Ignácio de Loyola Brandão e as distopias reais
O escritor Ignácio de Loyola Brandão, membro da Academia Brasileira de Letras (Foto: PC Pereira/Revista CULT)
Se os grandes artistas são antenas que captam o espírito da época e iluminam suas complexidades nos mais diversos recônditos, Ignácio de Loyola Brandão foi um pouco além ao “prever” a figura de Bolsonaro, décadas antes. Em seu livro Não verás país nenhum, de 1982, há um capitão ligado a “milícias” que carrega parte do intestino numa bolsa atada à cintura. O romance mostra um futuro próximo em que a Amazônia virou um deserto, cientistas são perseguidos e não há água potável – as pessoas têm de reciclar a própria urina para beber.
É um dos grandes sucessos de Loyola, que acaba de ser eleito, por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras. Mas o livro pelo qual é mais lembrado é Zero, traduzido para várias línguas e estudado em universidades mundo afora. “Foi uma bomba que eu quis explodir naquele momento”, conta. O momento era 1974, plena ditadura. Construído a partir de fragmentos de matérias censuradas que ele ia recolhendo no jornal Última Hora, Zero desafia exegeses e interpretações. “Realismo feroz” foi o epíteto dado por Antonio Candido. De fato, o romance descreve os anos de chumbo a partir das entranhas dos personagens, que vagam por ruínas reais e simbólicas, perdidos e sem esperança; mas também é um pastiche do caos consumista, uma colagem pop de sensações e sentimentos, uma radiografia alucinada das crenças, dores e dos pesadelos que permeavam nossa sociedade. O livro foi lançado primeiro na Itália, com tradução do então estudante Antonio Tabucchi. Em 1975 saiu no Brasil, onde se esgotou rapidamente e ganhou as melhores críticas. No ano seguinte, acabou censurado, sendo liberado apenas em 1979, depois de manifestações dos maiores intelectuais do país.
Recentemente, o autor, também contista, cronista (desde 1993, no jornal O Estado de S. Paulo) e escritor de infantojuvenis – em 2008 ganhou um Jabuti por O menino que vendia palavras –, resgatou o ímpeto feroz e distópico e publicou Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, romance que lança o mal-estar da chamada civilização num vórtice vertiginoso. Ao nascer, as pessoas são presas a uma tornozeleira eletrônica, os pensamentos são monitorados, não há ministério da cultura, direitos humanos e meio ambiente, as escolas foram abolidas, os impeachments são corriqueiros como os mortos, carregados em comboios nas ruas, a política e o judiciário estão sequestrados por “astutos” e criminosos, o desgoverno é a norma.
Perto disso – e do obscurantismo presente – sua cobertura em Pinheiros é um paraíso de resistência cultural e ambiental. Há livros no chão, nos degraus da escada, na cozinha e até nas estantes. Há jardins em cada canto e mesmo um caramanchão. Chamam atenção os quadros de lugares que visitou, com folhas que colheu no cemitério de Kafka ou na casa de Hemingway, duas de suas maiores influências. Fellini é outra, como conta na saborosa conversa que tivemos: “A estrutura do Zero vem do Oito e meio.” Diz, inclusive, que seu maior desejo era ter sido cineasta. Mas está feliz: “Vivi tudo o que o eu pude – mais seria impossível.”
CULT – Ser cineasta foi sempre o seu sonho, desde pequeno?
Ignácio de Loyola Brandão – É, mais ou menos. O cinema era o único divertimento em Araraquara [onde nasceu, em 1936]. O primeiro filme que vi, com meu pai e minha mãe, foi Canção de Bernadete. Eu não entendia direito, pois não conseguia ler as legendas. Aos 15 anos comecei a acompanhar os críticos. Lia Almeida Salles, Paulo Emílio Salles Gomes, Benedito J. Duarte, Alex Viany, que fazia correspondência de Hollywood. Um dia apareceu na biblioteca o livro Sétima arte. Fiquei encantado e roubei. Devolvi uns 50 anos depois, com uma cerimônia, a gente morreu de rir. Convidei o velho bibliotecário, um sujeito humilde, que fumava cigarro de palha, mas que teve uma atitude que nunca mais esquecemos. O prefeito e o presidente da Câmara tinham proibido as obras do Jorge Amado para as mulheres. O Marcelo liberou e elas, que não frequentavam a biblioteca, passaram a ir em peso.
Seu pai era um grande leitor também.
Muito. Meu pai era um ferroviário remediado, não era pobre, mas não tinha como me dar dinheiro para ir ao cinema toda noite. Mas um dia fui ver a história do Rodolfo Valentino. Adorei e resolvi escrever um texto. Fui pondo termos das outras críticas, um pastiche total. Levei ao jornal e publicaram. Eu tinha 16 anos. Meu professor, o Jurandir, disse: “nunca use o ‘lhe’, porque estraga qualquer frase. E cuidado com o ponto e vírgula. Só quem escreve muito bem ou quem é louco que usa”. Até hoje eu não sei para que serve o ponto e vírgula. Ganhei uma permanente para o cinema e ia toda noite. O dono do jornal falava “escreve curto, tá? Não fica fazendo frase comprida que ninguém lê, enxuga bem”. Velhinho já, tinha a cara do Graciliano Ramos. Depois vim para São Paulo, para trabalhar no Última Hora, onde eu fiz geral, mas logo consegui a coluna de cinema.
Mesmo com o sucesso do Zero e do Não verás país nenhum, você continuou a trabalhar como jornalista?
O Zero na época vendeu demais. O Não verás vendeu demais. Depois, O verde violentou o muro (1984) vendeu muito. Cadeiras proibidas (1976) não era lido, mas nos anos 1990 explodiu, todo professor recomendava, os jovens adoravam o livro. Outro que vendeu bem foi o O beijo não vem da boca (1985). Mas eu fazia muito freelance, sempre vivi do jornalismo, tinha o Última Hora e aí fui para a Abril. Quando lancei Não verás, fui embora para Paris, para Berlim, onde fiquei dois anos.
Em Berlim, você fazia o quê?
O Zero foi publicado lá com grande sucesso no mundo acadêmico, traduzido pelo Curt Meyer-Clason, famoso pela tradução do Grande sertão: veredas. O Serviço de Intercâmbio Cultural da Alemanha me convidou para desenvolver um projeto em Berlim. Eu não tinha projeto nenhum, mas claro que disse que tinha. Fui e acabei apaixonado. Eu gosto muito de andar nas cidades, não dirijo. Lá, eu sentava no primeiro banco dos ônibus, no andar de cima, onde tinha visão total. Sempre levava uma cadernetinha comigo. E anotava tudo, um cartaz esquisito, um lago, um bosque… Eu ia e via pessoas andando – foi a primeira vez que eu vi um monte de mulher nua no parque. Comecei a perceber que tinha um outro mundo. Quando voltei, acho que tinha uns 120 cadernos preenchidos. E vi que aquilo tudo formava um diário de como funcionava Berlim com o muro em volta. Aquela neura, aquela cidade movimentadíssima, que de repente ficava silenciosa, e então surgia uma manifestação e a polícia chegava descendo o pau, quebrando tudo. Fiquei fascinado e escrevi O verde violentou o muro em quatro, cinco meses.
Esses três livros, Zero, Não verás país e o mais recente, têm um aspecto premonitório muito forte, infelizmente.
O Zero mostra o momento. Era daquele jeito. Mas o Não verás foi premonitório, e o outro, Desta terra…, então, foi sacação em cima de tudo que estava aí, é só elevar à potência máxima. A minha primeira professora, a Ruth – está viva até hoje, lá em Araraquara –, dava redação e dizia assim: “inventa o que quiser, por mais louco que for, não fica descrevendo, fica imaginando”. E ela sempre alertou para essa coisa: a realidade é mais absurda do que o próprio absurdo. Isso ficou muito na minha cabeça. Quando cheguei numa idade mais madura, uns 20 anos, descobri A metamorfose. E eu tinha um outro amigo, o Dedão, completamente maluco. Era um beat antes da beat generation, revoltado contra tudo, cínico, satírico. Ele dizia assim: “você leu esse livrinho e gostou. Se ele achasse que um cara virar um inseto fosse uma loucura, ele nunca teria modificado o romance moderno”.
Como você coloca seus livros, em especial Desta terra…, diante da realidade de hoje – a gente está se encaminhando para essa distopia toda?
A gente já está vivendo. A gente não tem um presidente sem cérebro? É ou não é o Bolsonaro? É um homem totalmente despreparado, totalmente sem cultura, totalmente sem escola, totalmente sem raciocínio. É igual aos meus presidentes em Desta terra… um tem uma doença, outro não tem cérebro, outro vive sem coração. Não existe mais anonimidade, a gente está vigiado o tempo inteiro. Se você for trepar, vão saber que você está trepando, se for mijar, vão saber do mijo. Você é vigiado, fiscalizado. Não tem mais esse ser que se esconde. Você é coagido a consumir, compra coisa que não precisa. Com o celular, você não quer em nenhum momento ficar só. A arte da conversação deixou de existir. A discussão, então, acabou, porque a discussão pode resultar numa morte. Ninguém mais tolera a opinião do outro, a crença do outro, a religião do outro, a política do outro, nada, isso não existe mais. Existe ódio. Isso me incomoda muito, e a única maneira de eu tirar as coisas de dentro é pôr num livro, botar no texto.
O livro funciona como uma espécie de catarse?
Para mim, funciona.
E para o leitor também?
Acho que sim. Para mim, funcionou muito. Você sabe o primeiro livro que eu li na vida? O patinho feio. Eu era muito complicado. Pobre, malvestido, me achava muito feio. As meninas não olhavam para mim na praça, aquelas coisas que você tem de criança. E era muito enrustido, me escondia, ficava no fundo da classe. Um dia, meu pai trouxe esse livro para eu ler. E disse: “Depende de você, da sua cabeça.”
Você acha que o escritor tem um papel social?
Não é que você vai sair por aí cumprindo um papel social. Mas acho que o ato de escrever é um ato de capturar as coisas em sua volta e mostrar. Quando Dostoiévski escreveu Crime e castigo, ele estava colocando todo o problema da culpa. Os escritores aclaram as coisas em volta. O que me leva a uma frase do Érico Veríssimo, que eu tive emoldurada por muitos anos: “cabe a um escritor acender uma luz diante da escuridão. Se não tiver uma luz, acender uma lanterna. Se não tiver uma lanterna, acender uma vela. Se não tiver uma vela, acender um fósforo”.
Mas eu diria que tanto o Zero quanto o seu mais recente não são fósforos nem lanternas, são explosões.
É, o Zero, quando eu estava escrevendo, eu queria jogar uma bomba. E era época de jogar bomba. Mas eu pensei, porra, não sou violento, eu não sei matar. O que eu posso fazer? Fui jogar uma bomba literária. E sabe que o Zero não tem uma palavra inventada. Você sabe o processo dele?
Você pegava os artigos que eram censurados…
Tudo, tudo. Eu era secretário gráfico. Eu tinha 30, 28 anos. As matérias vinham para mim e o censor falava “me dá”, e eu dava. E ele ia falando “isso não pode”. Da primeira vez eu disse “por que não pode?” Ele disse “a próxima vez que você perguntar, você vai preso. Não pergunta mais nada”. Fui jogando tudo na gaveta e depois levei para o meu apartamento. Um dia, a Ítala Nandi, a atriz, passou por lá e perguntou “o que é isso? Pegou no lixo?” Aí eu comecei a mostrar e ela falou “porra, não dá um livro? Tudo o que o Brasil não soube?” E aí eu comecei o Zero. Em 1964 comecei a pegar o material, em 73 ele estava já quase pronto.
Você lançou primeiro na Itália, numa das fases mais pesadas aqui da ditadura.
O livro foi vendido para o Feltrinelli, através da Luciana Stegagno Picchio, que era professora do Antonio Tabucchi, que o traduziu. Ela mandou uma carta: “o livro está pronto, mas a gente acabou de saber que o adido militar da embaixada do Brasil está dizendo que qualquer artigo, qualquer publicação que denigra a imagem do Brasil no exterior pode dar cadeia para o autor e o editor. Publico o livro?” Fiquei numa sinuca. Conversei com a Bia, minha primeira mulher, que disse “você levou 10 anos fazendo isso para quê? Para perder o seu tempo? Você não fez isso porque era contra o que está acontecendo?” Decidi publicar… Se naquele momento eu tivesse dito não, não estaria aqui hoje. Eu teria virado um deprimido, amargurado, puto, culpado, sei lá. Porque depois do Zero tudo de bom aconteceu para mim. Mas a proibição, em 1976, foi um horror. Eu tinha quase 40 anos, tinha trabalhado naquele livro um quarto da minha vida. É nessa hora que você decide a vida. Sim ou não. Ou você atravessa a porta ou não atravessa.
Citando o Não verás… “Nada pior que a memória do gesto
não realizado”.
Sim. Anos atrás, eu era jovem e me apaixonei por uma moça em Araraquara. Eu já queria ir embora da cidade. Mas eu era também tímido e não falei para ela. Passaram-se muitos anos, ela já estava casada, tinha filhos. Bebemos e eu falei “você sabe que eu era apaixonado por você aos 16 anos?” Ela respondeu “E eu era apaixonada por você, por que você não disse? Você passou a vida pensando no que teria acontecido se tivesse tentado. Isso é um suicídio lento”. Isso motivou a feitura de um livro meu, chamado Dentes ao sol.
Que é o seu livro favorito, não é?
Sim. Nós éramos um grupo fechadão, em que cada um tinha um sonho de fazer alguma coisa. O Farouk queria vir para São Paulo cantar bolero. O Zé Celso queria vir fazer teatro. Em 1962, comecei a escrever uma história impulsionado pelo Encontro marcado, do Fernando Sabino. Terminei o livro e era muito ruim. Chamava O sonho gasto. Horroroso. Depois eu mudei para Homem em baixo-relevo. Pior ainda. Aí, deixei. Em 1975, me deu uma coisa, tirei o livro da gaveta e o reescrevi. Em três meses. Foi o mais rápido que eu já escrevi, só que eu pensei 13 anos nele. Esse livro foi um fracasso. Um pouco porque ele veio depois do Zero, que eu passei a odiar. Mas Dentes ao sol acabou sendo traduzido nos Estados Unidos, e um dia fui a Albuquerque, no Novo México, falar para 40 alunos, em português; um menino me disse “olha, eu adoro Dentes ao sol”. Perguntei: “por quê?”. Ele respondeu: “é igualzinho a Albuquerque”. Aí eu considerei o livro bom.
No Zero, o José, personagem central, entra para a guerrilha. Você chegou a se aproximar dos grupos de resistência à ditadura?
Nunca estive em nenhum movimento clandestino. Minha clandestinidade foi o Zero, minha luta armada. Quando a gente foi a Cuba, em 1978, eu, o Antônio Callado, Fernando de Moraes, Wagner Carelli, Chico Buarque e a Marieta Severo, como jurados do Prêmio Casa de las Américas, tinha um monte de brasileiro exilado, e uma noite eles pediram se podiam ter uma conversa conosco. A pergunta era: “vem anistia? Vocês acham que podemos voltar?” Quando acabou aquela conversa, que eu expus no Cuba de Fidel (1978), a gente saiu para um bar. E uma mulher grudou no meu braço e disse “em que grupo da luta armada você esteve?” Eu falei “nenhum”. “Não, só um cara que esteve lá dentro poderia ter escrito esse livro” – era a Clara [Charf], mulher do Marighella. Minha amiga até hoje. Dei um beijo nela e falei “ai, obrigado”.
Como você se descreve politicamente?
Não tenho partido, não sou da esquerda nem da direita, eu sou da tentativa de olhar em volta com lucidez. E de não aceitar imposições e dogmas. Não sou petista, mas estou de acordo com várias coisas do PT. Acho que o Lula fez um primeiro mandato muito bom. Porque eu estive no Nordeste e eu vi luz, vi uma série de coisas que não existiam, as pessoas com geladeira, televisão. Antes, tinham nem um pião. Então, sou um democrata, acho.
Um otimista experiente?
Quem falava isso era o Meyer-Clason. “Um pessimista é um otimista com experiência.” Talvez eu seja isso. Eu não acredito em nada e acredito em tudo. Se eu não acreditasse, não ia fazer esses livros.
Você que viajou pelo país inteiro, acha que no pé em que estamos, tem alguma solução?
Esse país não é conhecido por nenhum daqueles políticos filhos da puta de Brasília. Brasília vive dentro de um muro fechado. O que eu andei… peguei em Macapá um barco-biblioteca e desci o Amazonas; a gente foi nas escolas ribeirinhas. Você precisa ver o encanto daqueles professores pegando os livros que a gente ia deixar. E os agentes da leitura no Ceará, de bicicleta, levando nas costas os livros para a zona rural. Em Goiás, Pirenópolis, a gente indo para as escolas rurais e as mães fazendo café e broa, e os meninos contando histórias. Tem um monte de gente nesse país, só que são heróis anônimos. Uma vez, me levaram para Ocara, no Ceará, a primeira cidade do sertão. Era sábado, fomos para o centro comunitário, uma coisa muito bem armada, gostosa. Eu fui contando história, e eles não se moviam – às vezes riam, às vezes não riam. Uma hora e meia. Aí eu falei “vocês têm alguma pergunta?”. “Tenho, tenho!” A professora estava abismada. Quando acabou, ela falou, “ai, muito obrigada, eu quero te agradecer, porque eu tinha um medo de que o senhor viesse falar da metalinguagem, da desconstrução, da metonímia e tal. E o senhor acabou de dessacralizar a literatura”. Eu falei “é mesmo, eu nem sabia”. Quando estava saindo, vieram duas senhoras, tinham uns 80 anos. Elas falaram “nós somos analfabetas, nunca lemos um livro, mas gostamos tanto das suas histórias… a gente quer aprender a ler”. Três anos depois eu voltei e fui para Aquiraz, a antiga capital. Fiz uma palestra e aquelas duas mulheres estavam lá. Uma delas perguntou: “Quando vou plantar o meu milho, eu vou na cooperativa e compro a sementinha. Quando o senhor vai escrever um livro, onde você pega as palavras?” Nem o Antonio Candido faz uma pergunta dessas. Eu expliquei que vinha acumulando através da vida, guardando… E elas agora leem. Valeu minha vida ter duas pessoas tiradas do analfabetismo. São essas pessoas que fazem o Brasil. Não é Eduardo, Flávio, Carlos Bolsonaro. Não é. Eu acredito que a gente muda. Pode demorar o quanto for, mas a gente muda. Eu morro mas vem outro.
Tem uma seção no New York Times chamada “By the book”, em que perguntam: “Se você pudesse escolher três escritores para um jantar, vivos ou mortos, quem você chamaria?”
Eu chamaria Hemingway, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo. Eu jamais esqueço uma vez quando perguntaram para o Hemingway “como que se deve escrever um conto?” Ele falou “como se estivesse mandando um telegrama internacional pago do seu próprio bolso. Cada palavra custa.” O Graciliano eu acho o maior de todos. Você pega Vidas secas, é um livro perfeito.
É por isso que você tem uma obsessão com esses símbolos do sol, do deserto, da areia?
Não sei, é gozado, no Dentes ao sol, a cidade fica debaixo da areia no fim do livro; vira um deserto, e a única coisa que fica acima do solo é a torre do relógio da antiga fábrica Lupo. O personagem entra pelo mostrador e fica vendo as horas ao contrário e vai voltando. Agora, eu também gostaria de convidar para esse jantar o Fellini. Quando ele morreu, eu fiquei muito mal. No fundo, nós em Araraquara éramos I Vitelloni, Os Boas-vidas. E Araraquara era Rimini. Um dia perguntaram ao Fellini “mas a Rimini foi destruída durante a guerra. O que existe para você?” Ele respondeu: “não consigo considerar Rimini como fato objetivo é antes uma dimensão da memória. Quando estou em Rimini, sou sempre agredido por fantasmas já arquivados”. E Araraquara? E eu? Não é igual? Essa aproximação com Fellini foi fundamental. Quando o La dolce vita foi exibido em São Paulo, foi uma paulada, a gente saiu e ninguém falava nada. Eu pensei sempre em fazer um Dolce vita, com fundo de São Paulo. Eu ainda penso, quando eu passo na Vila Madalena. O Oito e meio também. Na primeira vez que vi, cheguei no meio do filme e não entendi nada. Fiquei para outra sessão. E aí comecei a perceber a estrutura do filme, o plano da realidade e o plano da realidade idealizada. Anos mais tarde, quando eu estava procurando a estrutura do Zero, lembrei do filme. Até hoje eu já vi umas 130 vezes. Escrevi muito e ainda escrevo ouvindo o Nino Rota. Mas no Não verás… sabe o que eu ouvi o tempo inteiro? A música do Apocalypse now. Gastei o disco. Eu sempre escrevo com música.
É curioso ver a coincidência do Não verás…, em que o sobrinho do personagem central é um capitão ligado a “milícias” e tem uma bolsa com intestino para fora, que foi mais ou menos o que aconteceu com o Bolsonaro.
Eu tinha até esquecido isso. Agora me arrepiei. Olha a arte, como é interessante. A vida põe pontos assim, não tem acaso nem coincidência. Põe os pontos e depois ela liga. Vai ligando e pronto. Coisa bonita. Gente, meu deus.
Você já está pensando em um livro novo?
Não, não dá. Eu fiquei quatro anos e meio fazendo o Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela. Eu tô com a cabeça muito cheia. A unanimidade na eleição para a Academia foi um espanto para mim. Adorei, viu?
Mas antes você não quis concorrer.
Achei que não era para mim, mas você muda de ideia. Lá dentro está o Antônio Torres, meu amigo desde os anos 1970, e a Nélida Piñon – percorremos esse país falando durante a ditadura; o Zuenir Ventura, o Cícero Sandroni – era toda uma geração, eu falei “falta eu. Porra, no fundo, é um menino de Araraquara, filho de um funcionário modesto… me encanta um pouco”. Quando eu fui eleito, ligaram de Araraquara e disseram: “parece que a cidade ganhou a Copa do Mundo”.
Você mencionou suas andanças com a Nélida Piñon e outros autores durante a ditadura. O que foi isso?
Essas andanças começaram em 1975. Eu nunca tinha falado para um público, tinha pavor. E aí, foi organizado no Rio de Janeiro um ciclo contra a censura. No Teatro Casagrande. Era cinema, teatro, televisão, artes. E um dia teve literatura. Eram 400 jovens estudantes na nossa frente e a polícia toda anotava. Eu falei do Zero. Fui falando, não sabia o que falava mas eu ia falando. E nós começamos a receber convites. Não tinha cachê nem nada, eles pagavam uma passagem de ônibus ou avião, a gente ia. Chegou um momento em que eu comecei a levar tudo o que eu tinha de proibido. A minha palestra era ler coisa proibida. Aí o Zero foi proibido! O censor, que era um sujeito culto, me disse: “por sorte sua, foi proibido por moral, então não tem um processo. Se fosse proibido por política, você ia se encrencar. Então fique feliz”. Como se eu ficasse feliz. Nessa época, em Campina Grande, encontrei um exemplar do Zero que tinha sido datilografado. Aquilo era de uma dificuldade imensa para fazer. Dividiram o livro em 30 pedaços, cada jovem fez uma parte, e eles ficavam lendo e passando para os outros. O que eu quero dizer é: você pode proibir, mas se tiver um, ele vai continuar a viver. E aquilo deu um conforto durante a coisa. Não morreu o livro. Isso me emocionou muito.
Você acha que a gente está correndo risco de voltar a esse tempo obscurantista?
Eu tenho medo. Você viu o que o Dória acabou de fazer: contingenciamento, diminui a verba toda de cultura. Eles não se preocupam e não é só o Bolsonaro, os outros também. Há um bloqueio, a impossibilidade de fazer coisas. E pode ter até censura, eu não sei. Quem governa, meu deus? Um homem que se submete às palavras de Olavo de Carvalho. Porra, espera aí. Ele não sabe que é ridículo para ele isso? Ele mesmo diz “eu não nasci para presidente, sou militar”. Nem militar ele não é. Acho que ele não esperava ganhar.