Distraction, Deception & Damares

Distraction, Deception & Damares
Não se enganem. A Hidra de Bolsonaro tem muitas cabeças, todas elas de ofídio (Arte Revista CULT)

 

Hoje as minhas bolhas no Twitter e no Facebook amanheceram completamente trabalhadas na Teoria do Despiste. Sim, o nome em português é “despiste”, mas podem continuar chamando de “distração” mesmo que eu sei que é mais descolado falar o mais coladinho possível no inglês e “distraction” dá, efetivamente, um up na linguagem.

Despiste e diversionismo são do vocabulário da arte da guerra. Você faz o seu adversário prestar atenção em uma coisa para que não note a outra coisa, muito mais decisiva, que você está fazendo em outro lugar. Os aliados fazem finta de que vão invadir por Calais, mas o plano mesmo é a Normandia. Com o despiste, o engodo (deception), o inimigo leva uma bola nas costas que só percebe tarde demais. Sim, eu sei, o exemplo não é muito convincente, porque dizem que Hitler já tinha sacado, mas, enfim, vocês entenderam.

Hoje foi o dia da admoestação, que dos “nós táticos” da comunicação política, de repente, entendemos todos: enquanto vocês ficam aí se divertindo, em memes e posts, com o grotescodamarismo, o guedismo, que é o que realmente importa, nos come o fígado, na maciota. Ou, em uma versão que se considera mais inspirada e completa: a ministra Damares, o ministro Arnesto (o que desconvida chefes de Estado) e o ministro Vélez-Rodriguez são uma cortina de fumaça para que a mídia e a esquerda gastem energia e lacradas, esquecendo com isso o ministro Guedes, que seria o bolsonarismo para valer.“O bolsonarismo feio, sujo e malvado da guerra cultural é um despiste, guardem as energias para o que realmente importa”, dizem.

Ah, amigos, nada é tão simples quanto parece.

Em primeiro lugar, não se enganem. A Hidra de Bolsonaro tem muitas cabeças, todas elas de ofídio. Quem foi que estabeleceu esta hierarquia segundo a qual a pauta econômica ultraliberal é mais importante e pode ser mais letal que a pauta moral ultraconservadora? Tudo depende da posição de cada um no xadrez político e da vida, não? Bolsonaro veio para desmontar tudo aquilo que considera o legado do longo período de governos de centro-esquerda e esquerda no Brasil. O bolsonarismo parece uma justaposição de partes (conservadores de direita, ultraliberais na economia e pauta anticrime), mas é, antes, uma convergência. Vi amigos que eram apenas liberais em economia irem pouco a pouco deixando o verniz civilizatório de pessoas “viajadas” e começarem a compartilhar críticas ao “politicamente correto” e a chamar o welfare state de comunismo. Assim como vi conservadores religiosos que por anos apoiaram as políticas sociais e hoje são ardorosos privatistas e antiestatistas. Então, não tenho assim tanta certeza de que tem uma parte do bolsonarismo que é só espuma para tirar a atenção do que realmente importa. Ousaria dizer, ao contrário, que tudo importa. E muito.

Em segundo lugar, revela-se neste caso mais uma vez a curiosa teoria de que a atenção e a fala pública não apenas têm um enorme efeito sobre os fatos políticos, como devem ser economizadas, para que não faltem quando delas precisarmos para os assuntos efetivamente importantes. Não deixa de ter razão quem imagina que as dinâmicas da atenção e do debate público tenham alguma influência para constranger os políticos e as instituições ou, no limite, para o sucesso ou o fracasso de iniciativas governamentais, projetos e políticas públicas. Mas isto, naturalmente, tem limites. Muitos e tantos.

Primeiro, porque nem tudo na política é comunicação. Há ritos e processos previstos, há o exercício regular da autoridade dos detentores de mandatos e cargos e, sobretudo, há acordos e negociações que passam longe da comunicação pública e que, ao fim e ao cabo, é que decidem as coisas. Segundo, porque os primeiros meses de governo são como fogo ladeira acima e água ladeira abaixo, não há força que resista. Falar e, eventualmente, debochar, a gente pode, mas daí a acreditar que serão uns posts da bolha de esquerda e de centro em mídias sociais ou alguns comentários de jornais de antibolsonaristas a alterar o rumo das coisas, parece-me delirante.

O sommelier de pautas é um tipinho muito conhecido em mídias sociais, na esquerda e na direita. Para ele, as pessoas estão sempre consumindo os temas ruins e de baixa qualidade, em vez de falar de X.  Sendo que, no caso, X é o tema que o crítico do gosto alheio recomendaria como o único realmente merecedor de consideração. Ele acredita que a atenção pública não apenas está, por maldade ou estupidez, no lugar errado, mas que é um recurso limitado que não pode ser distribuído entre vários assuntos. Em vez de ele falar do que lhe dê na telha e deixar os outros em paz, o papel do sommelier de pautas é denunciar o fato de que as pessoas não estão falando do que interessa a ele, ou não falem o suficiente (e nunca é suficiente) ou com a ênfase apropriada. Claro, ele acredita que falar de Y e Z é uma forma maldosa de se preterir X.  Não importa quais sejam os tópicos no debate público ou a pauta dos jornais do dia, lá estará um sommelier de temas a denunciar, excitadíssimo, a terrível e decisiva lacuna na atenção pública, no debate nacional e na cobertura da mídia.

Acontece, porém, que a atenção pública não é um bem assim tão escasso. Que as pessoas podem conversar sobre vários temas ao mesmo tempo. Que temas vão e vêm segundo dinâmicas muito próprias da atenção pública, que funcionam em moto contínuo. Que se pode muito bem falar do pacote de maldades de Paulo Guedes, da versão tupi da Ave Maria de Ernesto Araújo e do dresscode estilo “O Conto da Aia” enunciado por Damares Alves, tudo ao mesmo tempo, de forma jocosa e séria, e segundo o gosto de cada um.  Como disse muito bem Pedro Munhoz em um post esta semana, “se todo mundo do Facebook parasse de zoar a fala da ministra Damares e começasse a discutir, em textos densos, convincentes e acessíveis os malefícios de se ficar sem direitos trabalhistas e sem aposentadoria, como deseja o senhor Bolsonaro, estaríamos todos na mesma merda em que estamos hoje, só que um pouco mais mal-humorados”. Pois é.


> Leia a coluna de Wilson Gomes toda sexta-feira no site da CULT

(2) Comentários

  1. Que texto maravilhoso! Não havia parado para pensar dessa forma. O que mais me pegou foi o conceito de sommelier de pautas. Foi o que mais vi nas redes sociais dos conservadores que sigo. Eles chamado atenção para assuntos mais importantes, tentando deslegitimar as sátiras. O humor tem um papel muito importante em nossa sanidade.

  2. E digo mais, a mania de criar uma hierarquia de assunto s a partir da maior ou menor importância a ele atribuído retira da realidade o seu caráter de continuidade.. de ser uma mesma coisa manifestada em segmentos diferentes… fragmentação de assunto transforma o entendimento da realidade num self service que permite que o cidadão incauto e inculto se esbalde no consumo de ideias heterogêneas, passando a servir-se de cristianismo e tortura tal qual alguém que se serve, no mesmo prato, de feijoada e lasanha.

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