Feminismo negro: para além de um discurso identitário

Feminismo negro: para além de um discurso identitário
Grupo Women's Liberation marcha em apoio ao Partido dos Panteras Negras, em 1969 (Reprodução/David Fenton)

Falar sobre diferentes momentos do feminismo negro exige uma leitura para além do que encontramos em compêndios e obras sobre feminismo. Primeiro, porque em muitos destes ignora-se a contribuição das mulheres negras para a luta feminista. Segundo, porque é preciso também transcender o que se entende por um discurso legitimado.

Explico: no período da escravidão no Brasil, mulheres negras eram empreendedoras, quituteiras, por exemplo, e utilizavam o dinheiro para comprar a alforria de pessoas negras escravizadas. Do mesmo modo, muitas contribuíram para a organização de levantes contra a escravidão, assim como para as estratégias de manutenção de quilombos. Há registros de mulheres negras que praticavam abortos como forma de luta porque não queriam ver seus filhos nascerem escravizados. Se olharmos com mais atenção para a história das mulheres negras no Brasil e em outros países onde houve escravidão negra, podemos constatar que elas já desempenhavam um papel importante de luta e sobrevivência do povo negro.

Importante também ressaltar o papel de destaque de mulheres negras de terreiro, os saberes produzidos nesse espaço e a figura de liderança que ocupam historicamente na resistência e manutenção cultural. É importante pontuar de que feminismos falamos quando ignoramos ou tornamos invisíveis essas histórias e narrativas. Nesse sentido, podemos dizer que essas mulheres negras, que eram tratadas e vistas como mera mercadoria e que lutavam pela libertação de todo um povo, formaram uma espécie de primeira onda.

Em 1851, Sojourner Truth, nome adotado a partir de 1843 por Isabella Baumfree, foi uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos da mulher que nasceu em um cativeiro em Swartekill, Nova York. Truth, que também foi oradora, fez seu discurso mais conhecido, chamado “E eu não sou uma mulher?” – que inspirou o primeiro livro da feminista negra bell hooks, publicado em 1981 – na Convenção dos Direitos da Mulher, na cidade de Akron, em Ohio, nos Estados Unidos. Feito de improviso, o discurso foi registrado por Frances Gages, feminista e uma das autoras de The history of woman suffrage, de 1881, grande compêndio de materiais sobre a primeira onda feminista. Antes disso, no entanto, o discurso havia sido registrado por Marcus Robinson na edição de 21 de junho de 1851 do jornal abolicionista The Anti-Slavery Bugle. Em um trecho, Truth dizia:

“Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as mulheres do norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, muito em breve, ficarão em apuros. Mas em torno de que é toda essa falação? Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir em uma carruagem, é preciso carregá-las quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir em carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! […] Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?”

Esse discurso, ainda no século 19, já evidencia um grande dilema que o feminismo viria a enfrentar: o tema da interseccionalidade, ou seja, a renúncia de uma suposta estrutura universal para levar em conta fatores como raça, orientação sexual, identidade de gênero – algo atribuído mais fortemente à terceira onda do movimento, sendo Judith Butler um dos grandes nomes. O que percebemos com o discurso de Truth e com as feministas negras estadunidenses, como bell hooks e Audre Lorde, é que na década de 1970 elas já denunciavam a invisibilidade das mulheres negras como sujeitos do feminismo. O debate interseccional já vinha sendo feito, o problema era a sua falta de visibilidade. Por mais que não a consideremos feminista na acepção do termo, Truth é exemplo de que a interseccionalidade existiu tanto na primeira quanto na segunda onda do feminismo, apesar de ambas não serem caracterizadas por este tipo de reivindicação. Da mesma forma, várias mulheres negras no movimento sufragista foram apagadas da história, como explicita Angela Davis no capítulo “Mulheres trabalhadoras, mulheres negras e a história do movimento sufragista”, na edição brasileira de Mulheres, raça e classe.  O que se pode dizer, afinal, é que não existem ondas específicas em relação ao feminismo negro porque as mulheres negras foram silenciadas no interior do movimento, já que suas lutas não eram consideradas feministas mesmo quando produziam e criavam, historicamente, formas de resistência. O peso de uma voz única e o não reconhecimento de outras vozes criam uma hierarquia de quem pode falar e de qual história merece ser ouvida e catalogada.

O negro do “feminismo negro” inscrevia uma multiplicidade de experiências ainda que articulasse uma posição particular de sujeito feminista. Além disso, ao trazer para o primeiro plano uma ampla gama de experiências diaspóricas em sua especificidade tanto local quanto global, o feminismo negro representava a vida negra em toda sua plenitude, criatividade e complexidade.

Nos Estados Unidos, o feminismo negro ganha força a partir da década de 1970 com a produção intelectual de feministas negras que denunciam a invisibilidade das mulheres negras como sujeitos do feminismo. De acordo com hooks, mulheres negras e brancas compartilham a luta contra o sexismo. O pessoal não se sobrepõe ao político, como muitos interpretam a máxima “o pessoal é político”, mas o pessoal é ponto de partida para conectar politização e transformação da consciência, isto é, ler criticamente a experiência de opressão das mulheres. A conexão entre teoria e prática é uma das dimensões importantes do feminismo negro; considera que o aprofundamento do pensamento também é mediado pela militância, e que a inter-relação entre ambas é parte importante no desenvolvimento do pensamento feminista negro, além de também pontuar a sua própria condição de mulher negra como elemento importante para o desenvolvimento de suas ideias.

Segundo Ana Cláudia Jaquetto Pereira, ao incorporar a interseccionalidade como princípio normativo de seu projeto político, o feminismo negro molda uma visão de democracia que se demanda não apenas de instâncias representativas, mas também requer a permeabilidade do Estado aos grupos subordinados para que eles participem de iniciativas da sociedade que visam à redistribuição dos participativos para decisão da alocação de recursos simbólicos e materiais. Além disso, quando usado como recurso descritivo, a interseccionalidade do feminismo negro amplia o campo de visão com base no qual o estudo das relações raciais tem se firmado, permitindo compreender como a opressão racial é dependente e combinada com opressões de gênero, heteronormatividade e exploração econômica.

No Brasil, ele começa a ganhar força nos anos 1980. Segundo Núbia Moreira, “a relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabelece a partir do 3º Encontro Feminista Latino-Americano ocorrido em Bertioga em 1985, de onde emerge a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva com o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista. A partir daí, surgem os primeiros coletivos de mulheres negras, época em que aconteceram alguns encontros estaduais e nacionais de mulheres negras.

Em momentos anteriores, porém, há vestígios de participação de mulheres negras no Encontro Nacional de Mulheres, realizado em março de 1979. No entanto, a nossa compreensão é que, a partir do encontro ocorrido em Bertioga, se consolida entre as mulheres negras um discurso feminista, uma vez que em décadas anteriores havia uma rejeição por parte de algumas mulheres negras em aceitar a identidade feminista”. E isso acontecia devido ao fato de não se identificarem com um movimento até então majoritariamente branco e de classe média e pela falta de empatia em perceber que mulheres negras possuem pontos de partidas diferentes, especificidades que precisam ser priorizadas.

E mesmo entre as feministas negras é preciso reconhecer a grande diversidade que existe, de acordo com Angela Davis. Algumas se referem a si mesmas como mulheristas – usando o termo de Alice Walker –, outras são feministas, mas fazem um trabalho mais prático contra a violência sexual, outras são acadêmicas, como Patricia Hills Collins. O desafio, diz Angela, é saber como trabalhar com as diferenças e contradições: “Nós não precisamos de homogeneidade nem de mesmice. Não precisamos forçar todas as pessoas a concordar com uma determinada forma de pensar. Isso significa que precisamos aprender a respeitar as diferenças de cada pensar, usando todas as diferenças como uma ‘fagulha criativa’, o que nos auxiliaria a criar pontes de comunicação com pessoas de outros campos.”

Sobre as movimentações em relação às militantes do feminismo negro, Avtar Brah argumenta que o sujeito político do feminismo negro descentra o sujeito unitário e masculinista do discurso eurocêntrico, e também a versão masculinista do “negro” como cor política, ao mesmo tempo em que perturba seriamente qualquer noção de “mulher” como categoria unitária. Isso quer dizer que, embora constituído em torno da problemática da “raça”, o feminismo negro desafia performativamente os limites de sua constituição.

Importante notar que, ao pensar a interseccionalidade, as mulheres negras não estão pensando somente nas opressões que as afligem, o que transcende o discurso de uma luta meramente identitária: elas estão pensando um novo modelo de sociedade.

DJAMILA RIBEIRO é feminista e acadêmica, pesquisadora e mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo


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(3) Comentários

  1. No Brasil, o preconceito contra os negros é um estigma histórico. Estudos sociológicos mostram que os negros dificilmente conseguem mobilidade social, isto é, para não se dizer que seja algo impossível. Pois, os resquícios do nosso passado cruel (de negação da própria dignidade a essa raça), ainda refletem no presente como se uma marca irremovível.

  2. O texto é interessante. Pena que não tenha trazido testemunhos reais de luta de mulheres negras em várias partes do Brasil. Pena que a autora, que eu pessoalmente, aprecie mostre desconhecer a complexidade e relevância da luta identitária que nada tem de raso e muito menos de inútil. Sobretudo para uma população que até hoje mal percebe que aspectos a unem e fortalecem, além da cor da pele e de alguns outros quesitos trágicos.

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