Giorgio Agamben e o horizonte de um novo combate: a crítica da soberania política

Giorgio Agamben e o horizonte de um novo combate: a crítica da soberania política

Para se entender a complexidade dos alvos da esquerda política

Douglas Ferreira Barros

Os partidos e o pensamento de esquerda não têm hoje uma plataforma política e um programa de governo claramente definidos. Não têm condições de apontar aos cidadãos uma perspectiva de futuro consistente e um novo projeto de sociedade.” Apoiados nesse bordão, os adversários do pensamento e dos partidários de esquerda se fartaram, nos últimos anos, em apontar o que identificam como sintomas do esgotamento teórico e prático dessa corrente ideológica do espectro político.

A meu ver, o bordão acima é apenas um dado revelador da intensidade do debate ideológico entre direita e esquerda. Um aspecto é decisivo, contudo, para que observemos como esta última corrente política tem procurado se reinventar, a despeito das opiniões à direita e daquela de ex-simpatizantes da própria esquerda. Trata-se do empenho de pensadores alinhados com essas posições para identificar na realidade política vigente que algo de muito ruim acontece.

O filósofo italiano Giorgio Agamben constitui certamente um desses pensadores que, por meio de refinada e contundente investigação teórica, termina por apontar certos pontos mal resolvidos na história recente e, ao submetê-los à crítica, abala alguns consensos que parecem se erguer à nossa frente como verdades incontestáveis.

Agamben não é certamente o que se entendeu em décadas passadas – como Sartre nos anos 1950 e 1960 – por um filósofo militante. Muito menos, o seu pensamento pode ser localizado entre os que pretendem renovar o cânone marxista. Ele se filia à tradição crítica do marxismo contemporâneo por influência do filósofo alemão Walter Benjamin. Também, a sua abordagem de problemas centrais da política contemporânea deita raízes nas filosofias críticas do século 20, que estudam o modo de legitimação social de estruturas de poder singulares, tanto em sua forma, no caso da obra de Michel Foucault, quanto na forma e no conteúdo, no caso da análise dos totalitarismos feita por Hannah Arendt. Com relação à herança clássica da filosofia, a obra de Agamben mantém filiação muito mais com os textos e os temas que lhe fornecem material para a elaboração de seu trabalho conceitual do que encontramos ali uma preocupação especial em aprofundar a história da filosofia. Mas, o que nos trazem os escritos de Agamben que auxiliam na compreensão da complexidade dos novos alvos a ser combatidos pela esquerda política?

O tema que mais tem chamado a atenção dos leitores e dos estudiosos de sua obra é a crítica à noção de soberania. Sobre esse aspecto, o filósofo retoma a constatação do jurista alemão Carl Schmitt em Politische teologie (1922), segundo a qual o soberano resguarda em si um paradoxo: ele “está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. No soberano, o ordenamento jurídico reconhece a pessoa que detém o poder de declarar o estado de exceção. Isto é, mesmo fora da ordem jurídica, a instância máxima do poder ainda pertence a ela. A exceção, avalia Agamben em Homo sacer (2002), pressupõe que o que está excluído não está, “absolutamente fora de relação com a norma”. Não é simplesmente a ausência de poder, ou o caos que precede a ordem, mas “a situação que resulta da suspensão” da norma, mantendo, portanto, o poder supremo.

A novidade da tese de Agamben está em que essa posição do soberano, interna e externa à norma, identifica um problema que transborda o limite do jurídico. Em Estado de exceção (2003, p.11), o filósofo nota que a ausência de uma teoria da exceção no direito público não reflete o quanto esse tema já fora discutido. O que importa nesse caso não é que ele aponte essa lacuna, mas, sim, a ênfase no fato de que “a contigüidade essencial entre estado de exceção e soberania” constitui um problema genuinamente político. E como se configura, em termos reais, tal problema?

Um exemplo recente se pôde verificar no processo de dissolução da ex-Iugoslávia, transformada ao longo dos anos 1990 em pequenos países. Aquilo que se anunciava como a derrocada definitiva de um regime totalitário e a redenção da liberdade e da democracia, redundou – não na totalidade dos casos, é verdade – no aflorar de governos que utilizaram o dispositivo jurídico do estado de exceção como técnica de governo, instrumento para o exercício da coerção do poder sobre os cidadãos. Como se cometessem um ato de transgressão política, os governos de caráter explicitamente autoritário estabeleceram a exceção como norma de conduta do poder político para o estabelecimento de um novo tipo de coesão social. Mas, a que preço tal coesão se deu?

Alguns dos novos regimes que, naquela região, se instalaram, depois da dissolução do socialismo então vigente, não sucederam exatamente à situação em que os homens teriam reencontrado a sua condição natural e, depois dela, instituiriam um novo poder político, a partir de um pacto, e um novo Estado, tal como pensado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, em Leviatã (1651). Na ex-Iugoslávia, aqueles novos regimes autoritários estabeleceram o estado de exceção como norma e, por meio dela, os governos poderiam controlar aos cidadãos identificados como os “inimigos da ordem”. Não foram poucas as situações de extermínio e violação dos direitos humanos que se verificaram ali. Horrores, como genocídios étnicos, que se pensava terem sido eliminados com a derrota de Hitler e do nazismo, foram revividos em versão tão inescrupulosa quanto as do passado recente. O diagnóstico de Agamben identifica nesse caso, de fato, o germe de uma peste a se alastrar em algum momento no futuro: “Não se trata, portanto, de um retrocesso da organização política na direção de formas superadas, mas de eventos premonitórios que anunciam, como arautos sangrentos, o novo nómos da terra, que (se o princípio sobre o qual se baseia não for reinvocado e colocado novamente em questão) tenderá a estender-se sobre todo o planeta.”

Quando publicou, na Itália, a obra Homo sacer (1995), Agamben talvez não imaginasse que esses “eventos premonitórios”, isto é, o uso do estado de exceção como instrumento de governo transformando-o em norma, se espalhariam tão rapidamente mundo afora. Afinal, quem poderia imaginar que os atentados de 11 de setembro ocorreriam tal como ocorreram? O fato é que depois desses eventos e das reações desencadeadas pelo governo norte-americano, o cenário antecipado por Agamben se concretizou.

O plano norte-americano para desencadear a investida global contra os “inimigos da civilização ocidental” foi sintetizado no USA Patriot Act. Este constitui um documento que autoriza o governo a agir, em “regime de exceção”, contra qualquer indivíduo identificado, em qualquer parte do mundo, como suspeito de ser um inimigo da ordem daquele país. Quanto a essa prática, Agamben identifica nos atos do soberano “o significado biopolítico do ‘estado de exceção’”, isto é, ao tomar um indivíduo como suspeito, o poder do soberano retira-o da ordem jurídica e atua contra ele tão somente segundo o seu interesse. O suspeito, suposto “inimigo da nação”, não é senão o indivíduo que a tese de Agamben identifica como o homo sacer: uma pessoa que “é simplesmente posta fora da jurisdição humana” e deixada ao abrigo do soberano. Este age quando “suspende a lei no estado de exceção e assim aplica nele [homo sacer] a vida nua” (Homo sacer, 2002, p.90).

O significado biopolítico da exceção soberana, concepção que remete às análises de Foucault sobre as estruturas disciplinares de poder, é aquele em que “o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão” (Estado de exceção, p.14). Agamben avalia nessa mesma obra que isso aparece claramente na “‘military order’, que autoriza a ‘indefinite detention’ e o processo perante as ‘military commissions’ (não confundir com os tribunais militares previstos pelo direito de guerra)” (Ibid.), todos elementos que constam do Patriot Act. Os fatos recentes, como a situação dos presos em Guantánamo, falam por si. Como não dizer que o Estado norte-americano não atue ali como o soberano em posse da vida nua, tal como pensado por Agamben? Não apenas isso. O que melhor poderia descrever a situação de imigrantes em solo europeu que, impedidos de ultrapassar o Canal da Mancha em direção à Grã-Bretanha, escondidos em carrocerias de caminhões, são mantidos como refugiados nos chamados “abrigos” na cidade de Calais, no norte da França? Note-se que ao nos referirmos aos Estados acima, que agem atualmente em regime de exceção, estamos tratando de democracias, reconhecidas mundo afora como sólidas.

Não é preciso muito esforço especulativo sobre a realidade atual para concordarmos com Walter Benjamin: “o estado de exceção tornou-se regra” (Über den Begriff der Geschichte [Sobre o conceito da história], 1942, p. 697). Tal condição é aquela em que, completa Agamben: “não só sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica” (Estado de exceção, p. 18.). A idéia de um suposto interesse dos Estados ocidentais democráticos em disseminar a liberdade pelo mundo adquire no presente uma segunda face: a globalização da guerra, pois, “diante do incessante avanço do que foi definido como uma ‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional em diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre a democracia e o absolutismo.”

O problema que nos parece candente na observação acima é que o processo de instauração do estado de exceção e de atuação do soberano sobre a vida nua tem constituído uma técnica de governo recorrente nos atuais Estados democráticos. Com relação a esse aspecto, a crítica de Agamben abala os alicerces de concepções da democracia contemporânea satisfeitas com a idéia de que o estabelecimento de princípios e de procedimentos de justiça na relação que os cidadãos mantêm entre si é suficiente para que estes façam com que tais princípios atuem sobre o poder político, fazendo-o agir de modo justo. Para o filósofo italiano, essa perspectiva talvez valha como ilustração de uma concepção mítica da democracia.

Não obstante termos nos concentrado aqui na apresentação da crítica da soberania como um novo horizonte de combate, é preciso assinalar que as análises na obra agambeniana envolvem outros vários temas igualmente importantes. Menciono especialmente a análise das conseqüências da atuação dos biopoderes sobre a vida dos indivíduos, fator determinante para que entendamos as relações entre o poder soberano e o modo de gestão calculista e controlada da vida.

A advertência lançada quanto ao perigo de o “estado de exceção” se constituir a norma do jogo democrático, nas suas mais distintas formas, é um dos alvos para onde devem mirar as críticas dos militantes e dos políticos que se identificam com o ideário da esquerda. Quanto aos ataques de que a esquerda não tenha propostas concretas a serem implementadas no presente, talvez seja o caso de reconhecer que o momento atual demanda um outro trabalho, a saber, o de se aprofundar no conhecimento dos novos horizontes de combate, pois, lembra-nos Agamben: “(se o princípio sobre o qual se baseia [o estado de exceção] não for reinvocado e colocado novamente em questão) tenderá a estender-se sobre todo o planeta”. Admitamos: o exercício da crítica das formas contemporâneas de poder ainda é urgente!

Douglas Ferreira Barros
é professor de filosofia da PUC-Campinas 

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