O artista que pôs a hipocrisia no palco
Em cinco peças, Oscar Wilde fez um resumo irônico de sua época
O dândi Oscar Wilde, um dos mais finos intelectos de sua época, dono de uma pena certeira e aguda, firmou seu breve brilho resplandecente sobre as tábuas do palco. O teatro deu ao poeta, contista, ensaísta, esteta, a cereja final de uma popularidade cuidadosamente construída, e que, em um lance de tragédia grega, acabaria por tornar um fenômeno midiático sua estrepitosa queda. O irlandês Wilde estudou em Oxford e iniciou a carreira em Londres. Foi aceito nas fileiras da alta sociedade, que ele escandalizava com atitudes irreverentes e frases tão espirituosas quanto venenosas. Ao mesmo tempo em que se lançava como um homem de sociedade, iniciou a construção de uma carreira literária escrevendo para jornais e revistas e publicando poemas. Uma viagem fartamente noticiada aos Estados Unidos, em 1882, quando estava com 26 anos, consolidou sua notoriedade.
Em 1880 havia, pela primeira vez, experimentado a mão na dramaturgia. E seus começos aí não foram animadores. Escreveu Vera, ou os Niilistas. A peça, um melodrama, não fez qualquer sucesso. Montada em Nova York três anos depois, ficou apenas uma semana em cartaz. Apesar disso, mais tarde, a atriz Marie Prescott fez turnê com a obra pelos Estados Unidos. Em 1883, Wilde se aventurou pelo território da tragédia em versos com A duquesa de Parma. A peça foi produzida alguns anos mais tarde em Berlim e em Nova York sem qualquer repercussão. Em fins de 1883, para levantar dinheiro, Wilde foi obrigado a empreender um circuito pelas províncias inglesas, palestrando sobre decoração. Talvez escaldado pelo insucesso da Duquesa e de Vera, o artista não voltou tão cedo ao teatro.
As obras-primas, as cinco peças que o inscreveram na história do teatro, surgiriam no início da última década do século 19. O período de apogeu do artista foi aberto com o lançamento de seu único romance, O retrato de Dorian Gray, em 1890. Vieram, a seguir, em rápida sucessão, os textos teatrais O leque de Lady Windermere e Salomé, em 1892, Uma mulher sem importância, em 1893, e, em janeiro e fevereiro de 1895, Um marido ideal e A importância de ser prudente (ou “Leal”, ou “Franco”, ou “Sincero”, ou “Fiel”: o trocadilho do título original, The importance of being earnest, é intraduzível para nós em português).
Esse quinteto de textos abriu para Wilde uma posição única no panorama da dramaturgia. Poucos conseguiram, como ele, antes ou depois, criar uma obra que formasse de modo assim consistente um resumo tão irônico de sua época. Aí está o grande trunfo do teatro de Wilde. Não há qualquer espécie de condescendência ou complacência com as virtudes burguesas. Sua obra é elegantemente iconoclasta, derrisória, corrosiva. Faz pouco do grupo social em que vive. Aproveita as estruturas convencionais da narrativa dramática para debochar delas. Salomé é uma exagerada versão do episódio bíblico. O texto atraiu atenção por ter sido proibido pela censura inglesa na época do lançamento. Foi estreado em Paris, com Sarah Bernhardt no papel-título. A peça, que narra com profusão de imagens a paixão desvairada da princesa Salomé pelo profeta João Batista, cuja cabeça ela exigirá como prêmio depois de dançar para o rei Herodes, é hoje considerada como uma das primeiras a colocar em cena uma paixão perversa e sádica, o que lhe dá um incontestável traço de modernidade, apesar de sua linguagem propositalmente arcaica.
O leque de Lady Windermere é a primeira das comédias de costumes de Wilde que definiram sua contribuição ao teatro. A peça gira ao redor de intrigas e mentiras. Lady Windermere, sem saber que é filha da sra. Erlynne, desconfia de que seu marido é amante dessa última, devido às atenções que ele, conhecedor da verdadeira história, dedica a quem na verdade é sua sogra. Com o sacrifício da própria reputação, esta impede que a filha cometa adultério, repetindo o mesmo erro que custou seu afastamento da família. Nada distinguiria a peça de outros dramas decadentes da época se o espírito de Wilde não brilhasse intensamente nos diálogos. Os epigramas saltam a cada linha. “Se uma mulher se arrepende de seus erros, tem que se vestir com um mau estilista, ou ninguém acredita nela”, afirma a sra. Erlynne.
O mundo das convenções sociais e da moralidade hipócrita é novamente abordado por Wilde em Uma mulher sem importância e em Um marido ideal. Na primeira dessas peças, o autor aborda uma outra vez a questão da filiação ilegítima na figura de Gerald, o jovem protagonista da obra. A trama propicia descobertas sucessivas, mas, como no texto anterior, a estrutura dramatúrgica é bastante capenga, e o coração da peça está nos epigramas e nas frases espirituosas. “Uma mulher má é o tipo de mulher da qual o homem nunca se cansa”, diz Lorde Illingworth. Nesta peça, Wilde tece sua imortal definição de saúde à moda inglesa: “O cavalheiro rural inglês galopando atrás de uma raposa: o inominável em plena perseguição do incomível”. Um marido ideal tem como assunto outra situação que envolve o jogo de aparências da sociedade. Um ministro do Gabinete, Robert Chiltern, está prestes a ser denunciado devido a atos que comprometem seu passado. Ele construiu sua fortuna vendendo um segredo de Estado a respeito do Canal de Suez. Agora é chantageado pela fascinante sra. Cheveley, mulher de duvidosa moral, por conta disso. Uma série de volteios improváveis da trama se sucede. Chiltern acabará por se redimir, por meio de um heróico discurso ao público, e seu amigo, Lorde Goring, salvará de vez sua reputação calando a sra. Cheveley. Lady Chiltern perdoará o marido, depois de perceber o quão facilmente o escândalo teria destruído a estabilidade de sua vida.
A obra-prima de Wilde é a última peça que escreveu, A importância de ser prudente. Um texto absolutamente delirante, em que uma criança em um carrinho de bebê pode ser confundida com o manuscrito de um romance xaroposo e sentimentalóide. Ao redor da palavra “earnest”, que em inglês é homófona do nome Ernest, e que significa “prudente” e etc., como já foi registrado, Wilde costurou uma trama hilariante de identidades trocadas, de crianças abandonadas e reencontradas décadas depois, de mentiras que se tornam verdades. Um texto delicioso, de ritmo trepidante, recheado de ditos espirituosos. A peça, borbulhante, trata apenas de superficialidades, de banalidades, e através desse procedimento satiriza e critica as classes altas.
O resultado é um escrito cintilante, de notável poder de fogo. Através de uma série de lances inverossímeis, somos mergulhados na história de John Worthing e de seu amigo, Algernon Moncrieff, o primeiro envolvido com a jovem Gwendolen Fairfax, o segundo prestes a se envolver com outra bela jovem, Cecily Cardew. Os namoros, os caprichos – Gwendolen vai se casar com um homem chamado Ernest, que vem a ser, por fim, o verdadeiro nome de Worthing –, as situações artificiais e improváveis alinhavadas por Wilde sublinham sua extrema ironia. E tudo é temperado pelos diálogos repletos de paradoxos, epigramas, frases de espírito. Foi o coruscante fecho de uma obra meteórica.
Nesse mesmo ano, Wilde, ao fim de um processo rumoroso, em que começou como acusador e acabou como réu, seria condenado por sodomia. A partir daí viriam o divórcio (sua mulher mudou para Lloyd o sobrenome dos filhos), a prisão, o exílio na França e doença e a morte, em 1900, em Paris. A fase brilhante de sua vida se fechou sob os aplausos entusiásticos destinados à importância de ser prudente, uma obra extraordinária, que ainda hoje encanta platéias. Fiquemos então com eles. É nosso melhor tributo à memória de um artista que fez rir da hipocrisia até ser atropelado por ela.
Alberto Guzik é jornalista, diretor, autor teatral e ator