Um manifesto nazista para o governo Bolsonaro
Roberto Alvim, ex-secretário especial da Cultura em vídeo que retoma discurso de Joseph Goebbels (Foto: Reprodução)
Entre 16 de janeiro de 2020 e 8 de maio de 1933, há muita distância. Quase 90 anos. Não para o governo Bolsonaro nem para o seu secretário especial da Cultura, Roberto Alvim.
Como se sabe, Bolsonaro não tem um ministério da Cultura, nem o círculo presidencial nem o bolsonarismo como movimento têm qualquer apreço pela arte e pela cultura praticadas no Brasil. Antes, estão em guerra aberta contra artistas, intelectuais e realizadores culturais em geral, vistos como um obstáculo à visão de mundo e aos valores que a nova maioria política cultiva e professa. Isso não significa que o movimento bolsonarista, bem como o próprio Bolsonaro, menosprezem a influência da arte e da cultura para a formação de mentalidades, visões de mundo e valores. Antes, estão certos de que esta é a principal função da arte e da cultura em uma sociedade, sendo-lhes absolutamente estranhas reivindicações de arte pela arte, ou de qualquer outra função não estreitamente pedagógica ou proselitista da obra artística. E justamente por considerarem que arte e cultura servem basicamente para moldar o caráter e inculcar valores, julgam que se os valores e atitudes dominantes no Brasil de hoje estão em choque com as crenças do conservadorismo que sustentam, a culpa por tal estado de coisas deve ser atribuída a anos e anos de ação cultural dos adversários esquerdistas e liberais sobre os corações e as mentes dos brasileiros.
Por crer nisto, o olavismo, a fonte ideológica do bolsonarismo, importou para o Brasil a ideia da “guerra cultural” típica dos conservadores americanos. A ideia é que não basta a precária e surpreendente hegemonia eleitoral dos conservadores nas eleições de 2018, pois uma maioria eleitoral não se sustenta sem uma mudança de mentalidades e valores e esta última não se alcança sem uma transformação da cultura e da arte.
Está, portanto, declarada a guerra. É preciso atacar a credibilidade da arte e da cultura atualmente existente, porque os seus autores, realizadores e produtores estariam comprometidos, uma vez que venderam suas almas e talentos à esquerda, aos liberais, ao ateísmo, ao cosmopolitismo, ao Iluminismo – aos tradicionais inimigos do conservadorismo, em suma. É preciso denunciar o projeto maléfico por trás de filmes, exposições, mostras, performances, é preciso boicotá-los, denunciá-los, assediá-los. Mas é também preciso abrir espaço para novos artistas e intelectuais orgânicos ao bolsonarismo para que possam produzir uma arte e uma cultura conservadoras, isto é, uma arte e uma cultura que reflitam a nova visão de mundo reacionária. Só assim eventuais e fugazes vitórias eleitorais podem se converter em uma duradoura hegemonia cultural.
Bolsonaro não tem Ministério da Cultura, mas tem uma Secretaria Especial da Cultura enfiada curiosamente no estranho Ministério da Cidadania. O seu objetivo oficial é auxiliar “na formulação de políticas, programas, projetos e ações que promovam a cidadania por meio da cultura”. Não é surpreendente, portanto, que o titular da pasta entenda que o seu papel é moldar a nova mentalidade conservadora brasileira. Ou, como disse o secretário Roberto Alvim, “a cultura não pode ficar alheia às imensas transformações intelectuais e políticas que estamos vivendo”. Quer dizer, ganhamos a eleição e não vamos ficar só olhando artistas e intelectuais fazerem o que quiserem, nós vamos entrar pesado na luta e vamos usar tudo o que tivermos.
Esta semana, Alvim apareceu em um vídeo para lançar a grande política pública bolsonarista para a área de cultura, o Prêmio Nacional das Artes. Um edital que pretende distribuir R$ 20 milhões do orçamento público para projetos de ópera, teatro, pintura, escultura, literatura, música e HQ. Mas não é uma mera política pública de cultura, pois na guerra cultural não há espaço para isso. Trata-se um projeto de produção política da cultura, de financiamento público para novos projetos afinados com a nova ideologia conservadora que venceu as últimas eleições no Brasil. Consiste, explicitamente, em um projeto de produção da política por meio da cultura. Algo que já foi feito por governos absolutistas já hegemônicos, como o departamento da glória do rei de Luís XIV, dirigido pelo cardeal Mazarino. Mas é algo também já foi feito por governos que, como o de Bolsonaro, ainda estavam lutando pela hegemonia e sabiam ser fundamental controlar a cultura e as artes para que elas moldem a mentalidade e o novo homem de que precisam, como foi o caso do partido nacional-socialista sobre o comando de Hitler, na Alemanha nos anos 1930.
A política artística nacional-socialista foi formulada para funcionar em paralelo com a dimensão política e estrutural, nos anos 1933/34. Teve início com a criação do Ministério do Reich para o Esclarecimento do Povo e para a Propaganda (Reichsministeriums für Volksaufklärung und Propaganda RMVAP), em 11 de março de 1933. O ministro nomeado foi Joseph Goebbels e o caráter cultural-político de sua missão era bem claro, pois ele se tornava “responsável por todas as incumbências necessária para o exercício da influência intelectual sobre a nação”. A expressão usada por Hitler era “Umstellung der öffentlichen Meinung”, a “conversão da opinião pública”. O propósito do Ministério do Esclarecimento era, portanto, dentre outras coisas, encontrar métodos novos e mais sutis para realizar um processo de conquista intelectual do poder por parte do nacional-socialismo. O soft power das artes e da cultura para produzir o hard power do domínio político. A formação destes métodos foi considerada uma das tarefas mais urgentes do novo ministério.
Goebbels, como Alvim, se dedicou rapidamente a formular as razões para dar conta de uma política nacional de cultura que facilitasse o projeto hegemônico da sua facção política. Como introduzir a cultura como instrumento na luta pelo poder? A solução de Goebbels, copiada por Alvim, é simples: convocar o mundo da cultura a responder aos anseios profundos, descrito em tintas românticas, do seu povo. É preciso formular a ideia de pátria, como ímpeto primitivo de pertencimento de todos os nós e superior aos indivíduos. É preciso encontrar uma alma, única e profunda, para este povo e relacioná-la aos valores e interesses do nosso partido.
Como disse Alvim de forma tão goebbelsiana, “Queremos uma cultura dinâmica, mas ao mesmo tempo enraizada na nobreza dos nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de Arte. Nossos valores culturais também conferem grande importância à harmonia dos brasileiros com sua terra e sua natureza, assim como enfatizam a elevação da nação e do povo acima de mesquinhos interesses particulares”. Pronto, aí estão os fundamentos romantizados do que Alvim chamou de Nova Arte Nacional.
Nomeado em março, já em maio de 1933, Goebbels faz um discurso aos diretores de teatro de Berlim, que o premiado diretor teatral Roberto Alvim certamente conhecia. E aí formula a frase que Alvim declamou, de forma pomposa, no vídeo-manifesto da nova arte nacional. Goebbels disse: “A arte alemã da próxima década será heroica, será de um romantismo de aço, será livre de sentimentalismo e objetiva, se tornará nacional com grande pathos, será conjuntamente obrigatória e vinculante, ou será nada”. O que foi recitado solenemente por Alvim nos seguintes termos: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo – ou então não será”.
Na opinião pública brasileira e no mundo todo caiu como uma bomba a notícia de que o responsável pela Cultura no governo Bolsonaro recitou Goebbels como quem declama poesia em um vídeo da escola. Mas o erro de Alvim foi apenas de acreditar que se podia dizer o que todo mundo já sabe: que no bolsonarismo, como no nacional-socialismo, no stalinismo ou no maoísmo, a cultura é um mero instrumento de uma forma de luta política pela hegemonia. E de que se podia dizer isso citando as fontes originárias dessa mentalidade. A queda de Alvim nada muda. Afinal, o que são os ministros ideológicos de Bolsonaro – titulares das pastas do Meio-Ambiente, Cidadania, Relações Exteriores, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, Educação ou Mulher, a Família e os Direitos Humanos etc.- se não todos Ministros do Esclarecimento do Povo e da Propaganda? E o que é este Prêmio Nacional das Artes a não ser o financiamento com dinheiro público da guerra cultural da hegemonia conservadora? Até Alvim, faltava ao governo Bolsonaro apenas um Manifesto Nacional-Socialista. Não falta mais. Alvim não caiu por estar errado, segundo os critérios bolsonaristas, mas por achar que já estava na hora de ser explícito.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)