Alvim caiu, mas Goebbels não

Alvim caiu, mas Goebbels não
Roberto Alvim, ex-Secretário Especial da Cultura em vídeo que retoma discurso de Joseph Goebbels (Foto: Reprodução)

 

Último dia de férias. Acordo com o barulho da chuva forte na praia. Pego o celular e desaba outra tempestade: o Secretário Especial da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, a propósito da divulgação de um Prêmio Nacional das Artes, publicou um vídeo em que se caricatura de Joseph Goebbels (1897-1945), com trilha sonora de Richard Wagner (1813-1883), e repete frases do ministro da propaganda de Hitler. Alguns amigos mais atentos reparam que até o cabelo, o traje e os trejeitos de Alvim lembram o ministro alemão. A chuva não quer dar trégua.

O discurso famoso de Goebbels diz: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”. Alvim, que não quis ter muito trabalho, ecoou: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo – ou então não será nada”.

Podia ser apenas mais um arroubo de ignorância e arrogância do alto escalão desse governo, mas o amargo desta vez era diferente. Recorrer ao discurso de Goebbels para lançar um projeto autoritário para a área cultural excedia o nível de truculência sincera do bolsonarismo, mesmo lembrando que o chefe de Alvim foi eleito ecoando o lema nazista “Alemanha acima de tudo” e elogiou diversas vezes a ditadura militar, a violência policial e até mesmo o serviço das milícias, entre outras demonstrações de seu apreço nenhum por qualquer coisa parecida com uma democracia.

Enquanto eu subia a serra, Alvim caiu. Em poucas horas, a repercussão negativa da encenação de Alvim resultou em algo que é bastante raro no governo Bolsonaro: perder o cargo porque não é digno dele. Desde junho do ano passado, quando assumiu a direção da Funarte, e ainda mais depois de outubro, no cargo que exerceu até hoje (função com o status de Ministro da Cultura), as declarações e decisões de Alvim eram motivo de muita preocupação, porque já era possível perceber que, a depender de suas “ideias”, chegaríamos a algo como o prêmio que ele lançou ontem, impondo, contra todas as garantias e liberdades constitucionais, uma “nova arte nacional”, que, nos seus termos, deve ser “enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de arte”.

Alvim destinou mais de 20 milhões para seu projeto de dirigismo cultural, mas caiu do cargo antes de implementar totalmente o prêmio, que, espero, deve ser enterrado junto com seu histórico no comando das instituições culturais deste país. Sua queda é uma ótima notícia, sinal de que ainda tem algum limite, se não dentro, nos arredores desse governo, no Congresso, no Judiciário, na imprensa, nas redes sociais, nas diversas lideranças políticas e instituições que repudiaram a fala nazista de Alvim, mas não podemos deixar essa pequena “vitória” ofuscar as diversas formas de autoritarismo que encantam esse governo e, mais ainda, imaginar que todo esse discurso nazista sobre a cultura saiu da cabeça de Alvim e caiu do governo quando ela rolou.

Estamos bem longe disso, porque Alvim apenas expressou, com a preguiça de quem copia o powerpoint do Goebbels, o que o bolsonarismo pretende impor, de fato, a toda a produção cultural, sufocando adversários e projetando seguidores. Em outras palavras, Bolsonaro quer que cultura seja apenas aquilo que confirma a ideologia autoritária de seu governo. Portanto, de certo modo, exonerar Roberto Alvim é uma covardia de Jair Bolsonaro, porque dá a impressão de que foi um gesto tresloucado de um (in)subordinado, que foi punido, quando sabemos bem que Alvim realizava naquele vídeo um ato de governo. Para que não reste dúvida, basta lembrar que, horas antes, Alvim estava ao lado de Jair, em sua live semanal, recebendo elogios (e bocejos) ao expor sua defesa da “arte conservadora” e as linhas gerais do citado prêmio.

Não é consistente, portanto, a versão de que “Alvim foi longe demais”, expondo uma filiação ao nazismo que o governo preza, mas não escancara. Porque não apenas o presidente Bolsonaro, mas vários de seus ministros – de Moro a Guedes, de Ernesto Araújo a Ricardo Salles, de Weintraub a Damares, passando pelos militares todos, sem falar de seus filhos, AI-5 etc. – defendem com orgulho, sem rodeios, suas ideias autoritárias. Aliás, se elegeram assim: pisando sobre a Constituição. O vídeo de Alvim-Goebbels pode ser um pouco – bem pouco – mais escrachado, mas não surpreende nem discrepa da rotina de um governo que não perde uma oportunidade sequer de ofender os direitos humanos, nos seus discursos e nas suas práticas. Alvim é mais um.

Talvez Alvim seja realocado em breve noutro tentáculo do bolsonarismo. Ainda é cedo para saber qual será seu futuro político (porque artístico, a meu ver, não terá), mas é certo que Jair precisa de alguém com esse perfil para fazer o trabalho sujo de que ele foi encarregado. Esse é um traço a ser destacado: Alvim era um encarregado das ideias de Bolsonaro. Ele pode ter caído, mas essas ideias continuam lá.

Não resta qualquer dúvida de que o bolsonarismo se dedica a combater nas instituições culturais e nas universidades, bem como no financiamento a iniciativas de instituições privadas (até mesmo o SESC está em sua mira), a liberdade de expressão, de pensamento, de comportamento. Alvim era seu braço no campo das artes, nada mais que isso, e apenas fez circular no vídeo o que seu chefe defende abertamente: só será tolerado como cultura aquilo que fortaleça o projeto de poder de Bolsonaro.

Ao desligar Alvim, Bolsonaro afirmou que “um pronunciamento infeliz […] tornou insustentável a sua permanência”, mas a escolha de Goebbels para lançar essa “nova arte nacional” une profundamente o presidente ao seu secretário: o ministro alemão, que promovia a queima de livros durante o regime nazista, era o cara perfeito para acabar com esses livros cheios de coisas escritas que tanto irritam o presidente, entre outras tarefas que Bolsonaro espera de seus “agentes culturais”. Seria inocência demais, portanto, acreditar que, com a queda de Roberto Alvim, Goebbels não frequenta mais o Palácio do Planalto ou deixou de sobrevoar nossas cabeças.


Tarso de Melo (1976) é poeta e ensaísta, autor de Rastros (martelo, 2019), entre diversos livros.

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