Muito além do sexo
O psicanalista e cientista austríaco Wilhelm Reich, em meados dos anos 1950 (Foto: Reprodução)
Mesmo com a crescente elaboração de dissertações e teses sobre a obra do austro-húngaro Wilhelm Reich (1875-1957), não é incomum, no próprio universo acadêmico, constatar um reduzido conhecimento a respeito da efetiva participação desse autor no movimento psicanalítico. Quais as variáveis envolvidas nessa considerável miopia histórica e conceitual?
Um dado que, possivelmente, concorre para essa situação está vinculado ao fato de que algumas ideias reichianas foram intensamente propagadas no clima da contracultura que permeou boa parte das décadas de 1960 e 70.
Se por um lado tal divulgação deu ampla visibilidade a Reich, recolocando-o na cena social como uma referência importante, por outro implicou a estruturação de uma leitura limitada de seu pensamento.
Ou seja, enquanto formulações desenvolvidas por Reich desde os anos finais da década de 1920, sobretudo no campo da sexualidade, foram retomadas e ajudaram a compor o referido movimento contestatório, outros aspectos de sua obra, igualmente importantes mas não sintonizados com o clima social dominante, permaneceram à sombra.
Um desses aspectos pouco iluminados foi sua participação na Sociedade Psicanalítica. Wilhelm Reich foi um inquieto cientista/cidadão que, circulando por vários territórios do conhecimento, com maior ou menor grau de aceitação, criou muita coisa.
No que diz respeito ao domínio psicanalítico, creditar a esse fértil pensador um lugar na cena analítica da primeira metade do século 20 constitui algo óbvio. Afinal, ele participou desse movimento por 14 anos, colaborou em alguns de seus órgãos oficiais e publicou artigos e livros que, definitivamente, integram o saber psicanalítico.
Negar tais fatos, como alguns profissionais do ramo tendem a fazer, é, no mínimo, sinal de ignorância a respeito da história e do acervo científico da psicanálise.
Para contribuir para a elaboração de um retrato mais fidedigno desse psicanalista/cidadão, que militou intensamente no campo científico, cultural e político do século 20, busco registrar a seguir alguns pontos da estada de Reich na psicanálise.
O ritual de entrada de Reich no movimento psicanalítico teve início em 13 de outubro de 1920, quando apresentou à Sociedade Psicanalítica de Viena a comunicação Conflito da Libido e Formações Delirantes em Peer Gynt, de Ibsen.
Como a comunicação foi bem recebida, na reunião seguinte, em 20 de outubro, ele foi formalmente aceito. Deve-se notar que isso ocorreu quando contava com 23 anos e ainda cursava a faculdade de medicina em Viena.
Dois anos depois, em 1922, ano de sua formatura em medicina, duas organizações, que receberam toda a atenção do jovem Reich, foram criadas no campo psicanalítico: no plano da discussão da técnica, os Seminários de Técnica Psicanalítica; na esfera do atendimento à população de baixa renda, a Policlínica Psicanalítica de Viena.
Preocupação social
Sobre a primeira, segundo o relato de Reich em A Função do Orgasmo (Brasiliense), no Congresso Psicanalítico Internacional realizado em Berlim, Freud “propôs uma competição: devia-se fazer uma investigação minuciosa sobre a correlação entre teoria e terapia. Até que ponto a teoria melhora a terapia? E, ao contrário, até que ponto uma técnica melhorada permite melhores formulações teóricas?”.
Presente nesse contexto e tocado pela moção do mestre, ainda na viagem de volta do congresso, Reich sugeriu a jovens analistas a constituição de um fórum para o estudo da técnica. A seguir, em uma das reuniões psicanalíticas de Viena, oficializou a proposta de criação dos Seminários de Técnica, a qual “Freud aprovou entusiasticamente”.
Reich recorda que, por causa de sua pouca experiência, não almejava a direção dos trabalhos. O primeiro a ocupar esse lugar foi Edward Hitschmann (1871-1957), depois ela foi assumida por Hermann Nunberg (1883-1970). A partir do final de 1924, ele aceitou o cargo e presidiu os Seminários de Técnica Psicanalítica até o mês de novembro de 1930, quando se mudou para Berlim.
Qual a linha norteadora dos encontros nesse lócus destinado à discussão da técnica psicanalítica?
Em A História da Psicanálise Através de Seus Pioneiros (Imago), de acordo com o psicanalista norte-americano que participou dos seminários em Viena, Walter Briehl (1897-1982): “O objetivo desse seminário era estudar exclusivamente as histórias de casos estagnados e fracassos analíticos”.
Sobre a atuação de Reich na presidência dos trabalhos, registrou: “Dirigia seu seminário com informalidade e espontaneidade. Enfatizava dois temas principais: o estudo dos problemas de resistência individualizados e o estudo das razões dos fracassos analíticos, até então considerados resultantes da inexperiência ou erros individuais e não consequências das limitações da técnica”.
O todo do caráter
Como Briehl indica, pelo menos sob a direção de Reich esse fórum estudava os casos considerados insucessos analíticos – por exemplo, abandono, estagnação do processo, suicídio – e, na verdade, parece que, mais do que os erros cometidos pelos analistas, o foco dos trabalhos apontava para possíveis limitações da técnica.
Fruto do envolvimento com a discussão da técnica, Reich publicou na revista psicanalítica Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, entre outros, os artigos “Sobre a Técnica de Interpretação e de Análise da Resistência” (1927), “Sobre a Análise do Caráter” (1928), “O Caráter Genital e o Caráter Neurótico” (1929) e “A Fobia Infantil e a Formação do Caráter” (1930). Esses escritos também foram reunidos no livro Análise do Caráter (Martins Fontes).
Grosso modo, tais trabalhos, centrados na segunda tópica freudiana, visam contribuir para a técnica psicanalítica por meio de algumas orientações básicas, assim como:
a) efetuar a análise do caráter como um todo, e não a de sintomas isolados;
b) dado o papel de resistência exercido pela transferência negativa latente, na escolha do que interpretar, priorizar a análise dessa forma de transferência;
c) evitar interpretações prematuras, considerar a estratificação da neurose e caminhar do mais superficial para o mais profundo;
d) ampliar o material analítico de maneira que leve em conta o comportamento geral do analisando, gestos, tom de voz etc.
Em linhas gerais, a perspectiva reichiana na análise do caráter, denominação atribuída a esse conjunto de orientações técnicas, pode ser aproximada, no que diz respeito ao papel mais ativo do terapeuta e, também, quanto à atenção dada à expressividade corporal do paciente, ao enfoque desenvolvido pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933).
Já em relação à teorização reichiana sobre o polo de uma hipotética saúde psíquica, um diálogo fértil pode ser entabulado com as elaborações do analista alemão Karl Abraham (1877-1925) sobre o caráter no nível genital do desenvolvimento da libido.
Quanto ao envolvimento reichiano com a segunda organização aqui citada, a Policlínica Psicanalítica de Viena, o então psicanalista nela trabalhou por oito anos, desde a sua fundação, em 1922. A marcante experiência nessa clínica popular, que, segundo Freud, deveria aliar o ouro da psicanálise ao cobre da terapia de sugestão, escancarou determinados temas para Reich.
Em síntese, dado o enorme número de pessoas que buscavam ajuda, quantidade que mesmo com as alterações na forma de atendimento não conseguia acolhimento, o que se impôs foi a questão da possibilidade de prevenção no campo das chamadas doenças mentais.
Caminho polêmico o da prevenção, que Freud já namorara, sobretudo por meio da esfera da educação, mas que, no momento, década de 1920, encontrava-se abandonado. As teorizações do mestre psicanalista àquela altura já apontavam para a tese de que a neurose é o preço pago pela vida civilizada, nada podendo ser especificamente “prevenido”.
Marxismo
Em desacordo com o último prisma freudiano, Reich, na trilha da prevenção e atribuindo responsabilidade às condições sociais vigentes, em especial no que diz respeito ao domínio da sexualidade, aproxima-se do movimento comunista europeu e passa a tentar articular o marxismo com a psicanálise, intento que ficou conhecido na história como freudo-marxismo.
Uma anotação no diário Paixões de Juventude – Uma Autobiografia, 1897-1922 (Brasiliense), de 3 de janeiro de 1921, serve para ilustrar a antiga e intensa motivação social reichiana: “Estou vivo, tenho dois pacientes pagantes enviados a mim por Freud em pessoa! E outros virão – e depois? Escreverei monografias e relatórios – muito bons como tais, naturalmente! E depois? Se a situação do operário não fosse tão desoladora! Política, oh, política!”.
Dessa empreitada freudo-marxista, alguns resultados teóricos são os livros Materialismo Dialético e Psicanálise (1929), O Combate Sexual da Juventude (1932) e Psicologia de Massa do Fascismo (1933).
Sobre o último, cabe notar que Reich, de forma antecipada, apontou os perigos do nazifascismo ainda em 1933, ano da ascensão de Hitler. A repercussão desse material foi tamanha que Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, no consistente Dicionário de Psicanálise (Zahar), a respeito de Reich, em determinado trecho, afirmam: “o teórico de uma análise do fascismo que marcou todo o século”.
Contudo, esse intento reichiano – aproximar a psicanálise e o marxismo –, pelo menos no período de sua elaboração, não encontrou guarida nas duas instituições de origem. Assim, em 1933, Reich foi expulso do Partido Comunista Alemão e, em 1934, da Associação Psicanalítica.
Nos anos seguintes, até sua trágica morte nos Estados Unidos, em 1957, Reich trilhou um caminho independente e elaborou, sobretudo, as bases do que atualmente conhecemos como a psicoterapia corporal – isso sem deixar de produzir para as áreas da psicologia política, educação, biologia e física.
PAULO ALBERTINI é professor no Instituto de Psicologia da USP