Para manter o povo negro vivo
Milton Barbosa e Regina Lucia Santos no terraço da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo (Foto PC Pereira)
São Paulo, 7 de julho de 1978. Em plena ditadura militar, duas mil pessoas se reuniram nas escadarias do Theatro Municipal em repúdio a dois atos racistas: a proibição da entrada de quatro jovens negros no Clube de Regatas Tietê e a execução, pela polícia, de Robson Silveira da Luz, de 22 anos. Inspirada nas marchas de Martin Luther King Jr., a manifestação em São Paulo seguiu firme e pacífica, resistindo à ameaça policial. Ali, nascia o Movimento Negro Unificado (MNU), maior agrupamento político pelos direitos dos negros no Brasil – uma organização que não só sobreviveu à ditadura como também cresceu e continua ativa até hoje.
“Nesses 40 anos, nunca tivemos um momento de inatividade, apesar das crises”, conta Milton Barbosa, 70, fundador do movimento. Grupo político antirracista mais longevo em atividade no país, com atuação em 12 estados brasileiros, o MNU pautou sua militância principalmente pelo fim da violência policial, da manipulação política da cultura negra, do preconceito racial nos meios de comunicação e da exploração sexual da mulher negra.
Dessas lutas resultaram, por exemplo, a Lei 10.639, de 2003, que instituiu o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas; a instituição do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra e a implementação das cotas raciais nas universidades públicas a partir de meados dos anos 2000. Foi também o MNU que pressionou para a tipificação do racismo como crime, na forma da Lei Caó, de 1989, e para a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, o primeiro órgão nacional voltado para o tema, criado no governo FHC.
“A primeira e mais significativa conquista do MNU foi mostrar que esse país não é uma democracia racial”, afirma Regina Lucia Santos, 63, educadora social e integrante do grupo há 23 anos. Em julho, mês em que o MNU completou quatro décadas de militância, o casal se encontrou com a reportagem da Revista CULT para uma conversa sobre a trajetória de lutas do movimento, que hoje tem como prioridade “manter o negro vivo e consciente do racismo”, segundo Milton. Racismo que, no Brasil, é tanto físico quanto simbólico: “A universidade ainda se nega a enxergar o negro como produtor de cultura substancial”, afirma Regina.
Quais foram as conquistas do MNU, logo em seus primeiros anos de existência?
Regina Lucia Santos – A primeira e mais significativa delas foi mostrar que esse país não é uma democracia racial – e isso sem ter nenhuma estatística ou artigo científico com dados, como temos hoje em abundância. O MNU conseguiu provar a existência do racismo só a partir da percepção da militância, ou seja, dos que viviam o racismo. O primeiro programa de ação do MNU já trazia suas lutas principais: contra a violência policial, contra uma educação colonialista, contra a exploração da mulher negra, contra o desemprego e o subemprego. Acho que isso já dizia tudo sobre como o Brasil não vivia uma democracia racial.
Milton Barbosa – Sim. Há racismo nos meios oficiais, nos meios de comunicação, na violência policial, na falta de empregos. Esse passo do movimento foi importante porque o mundo inteiro esperava essa ação do Brasil, já que nós preservamos muita coisa das raízes africanas. Os terreiros de candomblé e umbanda, por exemplo. O Brasil é simbólico nesse aspecto e desnudar nosso racismo foi fundamental.
Como foi possível forçar essa discussão quando os debates eram censurados pela ditadura?
Milton – Para enfrentar qualquer tipo de opressão, é preciso usar de ousadia. E também criar formas para garantir essa discussão contra a opressão. A gente se reunia, discutia, e conseguiu sobreviver enquanto movimento. Mas a ditadura nos mantinha em observação constante. Veja só: eu estou com um processo de anistia política rolando, porque fui demitido e perseguido em ambiente de trabalho diversas vezes, meus filhos passaram fome na época. Por isso, fiz um levantamento de documentos no Dops e descobri que o regime tinha registros de diversas das nossas reuniões, gravações, fotos, tudo. Nós não deixávamos ninguém fotografar nem gravar, mas o material estava ali, a ditadura tinha acesso. Nós éramos muito conhecidos: fazíamos trabalhos nas prisões, nas escolas de samba, nas comunidades. O regime optou por não nos prender, mas nos acompanhou de perto. Uma vez, uma garota muito bonita veio dar em cima de mim, pedindo cocaína. Eu disse que não tinha e ela foi embora. Depois entendi que era tudo armação. A ditadura queria nos pegar como ladrões, traficantes, e não como militantes políticos.
Naquele momento crucial, a esquerda não abraçou o MNU para defendê-lo dessa tentativa de desqualificação?
Milton – A esquerda, naquele contexto, não era capaz de compreender a importância da nossa luta. Eu era parte da Liga Operária [organização operária trotskista nascida em 1972], e sempre tentava mostrar ali a necessidade de estudar Frantz Fanon e outros intelectuais negros, mas isso não se discutia. Nós [militantes negros] dizíamos que era necessário um trabalho de inserção social junto às prisões, junto à população negra – que era e ainda é a maioria da população do Brasil. Defendíamos que essas populações tinham que ter espaço na mídia. Mas nossos companheiros na Liga Operária não conseguiam entender isso porque eram brancos e de classe média. Alguns chegavam a dizer que estávamos nos distraindo da luta de classes. Só mais tarde, quando muitos foram exilados, entenderam que no Canadá, nos Estados Unidos e na Europa, não eram considerados brancos, no máximo latinos, porque fora do Brasil ser branco é ter a pele rosada e cabelos dourados. Nossa aliança com a esquerda ficou prejudicada pelo racismo introjetado, e a própria esquerda foi muito prejudicada porque não levou a questão racial em conta naquele momento. Não me surpreende tudo o que vem acontecendo ultimamente.
Regina – Um bom exemplo para explicar isso é a universidade hoje. A mesma coisa que aconteceu em relação à esquerda na década de 1970, da não compreensão da pauta negra, acontece hoje na universidade. A mesma ignorância.
Você poderia falar mais sobre isso?
Regina – Há um processo de epistemicídio em curso na universidade. Quando virei universitária, o Brasil pouco conhecia a África. Da década de 1980 até agora, muita coisa foi elaborada, mas a universidade ainda se nega a enxergar o negro como produtor de cultura substancial. Lélia Gonzalez quase não é estudada na Sociologia da USP. Na História, você não vê Aimé Césaire, Molefi Kete Asante, nada sobre Cheikh Anta Diop. Mas isso vai além. Como é que alguém faz Letras e não estuda a fundo Solano Trindade, um dos maiores poetas brasileiros? Um dos grandes nomes do simbolismo brasileiro, Cruz e Sousa, é negro, mas quase não se fala dele, só falamos dos europeus.
Esse epistemicídio é um microcosmo do nosso racismo?
Regina – Ele mostra que o racismo brasileiro é um dos mais perversos e sofisticados do mundo. Inclusive mais do que o sul-africano no tempo do apartheid, porque lá as pessoas tinham a visão de que era o racismo que provocava a desigualdade e todas as mazelas do povo sul-africano. Aqui não. A grande maioria da população não percebe, por exemplo, que o genocídio da juventude negra só acontece porque a juventude é negra. Nós temos 60 mil homicídios por ano, sendo que 80% dessas mortes são negras. Isso nem em guerra. Mas as pessoas não se dão conta de que estão morrendo porque são negras, porque o Estado racista decidiu que não há espaço para nós.
Essa exclusão intelectual recai com mais força sobre a produção acadêmica de mulheres negras?
Regina – Se não encontramos, nas bibliografias de universidades brasileiras, autores negros, as autoras aparecem ainda menos. E isso começa com o apagamento da história: quando falamos sobre o Quilombo dos Palmares, por exemplo, a gente ouve falar em Zumbi, mas não em Dandara, em Acotirene e em mais uma série de mulheres que lá estavam e resistiram. No dia 25 de julho é comemorado o dia de Tereza de Benguela, líder do Quilombo do Quariterê [no atual Mato Grosso] por vinte anos. Se a gente mal tem a história dos negros, imagine a história das mulheres negras? E, se mal temos a história, imagine a produção intelectual e cultural? Chiquinha Gonzaga, musicista à frente do seu tempo em termos de feminismo e abolicionismo, a primeira mulher a viver de música no Brasil, era negra. Era filha de um militar branco com uma escrava alforriada. Mas foi representada na televisão por uma mulher branca, Regina Duarte, que eternizou a imagem de Chiquinha para os brasileiros como se ela fosse uma mulher branca. Há um apagamento muito forte aí.
Além da física, há uma destruição simbólica do negro no Brasil?
Milton – Sim, e isso vem de muito longe. Nesse país, o negro escravizado fazia tudo: cuidava da saúde do senhor e da senhora de engenho com o conhecimento milenar das ervas, costurava roupas, plantava, transportava, fazia de tudo. Mas também eram os grandes pintores, escultores, engenheiros. Esse projeto de genocídio não é de agora.
Quais as consequências disso?
Regina – O apagamento faz parte da engrenagem da manutenção do racismo. A universidade brasileira é branca e eurocêntrica, e o epistemicídio é uma tentativa de mantê-la sem a diversidade que existe na própria sociedade – e isso é uma perda imensa em termos de produção intelectual, porque só se produz em um sentido. E porque é um ciclo que mantém as coisas funcionando desse modo. Quem forma os professores é a academia branca eurocêntrica; aí o professor vai ensinar uma visão europeia de mundo. Mas quando se colocam outras formas de produção cultural, a história do Brasil protagonizada também por negros faz com que a gente galgue muitos degraus em termos de produção cultural. Isso mexe na estrutura. E mexe no racismo.
O momento atual tem dificultado a luta antirracista?
Milton – Estamos vivendo um período em que a direita está fortalecida. Aqui no Brasil, nos Estados Unidos, em grandes regiões do mundo a direita avançou e isso faz parte do processo histórico, então com certeza a esquerda vai passar por dificuldades para se reestruturar. Estamos em um momento muito grave. O racismo é uma das bases do capitalismo desde a sua origem. O capital possibilita a marginalização de trabalhadores, que se tornam uma população descartável. Isso é muito sério, e entra aí o projeto do genocídio negro, que vem desde a escravidão e hoje é um processo muito mais acentuado. As coisas deveriam estar muito mais avançadas, em termos de militância e direitos, deixamos de construir dezenas de Carlos Marighella. São várias formas de nos matar. Nossa luta, hoje, tem a prioridade de manter o negro vivo e consciente do racismo.
Regina – A maior dificuldade que a gente enfrenta hoje é o genocídio da juventude negra. É manter o nosso povo vivo. As lideranças executadas no país, desde ambientalistas no Acre e no Pará até ativistas políticos, como a Marielle, são negras. Há uma banalização da morte do negro enquanto a direita cresce. E, infelizmente, nós do MNU não conseguimos atrair as pessoas para manifestações nas ruas a cada morte de um jovem negro porque é muito forte o discurso da banalização – de que as mortes são causadas por guerras entre bandidos, por exemplo, ou de que a morte seria justificada porque a vítima tem passagens pela polícia. O Brasil é um país em que não existe pena de morte, mas a pena de morte é fortemente praticada, e sem direito a julgamento.
Mas há resistência, não é? Principalmente entre os jovens.
Regina – Se por um lado a conjuntura política atual é muito difícil para a população negra, temos, do ponto de vista simbólico e social, uma maior conscientização e visibilidade do racismo. A juventude vem se reivindicando negra, usando cabelos crespos, turbantes, mesmo os negros de pele clara; percebendo que grande parte das mazelas pelas quais ela passa – do enquadro policial ao racismo institucional – é fruto do racismo. Mesmo com as dificuldades de aprendizado colocadas pela má qualidade da educação pública, a molecada está entendendo isso. É um salto qualitativo da luta: hoje temos mais gente para resistir. Na década de 1980, tinha uns gatos pingados que se davam conta do racismo e saíam feito Dom Quixote para mostrar isso para toda a população. Hoje, mães resistem muito ao genocídio dos seus filhos e companheiros. Os saraus, hoje, discutem poesia mas também racismo, resistência, possibilidades de luta. Até a Globo ter um programa só para o Lázaro Ramos, onde ele pode dizer tudo o que quer no maior conglomerado de comunicação do país – que é absolutamente racista –, é fruto dessa consciência. Isso significa dizer que eles sentem que em algum momento têm que ceder espaço.
Isso é interessante nas lutas por direitos humanos ou é só mais uma forma de apropriação e comercialização dessas lutas?
Regina – Esse debate é extremamente complexo. Se por um lado dizemos que a Globo é racista, por outro temos que admitir que a população brasileira toda assiste ao canal. Um programa que fala de ancestralidade africana, só com atores negros e que alcança o grosso da população brasileira, tem um significado do tamanho do mundo. A garota negra se vê na Taís Araújo, se vê na cantora de rap e funk, se vê na garota do Dream Team do Passinho. E isso porque uma das maiores conquistas do movimento negro neste país é romper com a invisibilidade do negro. Há oito, dez anos a gente não tinha negros na televisão. A referência da criança era Xuxa, Angélica, Eliana, loiras de olhos claros. Isso é significativo hoje. Ou eles dão os anéis, ou os dedos. Eles, querendo ou não, estão incorporando alguma coisa que dá um insight na juventude negra. E não são eles que estão abrindo as portas, nós é que estamos chutando. É produto da nossa luta, é uma conquista nossa.
Quais as diferenças entre a militância de hoje e a de 40 anos atrás?
Milton – Hoje, percebo que há uma maior consciência, em vários setores e em várias correntes do movimento negro. É uma garotada que vem mais avançada até porque tem acesso a mais leitura: Rosa Luxemburgo, Marx e Lenin, mas também leem Frantz Fanon, Aimé Césaire, Lélia Gonzalez. É uma mudança significativa, que vem não só do acesso facilitado pela internet, como também de negros e negras intelectuais e artistas que foram essenciais na formação dessa nova garotada. Gilberto Gil, Luiz Melodia, Paulinho da Viola, Leci Brandão, Chico César. Nesse aspecto, quem deu as bases para todo esse conhecimento e representatividade foi a luta que o MNU encabeça há 40 anos.
(1) Comentário
ÓTIMA ENTREVISTA, NÃO TINHA NEM OUVIDO FALAR DO CASAL, FIQUEI ADMIRADO COM O CONHECIMENTO QUE AMBOS POSSUEM ACERCA DO ASSUNTO QUE É DE GRANDE RELEVÂNCIA DESDE SEMPRE…