Severino sou eu. Severino são os outros

Severino sou eu. Severino são os outros

Não se sabe a data exata, mas acredita-se que o poema Morte e vida severina foi escrito entre 1954 e 1956, ano em que foi lançado. A mais famosa obra de João Cabral de Melo Neto aborda a seca nordestina por meio da visão dos retirantes que fazem o percurso entre o rio Capibaribe e Recife. Morte e vida faz parte de uma trilogia composta também por O cão sem plumas e O rio. Em comemoração aos 60 anos da publicação original, o livro ganhou, neste mês, nova edição pela editora Alfaguara.

Morte e vida figura entre os representantes da literatura regionalista brasileira. “Desde pelo menos a década de 1930 são vários os autores de origem nordestina que começam a representar a realidade social e econômica do nordeste e representar o seu conjunto de mazelas, além de apresentar perspectivas históricas que condicionavam a situação da região”, explica Waltencir Alves de Oliveira, professor adjunto de Literatura Brasileira do Departamento de Linguística, Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mas João Cabral de Melo Neto conseguiu se destacar entre os autores, utilizando a poesia para alcançar algo inédito até então.

“A obra consegue, pela primeira vez, empregando recursos próprios da expressão poética e não da prosa romanesca, expor um personagem que figura um grupo, e um estado que representa uma região inteira, tornando-os paradigmáticos para a compreensão da situação nordestina frente aos centros que detinham a produção dos discursos sobre a cultura no Brasil”, afirma o professor. Morte e vida acompanha o retirante Severino, que desde o início é representado como apenas “mais um”. “Somos muitos Severinos, iguais em tudo na vida”, escreve João Cabral, que, na obra, tenta explicar a condição periférica da nação e entender os mecanismos constitutivos de nosso subdesenvolvimento.

Inez Cabral, filha do escritor, diz que o “poema deu voz aos Severinos , uma quantidade enorme de brasileiros que, ainda hoje, só são lembrados na hora das estatísticas, ou como massa de manobra facilmente conduzida para ganhar eleições”. No auge da carreira do pai, Inez não entendia a relevância de seu trabalho. “Preferia os Beatles e os Rolling Stones”, brinca. “Nos últimos anos da vida de meu pai, eu o visitava todos os dias, e como estava cego, me pedia para ler seus poemas, e foi aí, já adulta, que descobri que ele era demais”. Hoje, Inez luta para que as obras de João Cabral não saiam das livrarias, “até porque sempre achei seu trabalho injustiçado, principalmente pelos críticos”.

Recepção crítica: ontem e hoje

À época do lançamento, João Cabral se culpava por não conseguir atingir os leitores “severinos”. Para Waltencir Oliveira, o fato “demonstra uma inocência quase pueril do poeta, que, obviamente não conseguiria, através de uma forma poética altamente elaborada, atingir uma população desnutrida e iletrada ou semiletrada”. O desejo de Cabral era se integrar à literatura de cordel e aos cantadores de feira. “Sua tentativa foi a de se inserir na cultura popular coletiva, estando em outro lugar de classe. O fato de ser nordestino simplesmente não legitimou sua produção, o que fez com que seu público fosse o universitário, militante de esquerda”, relata a pesquisadora Thaís Toshimitsu, pós-doutoranda em Teoria Literária pela USP.

O reconhecimento de Morte e vida severina veio mesmo dez anos depois de seu lançamento, em 1965, com a adaptação pelo grupo de teatro do TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), encabeçado por Roberto Freire. A peça, escolhida como a primeira montagem do hoje consagrado grupo, recebeu o prêmio principal no Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França. “A montagem faz a obra cumprir sua vocação teatral, além de acrescentar elementos significativos como a música de Chico Buarque, composta em função do espetáculo dirigido por Silnei Siqueira. Aliás, deve parecer natural que uma obra dramática só cumpra sua verdadeira vocação ao ser encenada”, afirma Oliveira.

Para Thaís Toshimitsu, a obra segue mais atual do que nunca. “Sem dúvida alguma, a realidade se mantém viva e o poema, atual, o que revela o caráter de modernização conservadora de nosso processo histórico. Com a reposição das formas de governo arcaicas, representada pelo PMDB, é fácil perceber que o pouco garantido às classes mais baixas no país pelos governos do PT será perdido: os Severinos já estão pelas ruas, é impossível não vê-los”.

Severino no país de JK

O livro foi escrito em 1955, período em que Jucelino Kubitschek tinha seu projeto de modernização do país. A genialidade de Cabral, na opinião de Toshimitsu, está no uso de “formas orais populares, supostamente atrasadas, dando voz ao homem pobre e buscando ver essa realidade do ponto de vista do outro”. Revela-se, então, a percepção de que essa modernização não incluiu as classes trabalhadoras e os mais pobres.

A modernidade também se encontra não só no conteúdo, mas na própria forma dos textos cabralinos. Para a pesquisadora, sua poesia apresenta “uma construção rigorosamente organizada pela matemática, num movimento muito próximo ao da arquitetura moderna no Brasil”. Seria um aspecto utópico de João Cabral, que pretendia contrapor, de maneira racional, a violência irracional da exclusão.

Esse movimento, fortemente percebido em Morte e vida severina, aponta para um aspecto fundamental da expressão racional do poeta: a definição de um espaço democrático pelo esforço de aproximação com o outro, como concebe Thaís. “Morte e vida desenha por meio da escolha dramática, com o apagamento do eu-lírico, o desejo de dar voz aos silenciados históricos. Ao mesmo tempo em que, ao fundi-lo à natureza, aponta para a impossibilidade de esses homens tornarem-se sujeitos, agentes da própria História.”

Aparentemente otimista, o final do poema — que apresenta o nascimento de uma criança – carrega certa ambiguidade, segundo Oliveira. Na opinião do professor, a previsão da segunda cigana, que diz que o menino recém nascido será integrado ao mundo do operariado industrial urbano, também pode ser lida a partir de uma perspectiva pessimista: “Não se sabe, com precisão, se a subsistência catando caranguejo no mangue, onde nasceu o menino ‘Severino’, seria destino melhor, pior ou igual ao de um operário sujo de graxa das fábricas que dominarão o cenário urbano.”

Os rios secos de Cabral

No livro O gosto dos extremos: tensão e dualidade na poesia de João Cabral, Waltencir Oliveira situa o estilo cabralino entre uma forma complexa e um conteúdo popular. Se com a forma erudita ele pretendia “discutir os processos de composição poética e testar os limites da poesia, o emprego de formas da poesia oral e popular do nordeste seriam recursos para a obtenção da comunicabilidade poética”. A dualidade fica clara em Duas águas (1956), livro em que ele primeiramente publicou Morte e vida severina, e que já indicava as duas vertentes de sua poesia, como rios distintos que mantinham sempre certa secura de linguagem.

Thaís acredita, inclusive, que Morte e vida seja uma atualização de Vidas secas no contexto da industrialização da década de 1950. Graciliano Ramos é, na opinião da pesquisadora, o autor com quem João Cabral “mais se aproxima, por admiração estética e política, refazendo no campo poético-dramático a trajetória de Fabiano”.

No entanto, a fama de “hermético” e “difícil” afastou o leitor comum da obra de João Cabral, segundo sua filha. “A técnica de sua poesia é apreciada em profundidade por críticos e estudiosos, mas o poema tem vários níveis de leitura. Acredito que qualquer obra tem que ser apreciada sem pré-julgamentos, o que não ocorre geralmente no ensino de literatura no Brasil.”

A estética sóbria, seca, objetiva e racional de Cabral rendeu a ele apelidos como “antipoeta” e “antilírico”, o que dificulta a percepção de traços autobiográficos em seus livros. No entanto, na análise empreendida por Waltencir Oliveira, há certos elementos pessoais, mesmo que narrados de maneira impessoal.

Os esparsos traços autobiográficos ao longo de sua obra são bem disfarçados por um “modelo de composição que visa refrear a emoção lírica, conter a expressividade do eu e criar mecanismos de dissimulação da presença do sujeito e de sua autobiografia”, como afirma o professor. Inez Cabral percebe em seus poemas histórias de sua infância em engenhos, de personagens que conheceu na juventude, de sua vida no colégio, de gente que conheceu pela vida afora: “É só dar uma folheada em seus livros.”

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