsiderava qualquer coordenação da literatura com a história. Daí que seu livro de 1948 serviu de guia, como dirá Jauss, a “uma legião de pesquisadores epigônicos de topoi”. Em segundo lugar, porque um método que afastava a obra literária da história oferecia ao pesquisador, particularmente naquele instante, a oportunidade de desfazer a mancha negra da Alemanha e, sobretudo, de reintegrá-la no espírito do Ocidente, desde suas orgens gregas e romanas. Como ainda diria Jauss, que, em 1967, ao assumir a cátedra na Universität Konstanz, se convertera no porta-voz contra a Toposforschung, o método proposto por Curtius “neutraliza a praxis da vida na história, pois busca o centro de gravidade do saber na origem ou na continuidade supratemporal da tradição e não no caráter atual e único dos fenômenos literários”.

Em suma, por quase dez anos, a obra de Ernst Robert Curtius, de inegável qualidade, conheceu o prestígio extra concedido pelo serviço ideológico que a conjuntura histórica lhe ajudou a prestar.

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Feita com o propósito apenas de facilitar o entendimento do receptor, a apresentação acima corre o risco de aumentar sua confusão. Estaríamos por acaso dizendo que Sérgio Buarque se confundira e lançara mão de uma metodologia que, conscientemente, afastava o papel da história? Ou, tendo em conta o vezo dos últimos anos, que o aproveitamento por Sérgio Buarque de uma forma de pesquisa que singularizava a obra literária estaria antecipando a tentativa contemporânea de romper as fronteiras distintivas entre história e literatura?

Formulamos essas questões de início para mais rapidamente negá-las. Para demonstrar a sua improcedência, temos, no entanto, algumas tarefas a cumprir. A saber: (a) de que modo as pesquisas filológicas de Curtius podem ter-lhe parecido fecundas no desenvolvimento de uma tema que, embora noutra formulação, já aparecia no capítulo “O semeador e o ladrilhador”, do Raízes do Brasil?; (b) como dez anos antes da aula inaugural de Hans Robert Jauss, Sérgio Buarque se descartou do anteparo ideológico a que a obra de Curtius se amoldara? Ambas as questões são de fácil resolução. E tornarão ainda mais fácil àquela referente à dissolução da diferença entre abordagens histórica e literária. Venhamos então por partes.

(a) O que para Curtius eram os topoi são para Sérgio Buarque os motivos edênicos. Para reproduzirmos sua própria síntese:

“Tentou-se mostrar, ao longo destas páginas, como os descobridores, povoadores, aventureiros, o que muitas vezes vêm buscar e não raro acabam encontrando nas ilhas e terra firme do Mar Oceano, é uma espécie de cenário ideal, feito de suas experiências, mitologias ou nostalgias ancestrais” (Visão do paraíso, grifo meu)

Tal cenário ideal havia criado raízes nas populações cristianizadas da Europa pela leitura ou divulgação da exegese, pelos primeiros pensadores da Igreja, das descrições do Velho Testamento, sobretudo do livro do Gênese. Assim “a tendência para situar o Dourado às cabeceiras do São Francisco” já derivava da geografia do Éden, cuja transposição para o Novo Mundo era facilitada pelo livre trânsito da linguagem analógica, hoje desterrada, como o autor bem notava, “pela preeminência que alcançaram as ciências exatas”. Daí a manutenção do mito das mulheres guerreiras, as Amazonas, sobre o qual já discutiam os primeiros doutores da Igreja; do rio de quatro bocas que sairia do Paraíso Terrestre, a suposição de que aí vigorava um clima nem quente, nem frio (non ibis frigus, non aestius, com que, em suas Etimologias, Isidoro de Sevilha descrevia o horto de delícias do Paraíso). Sérgio Buarque, extremamente minucioso do exame da migração destes e muitos outros motivos edênicos, não esquece de transcrever passagem da “Relación del tercer viaje” de Colombo:

“Grandes indiçios son estos del Paraíso terrenal, porqu’el sitio es conforme a la opinión d’estos sanctos e sacros theólogos. Y asimismo las señales son muy conformes, que yo jamás leí ni oí que tanta cantidad de agua dulçe fuese así adentro e vezina con la salada; y en ello ayuda asimismo la suavíssima temperançia” (“Relación del tercer viaje”, 1498, em Cristóbal Colón. Textos y documentos completos, Alianza Universidad, Madri).

Está tão convencido o descobridor ser terra conhecida aquela a que chegara que o repete em carta de 1502 ao papa Alexandre VI:“Creí y creo  aquello que creyeron y creen tantos sanctos y sacros theologos, que allí en la comarca  es el Paraíso Terrenal” (“Carta ao papa Alejandro VI”).

Em vez de multiplicarmos os exemplos, como se o Visão do paraíso fosse uma obra rara, importa-nos reiterar a correspondência: assim como para Curtius, os topoi eram fagulhas que ou se desprendiam do antigo sistema retórico, de suas partes e gêneros, ou derivavam da própria poesia para de novo se incorporarem ao antigo habitat retórico, assim também, embora em extensão sensivelmente menor, os motivos edênicos derivavam da hermenêutica autorizada sobretudo do Gênese e se incorporovam ao imaginário dos povos cristianizados. (O prefácio à segunda edição mostraria, ademais, que os povoadores ingleses do Norte da América não eram a seu respeito menos isentos que espanhóis e portugueses.)

A terra nova, em suma, não era vista como uma página em branco, mas, ao contrário, passível de ser decifrada a partir da cena edênica, que seus intérpretes tomavam como fisicamente real. Mas, ainda quando não tivesse sentido detalhá-la, cabe acentuar que, na Visão do paraíso, tal cena não constitui uma cartografia grosseira ou demasiado genérica. Mostra-se, ao contrário, como o próprio motivo das aves palradoras, a exemplo do papagaio, de tanto prestígio entre os europeus nos séculos da descoberta, era derivado da mesma cena originária. “Não admira – diz o historiador – uma tal associação quando se conhece a crença de que todos os bichos falavam no começo do mundo e só perderam a fala em conseqüência do Pecado.” Do mesmo modo, a ave fênix, sobre cuja capacidade de retorno à vida discordavam os santos padres, encontrava seu correspondente no rouxinol. “O Padre Simão de Vasconcelos, que pretende ter visto com seus mesmos olhos o beija-flor em vias de ter completada a metamorfose, ainda meio borboleta e meio ave, é um dos arautos dessa mais notável maravilha.”. Por outro lado, nada há de estranho que tais motivos fossem reforçados por crenças indígenas semelhantes.

Não abordamos o capítulo sobre a metamorfose das frutas, limitando-nos a apontar para a permanência do papel decisivo de uma forma mentis educada dentro dos princípios da analogia. Assim, diz Sérgio Buarque:“O que procurava Frei Antônio do Rosário nas frutas do Brasil […] não eram, em verdade, as frutas, era o que a simples aparência  delas pudesse dissimular: seus secretos significados e seu hieróglifo misterioso.”

Supondo que os exemplos discutidos, embora poucos, sejam bastantes para compreendermos a sensibilidade que o padrão dos topoi fora capaz de despertar na visão recuperadora daquele Novo Mundo, passemos ao segundo ponto. Sua formulação é elementar: como o historiador teria, ao mesmo tempo que apreendia a riqueza da frente que a tópica lhe apresentava, evitado que ela fosse um elemento perturbador da desejada compreensão histórica? Basta lermos a Visão do paraíso com a atenção devida para que a dúvida perca sua razão. Desde o capítulo “O semeador e o ladrilhador”, o autor ressaltara a diferença entre as colonizações espanhola e portuguesa. De posse agora de uma bibliografia de que não dispunha em 1936 [ano de publicação de Raízes do Brasil] e havendo amadurecido sensivelmente o tema, tratava-se então de mostrar como os dois colonizadores não elaboraram do mesmo modo a matéria contudo comum dos motivos edênicos. Transcrevo apenas passagem de seu capítulo final:

“(Aos portugueses) não os inquieta vivamente, ao menos no Brasil,  a insopitável esperança de impossíveis, que tão freqüentemente acompanha, entre outros povos, as empresas de descobrimento e conquista para além das raias do mundo conhecido. São razões menos especulativas, em geral, ou fantásticas, do que propriamente pragmáticas […].”

Ou, como dirá com certa frequência, em vez da explicação maravilhosa ou fantástica, preferida pelos espanhóis, recorrem os portugueses à sua “atenuação plausível”. Ora, seria indigno de um historiador da estirpe de Sérgio Buarque, embora outros, brasileiros e hispano-americanos, o tenham feito, justificar a discrepância entre os dois colonizadores por elementos de ordem étnica ou mesmo de uma dita essência nacional. Não se contentando em descrevê-la, sua razão só poderia ser de cunho histórico-social. É o que declara passagem em que enriquece sua interpretação com o suporte de Federico Chabod:

“Aquela visão relativamente plácida das terras descobertas, que se espelha nas descrições de seus viajantes, já se ressente, por menos que o pareça, de um conservantismo fundamental. […] O seu é um verismo naturalístico, puramente descritivo, constante de fragmentos e falho, por assim dizer, de perspectiva: característico do cronista e, em verdade, do escritor medieval é precisamente o acúmulo de minúcias justapostas.”

Esse “conservantismo fundamental”, que os alheava da linguagem experimental porque “o acúmulo de minúcias” não visava a mostrar a captar a estrutura material do objeto, contara, para se preservar, com um acidente capital. Enquanto em janeiro de 1531, a frota de Martim Afonso arribava à costa do Brasil, em busca da ambicionada “costa do ouro e da prata”, esperável de acordo com os motivos edênicos, Pizarro, um pobre aventureiro espanhol, atravessava a Cordilheira e descobria, contra as orientações geográficas vigentes, o império Inca. O fracasso dos portugueses, contraposto ao êxito espanhol terão conseqüências quase imediatas:

“Não é por acaso se, com breve intervalo, ao descobrimento das riquezas do Peru se segue uma participação mais imediata do Estado português nos negócios do Brasil, através do governo-geral: intervalo de apenas quatro anos, mas o suficiente para ganharem corpo e melhor se publicarem as notícias daquele achado.”

Duplo efeito, um de ordem político-administrativa – ao passo que do lado português, estimula-se a participação da coroa no governo central da colônia e, do lado espanhol, mantém-se a iniciativa privada –, outro da ordem do imaginário: entre os espanhóis, mantém-se o prestígio do maravilhoso e fantástico, enquanto, entre os portugueses, “esse elemento fantástico, se existiu no lado do Dourado brasileiro, nenhum texto quinhentista o certifica”. Não é acidental que a última passagem esteja formulada quando Visão do paraíso apenas se iniciava. Com efeito, o contraste entre o êxito de Potosí, acompanhado da visão imperial castelhana, construtora de cidades, colégios e praças, que pareciam, como já dizia no Raízes, querer repetir a experiência da metrópole, e a experiência portuguesa, rasteira, agarrada à costa, presa ao princípio de entreposto comercial, será reiterado em diversos planos. Mas o que nos importa é acentuar a linha direta entre o ânimo castelhano e a permanência do motivo do fantástico versus a centralização administrativa e a “atenuação possível” dos motivos edênicos. Por que isso nos importa? Em primeiro lugar, porque, embora o historiador não tenha desenvolvido o argumento por esse aspecto, ambos os colonizadores se mantinham igualmente afastados da linguagem experimental; porque, então, independente de seu êxito ou fracasso, se mantinham presos à forma mentis do analógico. Daí, se o ostentoso vinha a ser explorado mesmo no caso de um flor corriqueira como a granadilla, o seu correspondente, em português, o maracujá, ou passava em silêncio ou arrastava o peso do pedestre realismo medieval.

Através, pois, de uma expressão exuberante ou prosaica, os dois conquistadores legaram a suas colônias o mesmo desinteresse pelo experimental que será, de fato, o sua herança. Contudo, como o livro examinado não caminha neste sentido, devemos dar realce a um segundo elemento. Ao tratarmos da tópica de Curtius, chamamos a atenção para seu descaso quanto aos fatores históricos de diferenciação. Ora, que significa a ênfase de Sérgio Buarque no contraste entre as duas colonizações senão sua explícita discrepância quanto ao romanista alemão? Pois, na Visão do paraíso, em vez de neutralizada, a história é o que, ao ser indagada, mostra a formação de conjuntos divergentes. Se, por conseguinte, a postulação por Sérgio Buarque de uma “continuidade ininterrupta” entre a Idade Média e o Renascimento se dera por influência do modo como Curtius concebera a tópica, isso teria engendrado apenas uma designação infeliz, extremamente minoritária quanto aos ganhos alcançados pela comparação entre atuação da tópica e migração dos motivos edênicos.

Resta-nos a última questão que nos propusemos. É sua formulação básica: pela aclimatação à pesquisa histórica da tópica, tal como elaborada por Curtius, estaria Sérgio Buarque antecipando os que hoje consideram história e literatura gêneros de uma mesma formação discursiva? (Diga-se de passagem: ao contrário do que pensará uma leitura apressada, essa nunca foi a posição assumida por Hayden White em Meta-história, livro publicado no Brasil pela Edusp). A questão, na verdade, sequer aparece em Sérgio Buarque. Mas, sendo aqui posta, pode-se-lhe responder a partir da indagação anterior: a partir de um arsenal semelhante ou mesmo idêntico de motivos, a história escava conjuntos diferenciados. Não se chegaria a resultado diverso se se insistisse na função persuasiva da retórica e, então, se dissesse, que, embora por caminhos diversos, história e literatura visam a persuadir. A resposta continuaria estéril. Como todo enunciado visa a algum fim, busca algum modo de persuadir. Por este aspecto, não só a história estaria próxima da literatura como toda fala, desde que suficientemente organizada, seria persuasiva. O que, sendo verdadeiro, não passa de uma banalidade. Em suma, podemos esquecer a última questão. O peso do livro de que tratamos não admite tal leveza.  

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da PUC-RJ, autor de Os limites da voz (Rocco), Vida e mímesis (Editora 34) e Mímesis – Desafio ao pensamento (Civilização Brasileira)

 

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