Arcas de Babel: Paulo Henriques Britto traduz Dylan Thomas
Paulo Henriques Britto e Dylan Thomas (Fotos: Douglas Machado e Getty Images)
Nunca estivemos tão isolados e nunca vivenciamos de maneira tão intensa o fenômeno da globalização. Sim, estamos no mesmo barco, e ele é do tamanho do planeta. Apesar das fronteiras fechadas e das restrições à circulação de aviões, cientistas do mundo inteiro comunicam dados, formam-se redes internacionais de pesquisa. Isso implica passagens entre as línguas, a capacidade que temos de nos abrir ao outro, e traduzir.
A poesia, que nos leva ao mais singular em cada língua, desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras singularidades. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior da língua, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro.
Daí veio a ideia de convidar poetas a compartilharem seus trabalhos de tradução em curso e sua experiência da tradução, e fico grata à Revista Cult pela acolhida. Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
Dando continuidade à série iniciada na semana passada, Paulo Henriques Britto traduziu e apresentou uma bela vilanela de Dylan Thomas que tem como tema a revolta diante da morte. Além disso, deu por e-mail uma entrevista sobre as relações entre tradução e sua própria produção poética.
Paulo Henriques Britto, é escritor, tradutor e professor do Departamento de Letras da PUC-Rio. É autor de sete livros de poesia e com o mais recente, Nenhum mistério (Companhia das Letras, 2018), foi pela terceira vez vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional. Sua obra poética, amplamente reconhecida, recebeu diversas outras recompensas, entre elas o Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Publicou também contos, ensaios e inúmeras traduções de poesia e de prosa, entre as quais destacam-se O quarto de Giovanni, de James Baldwin, e O imperador do sorvete e outros poemas, de Wallace Stevens.
Você contou em conversas anteriores que começou a se interessar por poesia quando viveu nos EUA, ainda criança, e teve assim contato com uma língua estrangeira. Leitura, tradução e escrita de poesia vieram juntas?
Não. A leitura foi aos doze anos de idade, durante minha primeira temporada nos Estados Unidos, em Washington, D.C., quando descobri Shakespeare, Dickinson e Whitman; mas só comecei a escrever poesia por volta dos dezesseis ou dezessete anos, no Brasil, quando já era leitor apaixonado de Pessoa e Bandeira. E a tradução só veio dez anos depois, quando fui estudar cinema na Califórnia. À medida que me dava conta de que não tinha vocação para cineasta, fui mergulhando na escrita, principalmente de ficção, e na tradução de poemas e letras de música. Foi na Califórnia que tive contato com Wallace Stevens, que anos depois, já de volta ao Rio, se tornou o primeiro poeta que me dediquei a estudar e traduzir.
Você não apenas traduz, mas também se autotraduz para o inglês e escreve poemas diretamente nessa língua. Como essas três experiências se relacionam com a escrita poética em português?
Tradução e escrita são atividades diversas, mas próximas; uma alimenta a outra. Aprendi a escrever (tanto poesia quanto prosa de ficção) basicamente através da leitura e da tradução. Para quem quer se tornar escritor, creio que não há exercício melhor do que traduzir. Quando mergulho na obra de um poeta estrangeiro, com o intuito de traduzi-la, acabo sendo induzido a escrever poemas que de uma maneira ou outra dialogam com ele. Isso aconteceu principalmente com os três poetas que passei anos lendo e traduzindo: Wallace Stevens, Byron e Elizabeth Bishop. Quanto à autotradução, é uma coisa bem mais recente. Em meados da década de 2000, uma jovem poeta norte-americana organizou uma antologia de poemas meus, e passei alguns meses trocando mensagens com ela, dando informações e sugestões. No início, eu resistia muito a alguma soluções encontradas por ela, até o momento em que me ocorreu que aquela tradução era dela, e não minha; os critérios que ela seguia não eram os mesmos que os meus, nem tinham qualquer obrigação de ser os mesmos que os meus. Então pensei: se eu tenho uma outra visão do que seriam os meus poemas traduzidos, eu mesmo devia apresentar traduções deles. E assim foi que passei a passar para o inglês alguns poemas meus escritos originalmente em português, e vice-versa. A ideia é fazer traduções que seja traduções propriamente ditas, e não reescritas em outra língua que tomem muitas liberdades com o original. De lá pra cá, todos os meus livros têm incluído autotraduções. A grande maioria dos meus poemas sai em português, mas de vez em quando produzo poemas diretamente em inglês — o qual, se não chega a ser uma segunda língua materna para mim, por outro lado é muito mais do que um idioma estrangeiro. A necessidade de escrever em inglês tem a ver, creio eu, com o fato de que quando estou pensando em inglês não penso exatamente como penso em português; creio que não seria exagero dizer que não sou exatamente a mesma pessoa que costumo ser quando penso em português. Não tenho a menor dúvida de que o fenômeno da heteronímia de Fernando Pessoa está diretamente ligado ao fato de que ele foi morar em Durban (na atual África do Sul) aos oito anos de idade.
Em que a tradução de poesia se distingue de outras formas de tradução literária? Quais seriam suas especificidades?
É uma modalidade em que estão presentes todas as dificuldades habituais da tradução literária, porém intensificadas por uma série de exigências, a principal delas — no caso principalmente da tradução de uma língua germânica para uma latina — a de concisão. As línguas germânicas muitas vezes conseguem exprimir em três ou quatro sílabas o que em português ou espanhol requer oito ou mesmo dez sílabas, principalmente quando se trata de verbos de movimento e palavras relativas à percepção sensorial. Já a tradução do português para o inglês acarreta outras dificuldades, como a relativa pobreza do inglês em matéria de rimas. A tradução de poesia de qualquer idioma para o francês tem que enfrentar o problema de que em francês o acento não é fonológico, ao contrário do que se dá em todas as outras línguas europeias. E assim por diante: dependendo do par de idiomas envolvidos na operação, dificuldades específicas se colocam para o tradutor.
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Dylan Thomas nasceu no País de Gales em 1914. Aos vinte anos de idade publicou seu primeiro livro, contendo poemas cuja violência e obscuridade causaram impacto num momento em que a sobriedade neoclássica de Eliot imperava no Reino Unido. Com o tempo, sua poesia foi se afirmando pelo requintado artesanato técnico, apesar da abundância de imagens e da magia verbal — ressaltadas pela dramaticidade veemente de suas leituras ao vivo — que aos desavisados parecia apontar para uma espontaneidade romântica e indisciplinada. Um de seus temas centrais é a afirmação da vida como uma totalidade orgânica, um ciclo biológico que inclui criação, procriação e morte. Isso parece contrastar com o teor de seu poema mais famoso, que é um brado contra a inevitabilidade da morte; mas uma leitura cuidadosa de “Do not go gentle into that good night” deixa claro que o protesto contra a morte deve partir do moribundo, e não necessariamente do eu lírico.
O poema é uma das mais notáveis vilanelas compostas em inglês no século passado, ao lado do famoso “One art” de Elizabeth Bishop, e exibe a combinação de intensidade emocional e apuro formal que caracterizam a arte de Dylan Thomas. Ao longo de sua breve carreira, ele fez questão de incorporar uma persona boêmia e autodestrutiva, de sabor nitidamente rimbauldiano. Morreu em 1953, durante sua terceira turnê norte-americana, em Nova York, após ingerir uma quantidade prodigiosa de uísque num bar perto do hotel onde estava hospedado. Thomas, cujas leituras de poesia atraíam um público entusiástico, tornou-se de certo modo um precursor da figura trágica que nas décadas seguintes se reencarnou em vários nomes importantes do rock, como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Sid Vicious e Kurt Cobain.
NÃO ENTRES DÓCIL NESSA NOITE SUAVE
Dylan Thomas
Não entres dócil nessa noite suave,
Velhice deve arder ao fim do dia;
Ah, grita, grita, porque a luz se apaga.
O sábio aceita o fim, a treva e o nada,
Porém ao ver que o verbo não alumia
Não entra dócil nessa noite suave.
O bom revê, na última braçada,
O bem que em praias claras dançaria,
E grita, grita, porque a luz se apaga.
O bravo, que cantava o sol, ousado,
E agora entende, tarde, que o carpia,
Não entra dócil nessa noite suave.
O sóbrio vê que a cegueira mais crassa
Era capaz de brilho e de alegria,
E grita, grita, porque a luz se apaga.
E tu, meu pai, na dor mais alta e rara,
Maldiz-me e me abençoa enquanto é dia:
Não entres dócil nessa noite suave,
E grita, grita, porque a luz se apaga.
DO NOT GO GENTLE INTO THAT GOOD NIGHT
Dylan Thomas
Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.
Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.
Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.
Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.