50 anos do Chile de Salvador Allende

50 anos do Chile de Salvador Allende
Candidato da Unidade Popular, Salvador Allende foi eleito há 50 anos, em 4 de novembro de 1970 (Foto: Reprodução)

 

Nos últimos dia o Chile esteve entre os temas políticos mais comentados mundialmente por conta da aprovação, via plebiscito, de um processo que colocará fim à Constituição de 1980. Esta última, provavelmente, é um dos vestígios mais sólidos remanescentes da ditadura de Augusto Pinochet. Por capricho da História, ao mesmo tempo em que põe fim ao legado institucional do ditador, o Chile celebra também os 50 anos da posse de Salvador Allende, ocorrida em 4 de novembro de 1970.

Candidato da Unidade Popular, aliança de esquerda que incluía os partidos Socialista e Comunista, Allende foi responsável por renovar as esperanças das esquerdas mundiais ao mostrar que era possível unir socialismo e democracia, reativando esse campo político após as desilusões com a União Soviética ante os crimes de Stálin revelados no XX Congresso do Partido Comunista (1956) e a invasão da Tchecoslováquia (1968). Com o êxito da Unidade Popular, a América Latina se tornava, como ocorrera em 1959 com a Revolução Cubana, um laboratório político.

O impacto dessa vitória fora das fronteiras chilenas motivou o historiador francês Olivier Compagnon a utilizar a noção de “evento-mundo” para descrever os holofotes recebidos tanto pelo êxito desse governo como por sua trágica derrocada, três anos depois. Em 1973, o Chile voltava aos noticiários políticos internacionais, que veiculavam as imagens do palácio presidencial em chamas e a informação sobre o suicídio do presidente. O golpe de Estado transformava em ruínas os sonhos de políticos, intelectuais e artistas convulsionados por esse projeto. Na ocasião, o então secretário-geral do Partido Comunista Italiano, Enrico Berlinguer, publicou um célebre artigo no qual descrevia os acontecimentos chilenos como um trauma para todos aqueles que defendiam a democracia.

 

De modo menos simbólico e
mais corpóreo, o fim de Allende
era também uma nova derrota
para muitos brasileiros que
buscaram exílio durante a
Unidade Popular.

 

 

Políticos da esquerda francesa, que trabalhava por uma aliança nos moldes da Unidade Popular em torno da candidatura presidencial de François Mitterrand, visitaram o Chile. O socialista Claude Estier, em 1970, esteve no país latino-americano, para o qual retornou no ano seguinte acompanhado de Gaston Defferre e do próprio Mitterrand – quem, aliás, era frequentemente chamado pela imprensa francesa dessa época de “o Allende francês”.

Entre os líderes mundiais que prestigiaram Allende, muitos viam em sua figura um modo de se projetar positivamente para setores progressistas de seus países. O presidente do México, Luis Echeverría Álvarez, que visitou o Chile em abril de 1972 durante a III Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, buscava afastar-se do histórico negativo de ter sido Ministro do Interior em 1968, quando ocorreu o Massacre de Tlatelolco. A visita mais complexa foi a de Fidel Castro, que permaneceu um mês no Chile em novembro de 1971, adotando uma postura de apoio ao “irmão” socialista do Sul sem, no entanto, perder a oportunidade de questionar acidamente os limites da chamada “via pacífica ao socialismo”.

No campo da cultura, o Chile da Unidade Popular também atraiu intelectuais, artistas e cineastas de várias partes do mundo. O intercâmbio com latino-americanos foi intenso. O documentarista cubano Santiago Álvarez, por exemplo, esteve duas vezes no país (em 1970 e 1971). Em relação aos europeus, os cineastas Costa-Gavras e Chris Marker viajaram juntos para lá em 1972, onde Gavras rodou o filme Estado de sítio.

Ainda no meio do cinema, nesse mesmo ano, os chilenos receberam a visita do crítico da Cahiers du Cinéma Pierre Kast, do produtor italiano Renzo Rosselini, do compositor grego Mikis Theodorakis, do cineasta húngaro Miklós Jancsó, entre muitos outros. O prestigiado fotógrafo francês Raymond Depardon registrou com maestria a atmosfera dos anos de Allende numa série de fotos tiradas em sua visita em 1971, que se converteram em documentos visuais das agitações políticas que tomaram as ruas do país.

Intercâmbios entre Chile e Brasil

As relações culturais entre o Chile e o Brasil foram particularmente intensas a partir de meados dos anos 1960. O golpe de Estado de 1964 levou muitos intelectuais brasileiros a se exilarem em território chileno, que era também a sede da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Nessa época, o governo desenvolvimentista do democrata-cristão Eduardo Frei empreendia uma série de reformas voltadas à educação e à propriedade agrária.

No final dos anos 1960 e no começo dos 1970 viveram no país andino personalidades diversas como Fernando Henrique Cardoso, José Serra, César Maia – seu filho, Rodrigo Maia, nasceu em Santiago –, Paulo Freire, Thiago de Mello, entre outros. Em muitos casos, esses brasileiros tiveram uma participação ativa na vida intelectual e política chilena. FHC foi professor da Universidade do Chile. Paulo Freire trabalhou para a reforma agrária de Frei e escreveu, no Chile, seu primeiro livro. O poeta Thiago de Mello, por sua vez, desenvolveu uma relação estreita com Pablo Neruda e Violeta Parra chegou a representa-lo em seus famosos trabalhos em tear.

Trabalhadores chilenos marcham em apoio a Salvador Allende em 1964
Trabalhadores chilenos marcham em apoio a Salvador Allende em 1964 (Foto: Domínio Público)

Com a chegada da Unidade Popular ao poder, esses intercâmbios se intensificaram. Intelectuais como Mario Pedrosa e Ferreira Gullar viveram no país andino durante esse governo. Pedrosa esteve à frente da criação do Museu de Solidariedade ao Chile, iniciativa nascida durante um encontro em Santiago que contou com a presença dos também críticos de arte José María Moreno Galván e Giulio Carlo Argan. Inaugurado oficialmente em 1972, tratava-se de um museu colaborativo constituído por obras doadas por artistas de todo o mundo que se declaravam solidários à causa socialista chilena. Após o golpe, Pedrosa seguiu com o projeto, que passou a se chamar Museu da Resistência Salvador Allende, organizando mostras em distintos países.

O campo do cinema é particularmente interessante para pensar nos intercâmbios entre Brasil e Chile naquela época. Affonso Beato – diretor de fotografia de Glauber Rocha e, anos depois, de Walter Salles e Pedro Almodóvar – trabalhou com o diretor chileno Miguel Littin no longa-metragem A terra prometida (1973), um dos principais filmes chilenos da época. O próprio Glauber chegou a passar no Chile uma temporada, em 1971, onde desenvolveu o projeto de um filme não-realizado. Sua residência, a poucos metros do Palácio de La Moneda, foi o Hotel Carreira, que Glauber descreveu como um “centro do contrabando de dólares e de agentes da CIA”. Em setembro de 1973, desde esse mesmo lugar, as câmeras estrangeiras filmaram as impressionantes imagens do bombardeio do palácio presidencial.

Em 13 de janeiro de 1971, o governo de Allende recebeu 70 presos políticos brasileiros trocados pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Entre eles, estava o diretor Luiz Alberto Barreto Leite Sanz, que filmou no Chile, junto ao cineasta Pedro Chaskel, o documentário Não é hora de chorar (1971). Trata-se de uma impactante denúncia sobre a tortura cometida pela ditadura brasileira. No Chile também se filmou, no mesmo ano e com mesmo grupo de exilados, Brasil: um relatório de tortura, dos norte-americanos Haskell Wexler e Saul Landau. Nos dois documentários, que estão entre os poucos produtos audiovisuais da época que trataram da tortura no Brasil, os ex-prisioneiros narram e reencenam as violências sofridas. Entre os entrevistados dos dois filmes, estavam Frei Tito, Jean Marc Von Der Weid (ex-presidente da UNE) e Maria Auxiliadora Lara Barcelos.

 

Todo esse processo de intercâmbios
se encerrou bruscamente com o
golpe de Estado de 11 de setembro de
1973, que deu início à ditadura de
Augusto Pinochet.

 

 

No caso de muitos brasileiros, o golpe os obrigou a sair no Chile, iniciando um segundo e doloroso exílio. “Tinha que sair daquele maldito país antes que fosse tarde demais”, escreveu Ferreira Gullar em seu livro Rabo de foguete (1998). A porta da casa do poeta foi pichada com a palavra “comunista” no mesmo dia em que morria Allende, sintetizando o perigo que tanto ele como outros milhares de chilenos e estrangeiros começavam a correr no Chile.

A queda de Allende foi também um marco na trajetória dessa intelectualidade brasileira. Muitos acabaram desiludidos da política; outros ganharam um protagonismo ainda maior, mas se afastaram bastante dos projetos revolucionários ou reformistas; somente uma minoria continuou defendendo os ideais da Unidade Popular. A necessidade de um segundo ou terceiro exílio foi um fardo insustentável para alguns, como ocorreu com Maria Auxiliadora, que se suicidaria três anos depois em Berlim Ocidental. Dora, como era chamada, é uma das personagens centrais do documentário Retratos de identificação (2014), de Anita Leandro.

Após 11 de setembro de 1973, outros ventos sopraram no Chile, mais violentos e autoritários. No entanto, curiosamente, o país voltou a ser laboratório político e econômico que despertaria atenção internacional. O novo projeto era radicalmente distinto das ideias da CEPAL e totalmente oposto à via democrática ao socialismo representada por Allende. Chegou ao Chile pelas mãos de economistas ali nascidos, mas formados na Universidade de Chicago, que logo encontraram cargos importantes na ditadura. Esse novo projeto, a cargo dos “Chicago boys”, é o neoliberalismo.

Carolina Amaral de Aguiar é professora de História da América na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutora em História Social pela USP.

Ignacio Del Valle Dávila, chileno radicado no Brasil, é professor de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA) e professor da Pós-graduação em Multimeios da UNICAMP. Doutor em Cinema pela Universidade de Toulouse.


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