O golpe da barbárie perpetuada
(Ilustração Victor Mosquero/Reprodução)
No dia 21 de junho passado, a comunidade conhecida como Complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, foi mais vez uma surpreendida por uma megaoperação policial. Como normalmente ocorre, tratava-se de uma mal planejada busca por membros de facções criminosas da cidades que na semana anterior teriam matado um policial em um outro confronto policial. Assim, definida mais como uma ação de vingança do que uma atividade policial embasada em boa inteligência e planejamento, o famoso caveirão e helicópteros policias invadiram a região ao meio do dia, quando moradores iam em viam pelas ruas da comunidade.
Como já havia ocorrido na semana anterior com outro estudante morador do local, foi um fatídico dia para a família de Marcus Vinícius, estudante de 14 anos alvejado por balas de grosso calibre vindo dos policiais envolvidos na ação, mesmo estando vestido com seu uniforme e caminhando em direção à escola. Marcus viria a falecer horas mais tarde nos braços de sua mãe, se perguntado como eles (os policiais) não tinham visto que ele vestia seu uniforme escolar.
Na manhã seguinte desse episódio, a cidade maravilhosa amanheceu normalmente, como ocorre após outras tragédias similares. A grande maioria dos cidadãos locais se ocupava dos seus afazeres domésticos a fim de dar conta da difícil vida naquela cara e complicada cidade.
Que o Rio de Janeiro não tenha parado, que suas ruas não tenham sido invadidas por pessoas demandando um fim a esse tipo de ocorrência, que após um estudante uniformizado ter sido cravejado por balas atiradas por policiais ao caminhar para a escola, que a cidade tenha seguido a vida normalmente, tudo isso expressa muito bem, bárbara e tragicamente, o estado em que vivemos. Uma realidade que sob qualquer ponto de vista não poderia ser aceitável, mas que normalizamos ao longo da sua repetição incansável e desumana.
Sim, muito disso tem a ver com a exaustão emocional produzida pela repetição tão frequente de crimes e atrocidades em nosso contexto urbano. Mais importante, porém, é o fato de que esse evento ocorreu em uma comunidade definida pela histórica exclusão vivida por seus moradores. Nesse sentido, a tragédia de Marcus Vinícius expressa algo bem maior sobre quem somos: uma sociedade fraturada, clivada profundamente entre os que fazem parte e os que só existem para permitir que os “aceitos” no jogo possam jogá-lo com conforto e regalias, que são assim perpetuadas, quando não aprofundadas.
Sim, somos um país de oligarquias históricas. Pequenos grupos que detêm margens incomensuráveis de poder econômico, político e midiático. Grupos que embora possam vir a incorporar, ao longo do tempo, novos membros – sempre poucos que não se definam pela lógica do branco, macho – o fazem somente na medida em que novos recrutados venham a adotar a visão de mundo oligárquica e excludente de sempre. Na sua versão mais recente, essa visão aparece sob uma nova roupagem, a da meritocracia – brincadeira de mau gosto em uma das sociedades mais desiguais da história.
Essa lógica oligárquica não é só hegemônica. Ela é também totalizante, na medida em que organiza quase de todas as linhas definidoras de quase todas a configurações sociais da nação, e assim os grande detentores de poder econômico tendem também a ser os que detêm o poder político e simbólico do país. Por ser totalizante, a lógica oligárquica tende também a ser auto-reproduzida, já que quase todas as estruturas de reprodução social atuam para manter a estratificação existente em suas mais diversas áreas.
De especial importância, na lógica patrimonialista que também nos rege, as esferas políticas sempre foram um mecanismo central na perpetuação do status quo. Na sua mais recente interação, as oligarquias regionais clânicas se lançam novamente sob novos rótulos sobre o butim da nação.
A velha direita oligárquica agora se define como centro (ou Centrão), embora tenha uma linhagem clara para com a ditadura civil-militar dos anos 60, 70 e 80. Essa direita se apresenta, mais uma vez, como a salvação nacional ao permitir tempo de TV e estabilidade política ao falido projeto que um dia, também numa trágica ironia, se definiu como a versão tupiniquim da social democracia.
Velhas oligarquias também passam a se apresentar como portadoras do novo na medida em que apresentam seus mais novos membros, mais jovens e viçosos, como portadores do know-how pactual necessário para continuar a definir os rumos da nação.
Assim, sob a égide dos pactuadores-mor, capazes de fornecer a estabilidade que, no fundo, permite a continuação das estratificações de sempre, seguimos, golpe após golpe, o curso da nação que mais mata jovens de comunidades pobres no mundo.
Sinto muito, Marcus Vinícius! Eles viram, sim, que você estava vestindo seu uniforme. Mas isso não fez e não faz a menor diferença!
RAFAEL R. IORIS é professor de História Latino Americana e autor do Livro Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista. (Paco Editorial, 2017)