O despotismo delivery do capital

O despotismo delivery do capital

 

Toda a forma de movimento da indústria moderna deriva […] da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada” – já faz mais de 150 anos que Karl Marx identificou em O capital a importância do exército industrial de reserva para a acumulação capitalista, ao expor como o capital se beneficia da manutenção de trabalhadores desempregados para forçar mais e mais para baixo os salários e as condições de trabalho dos empregados, num movimento (nacional e internacional) que impõe a lei “sagrada” da oferta e demanda e, assim, nas palavras de Marx, “completa o despotismo do capital” sobre a classe trabalhadora.

De lá para cá, muitos trabalhadores já ouviram essa ideia de modo bastante mais bruto: “se você não quiser fazer isso por esse valor, lá fora tem um monte de gente que quer”. Se essa é uma constante no desenvolvimento do capital, temos boas razões para investigar a forma assumida por esse movimento em nossa época, na qual o incremento da tecnologia para substituir, mediar, intensificar e depreciar a exploração de mão de obra, favorecendo sempre a acumulação do capital, aparece cada vez mais como um conjunto de facilidades e comodidades ao alcance de um clique.

Refiro-me, em especial, à importância que os aplicativos de mediação de mão de obra assumiram hoje na vida de grande parte da população mundial, o que se tornou ainda mais evidente – e crítico – à sombra da atual pandemia de coronavírus. Mesmo assim, sei que para muita gente talvez soe estranho chamar de aplicativos de mediação de mão de obra: por um lado, há quem veja neles apenas comodidade e goste de classificá-los como aplicativos de serviços, que possibilitam a comunicação entre consumidores e “empreendedores”; por outro lado, aqueles que já repararam na forma como se estrutura a relação entre essas empresas-aplicativos e os trabalhadores “conectados” sabem que o mais correto seria chamá-los, sem rodeios, de aplicativos de exploração de mão de obra, porque é disso que se trata.

Para contextualizar, é importante lembrar que o primeiro iPhone, da Apple, foi lançado em 2007 com seu sistema iOS, e no ano seguinte a Google lançou o Android. Juntos, hoje, os sistemas operacionais dessas duas empresas estão instalados na maioria absoluta dos 8 bilhões de celulares que circulam pelo mundo (sim, há mais smartphones do que pessoas na face da Terra!). Ninguém negará, portanto, que houve uma profunda transformação na maneira como grande parte da população mundial se comunica, consome e trabalha. Também é difícil negar o que há de positivo nessa transformação. No entanto, sob a camada dos aspectos positivos, da “facilidade” e “comodidade” trazidas para a vida de tantas pessoas de diferentes classes e países, esconde-se uma infinidade de aspectos negativos, a maioria deles relacionada às péssimas condições de trabalho e remuneração que tornam viável não apenas a expansão e a popularização desses aplicativos, mas também a acumulação de capital, em números assustadores, nas mãos dos proprietários desses aplicativos em bem pouco tempo.

Em época de pandemia, notadamente no trabalho dos entregadores com motos, bicicletas e mesmo a pé, é difícil esconder a forma como se integram essas duas camadas – positiva e negativa – ao fazer com que cheguem às casas em quarentena as mais diversas mercadorias. Tornamo-nos profundamente dependentes dessa exploração da mão de obra por aplicativos para dar conta das tarefas essenciais de nossa vida, das necessidades do nosso corpo. Ao mesmo tempo, isso se tornou relativamente mais acessível. Fomos, assim, levados a um novo estilo de vida, que não diz respeito apenas às classes média e alta, mas a uma parcela cada vez mais ampla da população, que adere não por luxo, mas pela compulsoriedade desse estilo de vida: não raro, o preço dos produtos entregues em casa, incluindo a remuneração do entregador, é menor do que nos estabelecimentos que passamos a chamar de “lojas físicas”.

Estamos, enfim, “todos” conectados – mas a que custo social? Minha intenção, no âmbito dessas reflexões sobre ética nos tempos da peste, é levantar perguntas sobre a forma como cada um de nós pode lidar com esse estilo de vida que, na verdade, é uma faca no pescoço. Quais condições temos – como indivíduos e como classe – de enfrentar uma transformação desse tamanho? Como seguir em frente quando não podemos mais fingir que não vemos que a classe trabalhadora está sendo obrigada a se travestir de empreendedora para se encaixar nos padrões terríveis que as empresas impõem, apenas e tão somente porque são cada vez mais raras as ofertas de trabalho? Como dizer que voltaremos à “normalidade” quando normal é a precarização extrema das vidas?

Várias manifestações em meio à pandemia tratam dessas questões pela ótica da “culpa de quem é privilegiado”, para pôr a culpa tanto nos outros como em si mesmo, tentando definir, a partir daí, a conduta mais correta. Entretanto, parece-me evidente que não se trata apenas de uma contradição moral (num sentido fraco, porque a moral também é concreta) – ser contra a exploração dos trabalhadores mas beneficiar-se dessa exploração –, e sim de uma contradição concreta – ser parte da classe trabalhadora, que vê suas condições de trabalho regredirem, e ser forçado a abraçar um novo estilo de vida baseado na hiperexploração dos trabalhadores, alimentando, assim, um moinho em que, mais cedo ou mais tarde, será triturado. Esse é o nó.

Não é a primeira vez na história em que nos deparamos com essa encruzilhada. Entre o que Marx observou e nossa quarentena, algo de muito importante se mantém: a lucratividade do capital é garantida e ampliada pela exploração multiforme dos trabalhadores. Hoje, na época das telas acesas, quando os entregadores chegam aos nossos portões, somos postos diante de uma realidade amarga: nosso estilo de vida, cheio de facilidades, comodidades e até mesmo segurança ante a ameaça do vírus, só é possível porque grande parcela da população está sendo submetida, em níveis radicais, àquele movimento apontado por Marx – o número de desempregados e subempregados permite às empresas-aplicativos um rebaixamento da remuneração e das condições de trabalho que, numa tacada só, garante ao capital e a nós, consumidores, o proveito que cada um busca: o lucro para o capital, o “conforto” para nós.

Numa conferência de 2004, quando essa onda dos smartphones e aplicativos era ainda uma abstração na cabeça dos inventores, o sociólogo Richard Sennett denunciava nossa transformação em “consumidores de potência”. Como exemplo dessa nova cultura, citava a “necessidade” de termos memórias digitais que comportam infinitos livros e discos que nunca serão lidos e ouvidos, carros supervelozes para ficar no congestionamento, veículos de guerra para levar os filhos à escola.

Diante do sociólogo, naquele momento, estava um iPod, que hoje é praticamente um dinossauro tecnológico se comparado aos smartphones: “o fenomenal atrativo comercial do iPod consiste precisamente em dispor de mais do que uma pessoa jamais seria capaz de usar. O apelo está, em parte, na ligação entre a potência material e a aptidão potencial da própria pessoa. […] comprar um pouquinho de iPod é algo que promete expandir nossas capacidades; todas as máquinas dessa espécie jogam com a identificação do comprador com o excesso de capacidade nelas contido. A máquina torna-se uma espécie de prótese médica gigantesca”, escreve Sennet em A cultura do novo capitalismo. Vários autores, há muito tempo, têm refletido sobre esse comportamento, mas o que isso significa em termos de trabalho?

Ter no bolso um aparelho que, em potência, oferece a “liberdade” de não ter nem patrão nem horários e rotinas, um computador minúsculo que permite ativar-se em múltiplas plataformas, “fazer seu próprio salário”, contatar diretamente os clientes de seu “empreendimento” como entregador ou outro “serviço”, ao mesmo tempo que também nos mantém conectados a amigos e familiares, a formas de entretenimento, bancos, notícias, tudo, certamente contribui para embaralhar a percepção de que, com novas vestes, repete-se ali o mesmo “despotismo do capital” do século 19. E mais: como a figura do capitalista (quase) desaparece na “mediação” do aplicativo, esse encontro entre trabalhador (que atende) e trabalhador (que é atendido) parece se dar de modo apenas horizontal, sem nenhuma sombra de exploração. Ou, no máximo, como exploração do “privilegiado”, que naquele momento está consumindo, sobre o “empreendedor”, que num momento seguinte pode – tem a potência para – assumir o papel do explorador. E assim sucessivamente, num jogo de espelhos.

Quando parece que todos exploram todos, os verdadeiros beneficiários dessa nova e potente forma de exploração têm mais motivos para comemorar, porque todo esse arranjo que permite empresas imensas (iFood, Rappi e UberEats valem, cada uma, alguns bilhões de dólares) “desaparece” justamente quando sua atuação é mais decisiva: não passar ao “empreendedor” nada além dos poucos reais que sobram da taxa de entrega paga pelo “consumidor”, eximindo-se de quaisquer das responsabilidades que o capital costumava ter com relação ao trabalho.

Estamos no meio dessa guerra e, se abrirmos os olhos, o fato de termos nas mãos o aparelhinho que viabiliza essa exploração brutal torna ainda mais evidente nossa participação nesse movimento em que trabalhadores são rebaixados sob o peso que outros trabalhadores fazem, seja para assumir aquela função nas condições oferecidas pelo patrão (agora quase invisível), seja para atender a um estilo de vida que se assenta sobre uma contradição típica do capitalismo: depende da inserção de muita gente no consumo, mas empurra os trabalhadores cada vez mais para a miséria.

Os instrumentos são outros, mas, como sempre, o capital se beneficia ao dispor trabalhadores contra trabalhadores, desempregados contra empregados, informais contra formais, mesmo quando diz que está apenas “conectando pessoas” ou pondo empreendedores e consumidores em contato. A tecnologia nos diz que “o céu é o limite”, mas a lógica cruel do capital se conserva no essencial: empurrar o trabalhador para a beira do abismo para que aceite quaisquer condições de trabalho.

O momento atual, de enfrentamento da pandemia, curiosamente reposicionou os termos dessas questões que vínhamos fazendo diante das formas atuais de exploração do trabalho. De um lado, expôs as vulnerabilidades dos trabalhadores formais, que estão vendo o salário ser reduzido ou, pior ainda, estão sendo entregues ao desemprego. De outro, mostrou que o Estado tem condições de investir de modo mais intenso e decisivo em melhores condições de saúde e de proteção social, embora não o faça porque, na disputa política pelo orçamento, as necessidades da população são negligenciadas.

Não sabemos que tempos virão depois dessa quarentena, no Brasil e no mundo. Há muitas apostas, otimistas e pessimistas, mas é bem difícil imaginar como se comportarão as sociedades no “depois”. Só temos a certeza de que o capital não perderá a oportunidade de aprofundar sua dominação sobre o trabalho. De nossa parte, portanto, é hora de unir-se em torno de compromissos políticos que impeçam novas investidas do capital e que façam regredir o estágio catastrófico no qual já estamos. Por exemplo, medidas jurídicas que tornem os trabalhadores – empregados e desempregados – menos vulneráveis ao despotismo do capital (entre outros despotismos que se somam no mesmo intento contra a população): desde o restabelecimento de direitos trabalhistas derrubados nos últimos anos até a consolidação da “renda básica emergencial” como auxílio permanente a toda a população, mesmo para quem não precisa – o que afetaria significativamente a reação dos trabalhadores diante da frase já citada: “se você não quiser fazer isso por esse valor, lá fora tem um monte de gente que quer”. Se cada vez houver menos gente lá fora obrigada a aceitar as imposições brutais do capital, a conversa será em outros termos – socialmente mais justos.

Tarso de Melo é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP.


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