Punk feminista ganha força no Brasil em meio a caos político
(Arte Revista CULT)
“Por onde ando, por onde passo, é território do patriarcado/ Quer me impedir de ocupar as ruas da cidade, quer me dominar”. Os versos da música Mexe comigo, da banda paulista Charlotte Matou um Cara, não são cantadas de forma doce ou meiga. Pelo contrário. A vocalista Andrea Dip grita a plenos pulmões até chegar no refrão: “Mexe comigo que eu arranco o seu saco”.
Formada em 2015, a Charlotte matou um cara é uma das novas bandas brasileiras de punk feminista, cena que vem sendo catapultada pela internet, pelo caos político e pelo momento vigoroso que vive o movimento feminista no país. “O feminismo atual passa por um renascimento. Vivemos nele o momento do grito, de por para fora, e isso tem tudo a ver com o punk feminista, que é o grito literal”, afirma Dip.
“Grito” e “punk” são, de fato, quase sinônimos: o gênero musical nasceu nos anos 1970, época de desconfiança da juventude inglesa e norte-americana em relação às instituições estatais e ao modo de vida capitalista. Um cenário de crise econômica e fim de direitos sociais que, em alguma medida, lembra o Brasil de hoje.
“O punk surge de uma falta de crença no sistema político. São jovens que têm influências do anarquismo, e que portanto já não interpretam como bons caminhos o diálogo com o Estado e a institucionalização dos direitos sociais”, diz Regina Facchini, professora da Unicamp e autora do artigo “Não faz mal pensar que não se está só: estilo, produção cultural e feminismo entre as minas do rock em São Paulo”.
Hoje em dia, segundo Facchini, as mulheres fazem parte de um dos grupos que menos tem razões para acreditar na eficácia do Estado e das instituições – junto com a população negra e a LGBT, por exemplo. “Até o ano passado, existia uma Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com status de Ministério. Hoje, já não existe. No lugar dela, temos a ação muito intensa de parlamentares conservadores, com projetos de lei retrógrados sobre temas como aborto ou a assistência à vítimas de violência sexual. Isso já é razão o suficiente para não confiar nas instituições”, afirma.
Da desconfiança feminina, uma reação criativa ganha força: o punk feminista. Nos últimos três anos, pelo menos dez novos festivais dedicados ao gênero foram criados de forma independente em cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro – e o número das bandas acompanha o aumento da oferta de palcos.
No mesmo período, nomes como Sapataria, Bertha Lutz, Moita, Rakta e a própria Charlotte Matou um Cara iniciaram suas trajetórias e se tornaram conhecidas no circuito. Neste ano, o tema ganhará também um documentário, Faça você mesma, uma produção independente da cineasta Letícia Marques, de Florianópolis. “Há uma conexão concreta e reta entre a popularização do punk feminista e o contexto”, afirma Andreia Dip.
Professora da UDESC e autora da tese “(Re)Invenção do anarcofeminismo: anarcofeministas na cena punk (1990-2012)”, Gabriela Marques também vê na crise política um motivo para a intensificação da cena. “O punk floresce do caos. Nada mais caótico que o Brasil contemporâneo, onde percebemos cada vez mais a crise da democracia e a necessidade do ‘novo’.”
Regina, porém, explica que o caos não vem necessariamente da retração de direitos. “No governo Lula, as pessoas voltaram a desconfiar da política, que passou a ser definida pela mídia como sinônimo de corrupção. Não é à toa que, nesse período, o punk feminista teve um boom”, afirma a professora.
Mulheres no punk
O punk começou a fazer sucesso no Brasil no início dos anos 1980, quando o país passa pelo declínio da ditadura militar e a população vivia sob a pressão das manifestações pelas Diretas Já, além da ameaça constante do desemprego e da inflação. “Os jovens da redemocratização tinham uma necessidade de fazer política de um jeito que não passasse pelo Estado”, acrescenta Facchini. É dessa época o primeiro festival de punk brasileiro, o Começo do Fim do Mundo, que em 1982 inaugurou o gênero no país, apresentando bandas como a Ratos de Porão, Cólera e Inocentes.
A esmagadora maioria dos conjuntos de então era formada por homens. Isso, segundo Gabriela Marques, tem a ver com a agressividade e o enfrentamento político típicos do punk – características geralmente atribuídas aos homens. “Não era de se estranhar, portanto, que no início do punk e ainda nas décadas de 1970 e 1980 surgissem poucas mulheres na cena”, escreveu Marques no artigo “As artes de resistir: mulheres na cena anarcopunk”.
Como o punk se propunha a questionar as desigualdades e opressões de uma sociedade caótica, a exclusão das mulheres do movimento acabou se tornando um paradoxo – e foi neste período que apareceram as primeiras bandas feministas no mundo: The Bags, nos Estados Unidos; The Slits, na Inglaterra, e As Mercenárias – apontadas como pioneira no Brasil.
Foi só nos anos 1990 que o feminismo realmente se popularizou dentro do punk, com o nascimento de um subgênero chamado Riot Grrrl (algo como “garota revoltada”, em inglês) – que culminaria na terceira onda feminista. Criado em Washington, nos Estados Unidos, o movimento apresentou pela primeira vez bandas exclusivamente femininas, como Bikini Kill, Tribe 8, Bratmobile e Hole, e tinha como objetivo criar espaços seguros para as mulheres e aumentar sua visibilidade dentro do punk, criando selos de música, fanzines e festivais exclusivos para elas.
“Antes, as meninas não conseguiam ficar perto do palco porque se machucavam. Não podiam tocar porque eram ridicularizadas. O Riot Grrrl é um esforço para mudar isso”, lembra Elisa Gargiulo, vocalista da banda Dominatrix, primeira a se identificar com o rótulo Riot Grrrl no Brasil, em 1995. Ela conta que o subgênero se espalhou com facilidade pelo país por meio de videoclipes, e que foi rapidamente adaptado para a realidade brasileira – que vivia, então, uma crise política e a inflação acelerada após o impeachment de Fernando Collor.
No início, havia apenas três bandas principais de garotas no Brasil: a Dominatrix, a TPM (Trabalhar Para Morrer) e a Cosmogonias, que eram obrigadas a se apresentar em festivais mistos (e dominados por homens) por falta de opção e de formas de acessar o público feminino. Depois nasceram a Bulimia, a Kolica, a Cínica, a Frida Punk Rock, a Pulso e muitas outras. Ao longo dos anos 1990 e no início dos anos 2000, surgiram os primeiros festivais de punk feminista, o Ladyfest, o Hard Grrrls e o Festival de Rock Feminino, popularizando o gênero no país.
Mais tarde, o Riot Grrrl se transformaria em uma resposta das mulheres à cooptação dos movimentos sociais pelo governo Lula, nos anos 2000: “Essa postura do Estado acabou afastando os movimentos do cotidiano da população. Ficou muito difícil para uma garota jovem entender o feminismo, por exemplo, porque ele já não falava mais para ela, mas para o governo”, afirma Regina Facchini.
O punk feminista se tornou, então, um meio termo entre os movimentos sociais institucionalizados e o feminismo “básico”: “As letras falam de liberdade sexual, violência, relacionamentos abusivos, aborto. Imagine um show com mil meninas na plateia falando sobre machismo na cena, sobre lesbofobia, tudo antes das hashtags, antes da Marcha das Vadias. O Riot Grrrl teve um papel fundamental na vida dessas garotas”, diz Facchini.
Da metade até o final da década de 2000, a cena se desconcentrou do centro São Paulo-Rio de Janeiro e esfriou um pouco, principalmente porque alguns dos festivais, como o Ladyfest, tiveram um hiato. Hoje, porém, a cena punk feminista se intensifica como resposta às incertezas em relação ao futuro das mulheres e à perda de direitos que as ameaça.
Com as redes sociais como ferramenta facilitando a organização de festivais e as novas formas de produzir e distribuir música, o movimento ganhou ainda mais impulso. Como diz Facchini, “o punk é o tipo de movimento sempre se adapta e continua a existir.”
(1) Comentário
Vivi esse movimento punk,onde os homens predominavam hoje percebo que vem crescendo esse movimento das mulheres,gostaria muito de participar desses movimentos culturais dentro da música.