Regina Duarte e o marxismo cultural
Regina Duarte, atriz e nova Secretária Especial de Cultura do governo federal (Foto: Governo do Estado de São Paulo)
A propósito do vídeo compartilhado pela atriz Regina Duarte, recentemente convidada pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a Secretaria Especial da Cultura, em que um ex-BBB faz declarações críticas contra o que ele (e muitos no atual governo) chama de “marxismo cultural”, me ocorreu, até para entender melhor esse depoimento que a atriz achou “bacana, profundo, super real”, perguntar: o que é o marxismo cultural?
No vídeo, o ex-BBB dá sua própria definição da expressão: o marxismo cultural, segundo ele, “coloca negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”. Segundo ele ainda, a esquerda identitária, aquela que trata de questões relativas a raça e gênero, seria uma exemplo clássico de marxismo cultural. Em suas palavras, como “o comunismo acabou”, “o proletariado contra a burguesia não existe”. O marxismo cultural teria assim surgido em uma mudança dentro do próprio marxismo, substituindo o “divisionismo” entre classes sociais, pelo divisionismo entre “classes étnicas, sexuais”. Ele conclui o seu depoimento dizendo que as pessoas que constituem o “marxismo cultural” são “pessoas que se colocam no lugar de vítima para massacrar as outras”.
Eu gostaria de me deter no depoimento do ex-BBB porque creio que há muitos elementos importantes no modo como ele caracteriza o “marxismo cultural”. Como vimos, ele afirma que o “marxismo cultural” coloca “negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”. A frase tem a sua verdade, desde que possamos reescrevê-la assim: o marxismo cultural coloca oprimidos contra opressores, as vítimas contra os algozes. Negros foram e continuam a ser oprimidos pelos brancos, mulheres foram e continuam a ser oprimidas pelos homens, homossexuais foram e continuam a ser oprimidos pelos heterossexuais. Negros, mulheres e homossexuais foram historicamente objeto de violência por parte de seus opressores, os brancos, os homens e os heterossexuais, e continuam a sê-lo nos dias de hoje. Ao defender que essa violência deve cessar, o “marxismo cultural” estaria colocando esses grupos oprimidos contra seus opressores, o que, para o ex-BBB e a sua admiradora, a atriz Regina Duarte, seria inaceitável. Essas pessoas, os negros, as mulheres e os homossexuais, seriam, segundo eles, “pessoas que se colocam no lugar de vítima para massacrar as outras”, ou seja, elas não são vítimas de verdade. As pessoas que são brancas, homens e heterossexuais, essas pessoas sim é que são as verdadeiras vítimas, as vítimas do “marxismo cultural”. O “marxismo cultural” seria, então, esse massacre perpetrado pelas falsas vítimas contra os falsos opressores, as verdadeiras vítimas.
Aqui caberia perguntar: o ex-BBB, e sua admiradora, a atriz Regina Duarte, que acha seu depoimento “bacana, profundo, super real”, estão dizendo que os negros, as mulheres e os homossexuais não são vítimas de violência por parte dos brancos, dos homens e dos heterossexuais? Ou estão dizendo que não há nada de errado no fato de que essas pessoas sejam objeto de tal violência e opressão? A fala do ex-BBB parece ir na direção da primeira possibilidade ao afirmar que essas “pessoas se colocam no lugar vítimas”. Ou seja, para ele, essas pessoas não de fato são vítimas. Elas não sofrem qualquer tipo de violência ou opressão. Elas apenas se colocam nesse lugar para massacrar as outras, que elas consideram como opressores, mas que na verdade não o são.
Mas eu diria que a verdade sobre a sua fala está muito mais na direção da segunda possibilidade: pessoas como o ex-BBB e como Regina Duarte não creem que os negros, as mulheres e o homossexuais sejam vítimas porque, para eles, não há nada demais no fato de que eles sejam tratados como são tratados. Já que, desde sempre, eles foram tratados assim. E que mal haveria nisso? A própria Regina Duarte, dois dias antes do segundo turno das últimas eleições, após encontrar o então candidato Jair Bolsonaro, deu o seguinte depoimento para o jornal O Estado de São Paulo: “Quando conheci o Bolsonaro pessoalmente, encontrei um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora, um jeito masculino que vem desde Monteiro Lobato, que chamava o brasileiro de preguiçoso e que dizia que lugar de negro é na cozinha”. O depoimento da atriz desmente que Bolsonaro seja homofóbico e racista, assim como, ao corroborar o depoimento do ex-BBB sobre marxismo cultural, desmente que haja violência e opressão contra os negros, as mulheres e os homossexuais.
O marxismo cultural consistiria então em ver algo errado onde não há nada de errado e em convencer os negros, as mulheres e os homossexuais de que eles são vítimas, de que não devem aceitar o tratamento que lhes foi dado até hoje embora esse tratamento seja totalmente normal aos olhos do ex-BBB e da atriz e atual Secretária de Cultura. Nesse sentido, o que o “marxismo cultural” faria seria o que o ex-BBB entende por “colocar negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”, sem nenhuma razão real para isso. Dizer, portanto, que o “marxismo cultural” coloca negros contra brancos, mulheres contra homens e homossexuais contra heterossexuais é desmentir o fato de que existe violência contra negros, mulheres e homossexuais. O desmentido seria, assim, a característica fundamental do atual governo, o que mostra seu traço perverso. Não haveria, segundo eles, violência contra negros, mulheres e homossexuais, do mesmo modo como não há desmatamento na amazônia e do mesmo modo como a terra não é redonda.
Um outro elemento interessante na fala do ex-BBB é o fato de ele ver o marxismo cultural como o modo como o marxismo sobrevive em nossos dias. Segundo ele, como “o comunismo acabou” e como ““o proletariado contra a burguesia não existe” mais, então é preciso criar um “divisionismo” não entre classes sociais, no “antigo marxismo”, mas entre “classes étnicas, sexuais”. É o que ele chama de “esquerda identitária”.
Também aqui, creio que há algo de verdadeiro em sua fala. O fato de que o marxismo atual, sem dúvida alguma, vem denunciar, e muito, não só a exploração do proletariado, da classe trabalhadora, pela classe burguesa, detentora do capital e dos meios de produção, mas também todo e qualquer tipo de opressão, é uma grande verdade: não apenas a exploração dos pobres pelos ricos, mas a opressão dos negros (e índios) pelos brancos, das mulheres pelo homens, do homossexuais (e transexuais) pelos heterosexuais deve ser condenada. Talvez essa faceta do marxismo atual, essa que o ex-BBB chama de “marxismo cultural” e de “esquerda identitária”, tenha ganhado tal força nos últimos tempos que tenha obscurecido a luta original dos pobres contra os ricos, da classe trabalhadora contra a burguesia. Uma luta não pode, no entanto, ser dissociada da outra, e é por isso que, em nosso país, foram os partidos de esquerda que avançaram nas pautas chamadas de identitárias, contra o racismo, o sexismo e a homofobia, porque entenderam que esse era um desdobramento natural do movimento civilizatório e da perspectiva marxista.
Talvez, hoje, a força do capitalismo seja tão dominante que ninguém acredite mais na força da luta da classe trabalhadora contra a opressão do capital, como fica evidente na fala do ex-BBB; talvez hoje a luta só seja possível no campo chamado de identitário, na medida em que talvez alguns, dentro do capitalismo, almejem um capitalismo sem opressão dos negros, das mulheres e dos gays. Mas, no caso do ex-BBB, nem mesmo essa concessão poderia ser feita. A vitória dos ricos contra os pobres (a ideia de que os ricos têm o direito de explorar os pobres) seria também a vitória dos brancos contra os negros, dos homens contra as mulheres e dos heterossexuais contra o homossexuais. Essa talvez seja a diferença entre uma certa direita e a extrema direita. A direita, mesmo que defendendo a exploração da classe trabalhadora pelos detentores do capital, mesmo que defendo o capitalismo na sua forma atual, neoliberal, é capaz de aceitar as pautas do marxismo cultural. Por isso, até mesmo um político do PSDB poderia defender a parada gay de São Paulo, ou condenar o feminicídio ou apoiar uma política de cotas nas universidades. Ou seja, a direita tradicional seria crítica apenas em relação ao marxismo tradicional, aquele que representa um questionamento do capitalismo. Quanto ao marxismo cultural, não haveria nele nada que políticos de direita não possam aceitar. O passo para a extrema direita seria dado apenas quando nem mesmo as teses do marxismo cultural podem ser aceitas. O governo atual, de extrema direita, é, nesse sentido, não apenas anti-marxista no sentido tradicional, como contrário também ao “marxismo cultural”. O que gera problemas para alguns meios de comunicação, como a Rede Globo e a Folha de São Paulo, que defendem algumas ideias do marxismo cultural, mas são igualmente defensoras do neoliberalismo na política econômica.
É interessante a esse respeito ver como jornalistas nesses meios de comunicação apoiam abertamente a política econômica do governo Bolsonaro sem nem se pronunciar sobre questões relativas à cultura, à educação e aos direitos humanos. Recentemente a Fiesp, através de seu presidente, Paulo Skaf, afirmou: “Apoiamos Bolsonaro, que pôs o país no rumo certo”.
Ora, será que é tão difícil ver que se trata da mesma mesma coisa? Que não se pode criticar a violência contra as mulheres, os negros e os gays sem se criticar ao mesmo tempo a violência contra os pobres, os explorados, os oprimidos, os proletários? Nesse sentido, o depoimento do ex-BBB é mais coerente do que o desses jornalistas: para ele, poderíamos supor, pobres são falsas vítimas, tanto quanto negros, mulheres e homossexuais. Essa é uma verdade que vem da boca do atual ministro da economia, Paulo Guedes: pobres são pobres não por causa de um sistema econômico que os explora, eles são pobres porque gastam muito, porque não sabem poupar. O ministro foi ainda mais longe em recente declaração dada em Davos e culpou os pobres não apenas pela própria pobreza mas também pela destruição do meio ambiente. Ou seja: o ministro é o complemente econômico das palavras do ex-BBB que tanto comovem a atriz Regina Duarte. O ministro da economia e a secretária de cultura fazem parte de uma mesmo princípio fundamental que está presente em todos os níveis e áreas do atual governo e da sociedade que o elegeu e que ele representa.
Em outras palavras, os que defendem o atual governo são supremacistas que advogam abertamente a superioridade dos ricos em relação ao pobres, dos brancos em relação aos negros, dos homens em relação às mulheres, dos heterossexuais em relação aos homossexuais. É preciso que entendamos esse ponto: é o mesmo mecanismo que está em jogo na opressão dos pobres, dos negros, dos índios, das mulheres, dos homossexuais. Esse ponto é fundamental na discussão atual sobre o que está em curso no Brasil. Isto é, o que está em curso no Brasil é um capitalismo sem direitos humanos, sem feminismos, sem política de gênero, sem cotas raciais. Um capitalismo, portanto, que estende a opressão contra os pobres, para as mulheres, os negros e os homossexuais. Se você é pobre, mulher, negra e homossexual, então você terá todas as forças contra você.
Mas há ainda um outro ponto quanto à expressão “marxismo cultural” para o qual eu gostaria de chamar atenção. Por que as lutas dos negros, das mulheres e dos homossexuais está associada à cultura?
Na fala do ex-BBB que comove a atriz Regina Duarte, parece-me implícita a ideia de que o meio cultural é marxista. Ou seja, pessoas que lidam com arte e educação, artistas, intelectuais, cientistas e professores, são em geral “marxistas”. É claro que o ex-BBB acredita que eles sejam de fato marxistas, isto é, que sejam pessoas orientadas pelas teorias de Karl Marx. Mas podemos considerar que “marxistas” aqui indica apenas que são pessoas que lutam por relações de igualdade entre todos, entre negros e brancos, mulheres e homens, homossexuais e heterossexuais. Isso porque todo relacionamento com a cultura, com a arte, com a educação traz a ideia de que as pessoas devem ter direitos iguais, oportunidades iguais, para desenvolverem suas próprias singularidades. Ou seja, por trás da denominação “marxismo cultural” está presente a ideia não só de que o marxismo se torna cultural, portanto ligado às lutas de gênero e de raça, mas também a ideia de que a cultura se torna marxista, na medida em que é a cultura, enquanto processo civilizatório, que nos leva a condenar qualquer tipo de desigualdade e de violência, seja contra pobres, negros, índios, mulheres ou homossexuais. A ideia de que possa existir uma Secretária Especial de Cultura que ache “bacana, profundo, super real” o depoimento do ex-BBB sobre o marxismo cultural nos assusta, pois nos mostra uma Secretária de Cultura que não tem Cultura, que não partilha de princípios civilizatórios mínimos. Trata-se, portanto, como muitos já apontaram, de um retrocesso civilizatória em curso no país.
Em O Mal-estar na Civilização, Freud nos mostrou que o processo civilizatório implica várias formas de frustração para as pulsões de morte, ou seja, para os impulsos de violência, destruição e agressividade que constituem todos os seres humanos. Para ele, “é necessário levar em conta o fato de que em todos os seres humanos se acham tendências destrutivas, ou seja, antissociais e anticulturais, e de que estas, em grande número de pessoas, são fortes o bastante para determinar sua conduta na sociedade humana”. Como essas tendências não são totalmente elimináveis pelo processo civilizatório, suas esperanças em uma civilização completamente livre delas são pequenas, mas ele acredita que “se for possível converter em minoria a maioria que hoje é hostil à cultura, muito se terá alcançado, talvez tudo o que se pode alcançar”.
No Brasil de hoje, vemos um movimento contrário ao que Freud defende, em que a maioria se tornou hostil à cultura, e em que a Secretária de Cultura é contra a cultura e o “marxismo cultural”. No Brasil de hoje, as tendências destrutivas, agressivas, violentas, em suma, anticulturais, se encontram no poder. A namoradinha do Brasil, que acaba de assumir a Secretaria Especial de Cultura, é, na verdade, a namoradinha do Brasil da extrema direita. Mas isso, todos nós sempre soubemos, pelo menos desde que ela veio a público dizer que tinha medo diante da possibilidade de eleição para presidente de um representante da classe trabalhadora, a classe oprimida por excelência.
Cláudio Oliveira é filósofo, tradutor e professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF)