Solaris, antes e depois do Tarkovski

Solaris, antes e depois do Tarkovski
Frame do filme 'Solaris' (1972), de Andrei Tarkovski (Reprodução)

 

Quando procurei, outro dia, em um sebo carioca, por uma edição brasileira de Solaris, de Stanisław Lem (1921-2006), o vendedor perguntou se se tratava do romance feito a partir do filme. Escrito entre junho de 1959 e junho de 1960, o livro foi transformado pelos leitores, tanto da geração dos meus pais, engenheiros, quanto da minha, que conta muitos emigrantes, em uma poderosa fonte de fascinação. Traduzida em mais de quarenta línguas, a narrativa tornou-se um dos livros poloneses mais lidos no mundo e, tal como existem borboletas Nabokovia, também um asteroide foi chamado com o nome do escritor, 3836 Lem. Mesmo assim, Solaris não parece ter encontrado muitos leitores no Brasil, de modo que o título geralmente faz pensar primeiro em uma de suas adaptações cinematográficas.

Essa inversão nem deixa adivinhar a atmosfera de controvérsia que acompanhou sua famosa segunda adaptação, de 1972 (precedida por uma menos conhecida realização de Nirenburg, em 1968). Na época, o escritor polonês teria se desentendido com Tarkovski. Lem teria ficado decepcionado com as escassas visualizações do planeta, e também aborrecido por Tarkovski ter se concentrado demais no tema da culpa, fazendo “não Solaris, e sim Crime e castigo”, conforme se lê em uma entrevista concedida pelo romancista na época. Trinta anos mais tarde, Lem ficaria horrorizado com os comentários da imprensa sobre a adaptação de Soderbergh, qualificada de uma love story no espaço. O escritor nem se aventurou a assistir ao filme americano, e acho que tampouco apreciaria a capa da mais recente edição de Solaris no Brasil.

Antropocêntricos ou melodramáticos, os filmes voltam-se antes de tudo para experiências de seres humanos, vítimas de agudos sofrimentos psíquicos. Assim, quadros de luto e melancolia, as adaptações afastam-se da intenção lemiana, que lança mão de uma amarga visão do crasso narcisismo dos habitantes do nosso planeta. Formado em medicina, e leitor de Schopenhauer, Lem se empenhou em desmentir o altamente recomendável otimismo da ficção científica comunista. Para esse notório pessimista, o ser humano finge, inclusive para si mesmo, desejar o desconhecido – o linguajar não existia na época, mas hoje diríamos “alteridade” – ao passo que, na realidade, busca apenas afirmar seus próprios limites. Como o constata com uma dolorosa perspicácia um dos protagonistas de Solaris, não precisamos de outros mundos, precisamos de espelhos.

Ainda assim, a cativante originalidade do livro consiste, a meu ver, na instauração da tensão entre a negatividade do gesto crítico e o esforço da articulação estética do deslumbramento com o misterioso extraterrestre. Pois o ser verdadeiramente apaixonante em Solaris de Lem é o “oceano” (chamado assim na falta de vocabulário capaz de descrever o proteico plasma que embala o planeta). Para expressar a jubilosa exuberância de suas formas infinitamente diversas e os insólitos jogos de cores, despertados pela iluminação alternada do sol vermelho e do sol azul, as descrições, confiantes na potência da imaginação leitora, não hesitam em recorrer à teologia negativa e à estética da abjeção e do sublime. Em dezenas de páginas dedicadas a enigmáticos e monstruosos desempenhos de Solaris, tem lugar uma impressionante hibridação dos léxicos da ciência, botânica, arquitetura, zoologia, filosofia, anatomia, música e da sexualidade. E quando as palavras existentes faltam para nomear as singulares “obras”, surgem então, em puro excesso, deleitosos neologismos: “árvoremontes”, “mimóides”, “simetríades”, “vertebrídeos”, “velózios”.

Polimorfo e inescrutável como o movimento do próprio desejo, o oceano é misterioso tanto em suas intensidades quanto em suas indiferenças, esquivando-se às tentativas de captura em sistemas de conhecimento e de comunicação. Ironicamente, esse “objeto” do arrogante e invasivo desejo humano transforma-se em um inquietante agente quando adentra os sonhos dos pesquisadores da estação espacial e passa a materializar seus mais profundos anseios. Mas nem nesse caso suas intenções – se é que existem – ficam claras, possibilitando explicações que se estendem da sombria perversidade ao amor mais ingênuo. Como sugere um dos diálogos do livro, pode ser que o oceano opere no vertiginoso regime do dom e do sacrifício e não dentro dos limites da facilmente controlável lógica da troca. Alguns, como o poeta Miłosz, associaram a situação da realização dos obscuros desejos à representação do inferno e o oceano seria, então, o próprio demônio. Todavia, ao presentear o protagonista com uma materialização da amada suicida, Solaris não faz também pensar em um gato que deposita de madrugada no travesseiro do seu querido humano uma lagartixa recém-caçada? Uma das raras tentativas de representação de um ser extraterrestre que, segundo Istvan Csicsery-Ronay, chegou perto de merecer a denominação de “outro”, Solaris se abre a sentidos suficientemente versáteis para acolher os mais diversos lances de dados interpretativos, por vezes até conflitantes, como bem o mostra a discórdia entre Lem e Tarkovski. Em mais um desdobramento irônico, um dos capítulos apresenta a inconclusividade das pesquisas seculares em solarística, funcionado também como uma provocação para se enxergar em qualquer gesto interpretativo dirigido a Solaris uma forma de espelhamento.

Quanto à “atividade” do oceano, essa parece consistir apenas na livre manipulação do tempo e do espaço, o que, nem mais nem menos, torna possível a estabilização da órbita do planeta, continuamente perturbada pela ação dos dois sóis. Através de sua insondável criatividade, Solaris simplesmente furta-se às leis astronômicas. Em meio a uma pluralidade catastrófica, o oceano desafia as regras cósmicas, segundo as quais um corpo celeste que gira em torno de mais de um sol entra em situação de atração gravitacional transtornada, segue uma trajetória cada vez mais instável e acaba por explodir contra um dos seus astros. Solaris remete, dessa maneira, a uma visão da criatividade enquanto remédio, e, mais ainda, como uma forma de mediação, pois o oceano manifesta por vezes uma inconsequente atividade mimética que se assemelha a um quase-contato. Assim, nas últimas páginas do livro, mergulhado em uma tristeza inelutável após a aniquilação dos cruéis milagres, Kelvin vai ao encontro desse “outro” e acaba por entregar-se a um jogo inútil, do qual brota uma flor ausente de todos os buquês terrestres (a tradução é minha):

A onda repetiu então fielmente aquele fenômeno descoberto pelos homens há quase um século: hesitou, recuou, envolveu minha mão, mas sem tocá-la, de modo que entre a luva e o interior da concavidade, que logo mudou de consistência, de líquida ficando quase carnosa, permaneceu uma fina camada de ar. Ergui o braço bem devagar e a onda, ou, antes, seu esguio tentáculo, também foi para o alto, sem deixar de embalar minha mão com aquele quisto translúcido verde sujo. Levantei-me, pois não conseguia estender mais o braço, e o fio de substância gelatinosa esticou-se como uma corda vibrante, mas não quebrou; a base da onda alongada, como um estranho animal esperando quieto o fim dessa experiência, aconchegou-se aos meus pés (de novo, sem tocá-los). Era como se do oceano tivesse brotado uma flexível flor, cujo cálice rodeou meus dedos e, sem tocá-los, tornou-se sua impressão em negativo.

Olga Kempinska é doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2008).


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