Nietzsche, um eugenista?

Nietzsche, um eugenista?
O filósofo Friedrich Nietzsche (Foto: Reprodução)

 

É inegável que uma das metas da filosofia nietzschiana é a elevação do homem. Ela aparece de várias formas no seu pensamento, ligada a concepções tais como o trágico, o gênio ou grande homem, vontade de potência, eterno retorno e transvaloração de todos os valores. Mas isso faz de Nietzsche um eugenista? O filósofo alemão defendia o controle da reprodução para manutenção de uma raça pura e a eliminação dos inferiores?

Apesar de encontrarmos alguns excertos isolados que nos lembram Arthur de Gobineau, quando, por exemplo, o filósofo alemão indica como decadente “o chandala, o homem da mistureba”, em Crepúsculo dos ídolos (1888) e O anticristo (1888), há outros que nos indicam o contrário: “Onde as raças se misturam, fonte de grande cultura” (anotação privada de 1885/1886). De qualquer forma, acreditamos que o sentido da filosofia de Nietzsche aponta para a mudança, para o constante surgimento de novas possibilidades da criatividade humana, e não para a cristalização de valores de uma raça ou de uma nação. O pensamento nietzschiano não pode ser confundido com ideias racistas, antissemitas ou relativas a um arianismo ou germanismo, nem com projetos eugenistas tais como aqueles dos darwinistas sociais não-liberais (Francis Galton, por exemplo) ou dos nacional-socialistas alemães.

 

Os ideais de uma raça pura ou de
uma raça superior que deva
dominar todas as outras, assim como
a ideia de uma meta suprema da
humanidade e mesmo de progresso,
são considerados por Nietzsche estratégias
de conservação de valores esgotados
e estagnados.

 

 

A vida, para o filósofo alemão, move-se pela autossuperação contínua, mas o enfraquecimento das forças criativas da cultura europeia fez com que atuassem mecanismos de conservação, como é o caso do nacionalismo e do antissemitismo. E Nietzsche foi crítico desses dois movimentos. Contra o último, disse: “É certo que os judeus [por serem a raça mais forte e mais rija que vive na Europa], se quisessem – ou, se fossem obrigados a tal, como os antissemitas parecem querer –, poderiam desde já ter a preponderância, mais ainda, falando de modo completamente literal, o domínio da Europa; é também certo que não trabalham nem fazem projetos nesse sentido. Ao contrário, o que pretendem e querem, no momento, até com certa insistência, é ser absorvidos e integrados à Europa, pela Europa” (Para além de bem e mal § 251, 1886). Em cartas, Nietzsche critica fortemente seu cunhado, Bernhard Förster, antissemita que criou uma colônia para preservação da pureza ariana no Paraguai (Nueva Germania) em 1887; empreendimento que faliu em 1889 e causou o suicídio de Förster. Sobre o nacionalismo, afirmou: “Graças ao alheamento mórbido que a insânia do nacionalismo introduziu, e ainda introduz, nos povos da Europa, graças igualmente aos políticos de visão curta e mãos rápidas que hoje estão por cima devido a essa insânia e que não percebem em absoluto até que ponto a política segregacionista que praticam não pode, necessariamente, ser mais do que uma política de interlúdio, – graças a tudo isso […] são passados por alto ou reinterpretados de maneira arbitrária e mentirosa os indícios mais inequívocos nos quais se expressa que a Europa quer ser una” (Para além de bem e mal § 256).

Na doutrina da vontade de potência, que é uma interpretação e não uma descrição do que é o mundo, os impulsos em luta por mais potência não são corporais nem espirituais, não representam essências, mas um processo em que quantidades de potência se modificam na relação com as outras. Os impulsos são quanta de potência. Para um impulso crescer em potência, deve limitar o crescimento da intensidade de outros impulsos. O exercício da dominação em uma hierarquia de impulsos, portanto, envolve a obtenção contínua de mais potência. Dessa forma, um impulso ou um conjunto de impulsos para manter seu comando não deve conservar-se, mas, ao contrário, expandir-se. Essa expansão é a própria autossuperação. Assim, a criação de novos valores depende de uma luta de impulsos: o domínio absoluto de um sobre os outros causa a estagnação. Zaratustra exorta: “que o valor de todas as coisas seja renovado por vós! Para isso deveis ser combatentes! Para isso deveis ser criadores!”. Um processo dinâmico garante o revezamento de comando e de obediência, o que propicia a transformação. Assim, da mesma forma que o nacionalismo, o pensamento de um progresso ou de uma evolução em direção ao ser perfeito foi produzido por aqueles que necessitam de conservação: o progresso tende para o dia no qual não haja nada a temer.

Nietzsche, portanto, não propõe um tipo ideal que deva ser o ponto culminante do desenvolvimento da espécie humana. Ele não dá características definidas em seu esforço de elevação do homem, a não ser a criatividade para superar os valores vigentes. De outro modo, estaria fixando um telos ou um ideal a ser atingido. O filósofo alemão não acredita no progresso da humanidade como um todo, pois considera apenas o surgimento de homens diferentes. Além disso, o homem superior ou a exceção (ou mesmo o homem inferior e a aberração), ao surgir, pode sucumbir ao peso numérico da média ou ainda se desagregar devido a sua maior complexidade. Não há nenhuma garantia de que a exceção sobreviva e, ainda mais, exerça um papel de destaque em seu meio. Não há coincidência entre ser melhor e ser dominante. O desenvolvimento não produz melhoramentos no sentido absoluto, não há um sentido absoluto para as coisas.

 

Nietzsche não clama pela
solução do “problema da raça”
e pela eliminação dos adversários,
sua filosofia não busca a
estabilidade, a imobilidade.

 

 

O objetivo de um tipo fixo é desprezado por Nietzsche. O tipo proposto por ele, inclusive através de uma seleção cultural, é aquele capaz de uma superação contínua. Assim como um impulso absolutamente dominante destrói o organismo, um tipo absoluto provocaria estagnação. Pelo mesmo motivo, a luta por dominação não pode levar à aniquilação dos combatentes. Essa perspectiva aparece, por exemplo, em um curto texto sobre a educação agonística grega que foi publicado postumamente (Cinco prefácios a cinco livros não escritos, “A disputa de Homero”, 1872). O filósofo aponta a presença de duas Éris, que é uma divindade primordial grega, filha da Noite, acompanhava Ares nos campos de batalha, incitando os homens ao combate: uma pré-homérica, que conduz os homens à luta aniquiladora e hostil, e outra homérica, que, através do ciúme e da inveja, estimula os homens à disputa. Esta última seria incorporada à pedagogia do período de maior esplendor da cultura helênica: todo talento deve desdobrar-se lutando, mas nunca deve ser atingido o domínio de um só. Não deve haver a ambição do desmedido e do incomensurável, o que é castigado pelos deuses: cada um deve desenvolver-se até o ponto que constituísse o máximo de benefício para a pólis. A disputa era estimulada, mas só até o ponto de não causar danos para a coletividade.

Além de institucionalizar a proteção dos “superiores”, um projeto eugenista esquematiza a erradicação dos “inferiores”, dos “doentes”. A degeneração, para Nietzsche, é um passo fundamental para a superação. O que conserva um organismo pode, ao mesmo tempo, impedir o seu desenvolvimento, enquanto que uma degenerescência pode funcionar como um estímulo para as outras partes, promovendo a transformação. Assim, um obstáculo, uma dificuldade deve ser propositada e continuamente procurada: pensamos ser esse o papel da seleção cultural nietzschiana. Portanto, ao invés de se investir na eliminação daqueles considerados incapazes, fracos ou doentes, deve-se procurar a superação, ou melhor, a autossuperação.

O projeto nietzschiano de elevação cultural não está direcionado ao controle político, mas à autodisciplina. Nietzsche não busca um programa político: esse processo de autossuperação ocorre no nível do próprio organismo, não devendo ser institucionalizado. As críticas que Nietzsche faz ao Estado, especialmente ao totalitário, nos permite afirmar que a seleção não deve estar nas mãos dessa instituição. O Estado, para o filósofo alemão, é outro aparato que visa à conservação porque nele ocorre a cristalização do domínio. Zaratustra chama o Estado de “novo ídolo” e de “veneno de lento suicídio”. A imposição de obediência a um Estado como dever supremo é uma estupidez (Schopenhauer como educador § 4, 1874).

 

O filósofo alemão pretende
restituir a inocência ao vir-a-ser,
desprender-se dos valores
vigentes para criar novos valores.

 

 

Podemos entender a filosofia nietzschiana como afirmação da dinâmica da relação entre os impulsos, que não são nem corpo nem alma: a vontade de potência não é uma vontade como a dos metafísicos, ou seja, não é uma faculdade da alma ou a ação do sujeito sobre o objeto, não envolve substância e seus atributos. As características são construídas aleatoriamente no jogo agonístico dos impulsos em luta por mais potência. É ilusório querer frear esse processo e gerar formas perfeitas e eternas. O homem não tem uma natureza a ser atingida, seja ela pré-determinada ou finalidade de um processo evolutivo. O sentido da seleção cultural nietzschiana é, para nós, aquele que Zaratustra expõe em seu discurso “Da virtude que dá”, sintomaticamente proferido antes de abandonar seus discípulos e voltar à solidão de sua caverna: “Médico, ajuda a ti próprio: assim ajudas também o teu doente. Seja esta tua melhor ajuda, que ele veja com seus olhos aquele que cura a si próprio. // Mil veredas há, que nunca foram andadas ainda, mil saúdes e ilhas escondidas da vida. Inesgotados e inexplorados estão ainda o homem e a terra do homem”. O que se pretende é o estímulo das inúmeras potencialidades humanas. Não se quer a seleção de uma característica fixa e determinada, mas de todas, cada uma em seu momento, não amalgamadas em uma só, porém disponibilizadas como inesgotáveis possibilidades.

Wilson Antonio Frezzatti Jr. é doutor em Filosofia pela USP, professor associado da UNIOESTE, autor de Nietzsche contra Darwin (Loyola) e A fisiologia de Nietzsche (Unijui)


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