“Minha poesia, meu corpo e minha sombra procuram ‘um modo de sobreviver ao real'”
O poeta Armando Freitas Filho em frame do documentário "Perto do fogo", de André Rangel Rios (Foto: Reprodução/Youtube)
Já faz um tempo que ando pensando em fazer entrevistas com poetas (a enquete Sobre poesia, ainda: cinco perguntas, cinquenta poetas, lançada em livro pela Lumme, em 2018, é um pouco disso). Tudo começa com uma paixão minha por ler entrevistas, não apenas de poetas, porque acredito que sempre conseguem revelar aspectos que escapam à nossa leitura, à crítica, à resenha e mesmo a depoimentos e ensaios dos autores. As entrevistas costumam quebrar algumas barreiras, pelo alcance das perguntas e das respostas, pelo que é dito, pelo que é evitado, pelo desconforto que a resposta revele diante da pergunta que avança.
Nada melhor e mais necessário, então, do que começar logo a fazê-las. Mãos à obra. Quando pensava os nomes dos entrevistados e as primeiras perguntas, surgiu a ideia de dividir essa tarefa com outros leitores e estudiosos de cada poeta convidado. O que seria, então, uma conversa entre duas pessoas, um leitor e um autor, passou a ser então essa ampla conversa entre diversos leitores em torno do – e com o – autor. Para nossa sorte, rapidamente meus amigos perguntadores aceitaram se juntar a essa conversa e os poetas também se animaram com o desafio de enfrentar essa “roda viva” de perspectivas diversas, abordagens teóricas, impressões apaixonadas, curiosidades. E afetos, sim, muitos.
E nada melhor do que poder começar essa série com um poeta que acaba de completar 80 anos e está há mais de seis décadas lendo, dialogando, escrevendo e publicando poesia. Nada melhor, também, do que poder contar, para essa conversa em torno de – e com – Armando Freitas Filho, com a colaboração de alguns de seus mais dedicados leitores: Alice Sant’Anna, André Luiz Pinto, Celia Pedrosa, Laura Liuzzi, Mario Alex Rosa, Paulo Ferraz, Renan Nuernberger, Ricardo Rizzo, Sofia Mariutti, Thiago E e Viviana Bosi, a quem agradeço imensamente. Espero que continuem por aqui noutras conversas!
O resultado, a meu ver, vai além do que poderia esperar de uma entrevista comum. As vozes e os olhares que saltam nas perguntas, pontuadas pela voz central do poeta, formaram a meu ver um longo ensaio escrito a muitas mãos (26, mais especificamente!), a muitas cabeças, dando conta das diversas fases e faces da obra colossal e vivíssima de Armando.
Armando Freitas Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 1940, onde vive. Publicou os seguintes livros de poemas: Palavra (1963), Dual (1966), Marca registrada (1967), De corpo presente (1975), À mão livre (1979), Longa vida (1982), 3×4 (1985), De cor (1988), Cabeça de homem (1991), Números anônimos (1994), Duplo cego (1997), Fio terra (2000), Máquina de escrever – poesia reunida e revista (2003), Raro mar (2006), Lar, (2009), Dever (2013) e Rol (2016). A Companhia das Letras deve lançar, ainda neste semestre, Arremate.
Vamos à entrevista com o poeta. E, em breve, teremos outras.
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Celia Pedrosa – O cinema é uma forte referência em seus poemas. Como foi ao longo de sua vida a relação entre experiência poética e experiência do cinema? Como ela se realiza (ou não) ainda hoje? Como a vê nos seus colegas de geração e nos antecessores que admira?
Armando Freitas Filho – Gostava de teatro, antigamente. Mas o cinema o ultrapassou. Em todo caso, não sinto que o cinema seja uma referência forte na minha poesia. Bem que gostaria. Sou muito mais ligado às artes plásticas. Tenho alguns filmes, isso sim. Tenho Jacques Tati, Carlitos e Jean-Luc Godard, basicamente. Portanto, converso forte é com a poesia “pura”. Se é que existe poesia pura. Converso com alguns poetas com amor e raiva com os outros. Poetas brigam muito.
Mario Alex Rosa – No seu primeiro livro, Palavra (1963), cujo projeto gráfico é do artista plástico Rubens Gerchman, na capa o vocábulo “palavra” se repete quatro vezes, sendo que a segunda em negrito. Já a epígrafe é do poema “O lutador”, de Carlos Drummond de Andrade: “palavra, palavra (digo exasperado) se me desafias, aceito o combate”. Gostaria de saber como tem sido o combate com as palavras do primeiro livro pra cá? E como tem encarado esse mesmo combate nesse momento da pandemia?
As palavras da epígrafe acompanham a minha vida. CDA é um fenômeno. Quando fui junto com Helio Pellegrino ao velório dele, um segurava o outro, pois ambos tremiam. Arthur Dapieve, muito moço ainda, era jornalista e perguntou ao Helio e a mim o que poderíamos dizer sobre Carlos Drummond. Helio disse: “Não me entenderia sem a poesia dele”; e eu: “Ele é maior que o Brasil”. Essas duas frases serviram, dois anos depois, uma e outra, como questão para a prova do vestibular de então. Quanto à pandemia, lutamos com um terrível inimigo invisível a olhos nus. Só penso na aparição de uma vacina definitiva. Assim como foi vencida a poliomielite pelo gênio do Sabin.
Renan Nuernberger – Pensando no poema “Projeto”, publicado em Palavra (1963), observo que sua relação com a poesia de João Cabral de Melo Neto se estabeleceu, desde o início, a partir de um gesto duplo, por meio do qual a racionalidade construtiva é incorporada e, ao mesmo tempo, desestabilizada por um impulso visceral que a forma calculada parecia incapaz de conter. Mas, ainda que esse gesto seja reencenado em “A João Cabral, com amor e sordidez”, “Caçar em vão” ou “Outra receita”, me parece que algo mudou nos últimos anos, em poemas como “Maxilar”, no numeral “91” ou no recente “4/4 – Pensando em João Cabral”. Tenho a impressão que agora, à distância, seus poemas procuram explorar o que já havia de visceral (ou, ao menos, de instável) dentro do cálculo do próprio poeta pernambucano. Tendo em vista essa mudança, pergunto: o que exatamente sua poesia precisou desaprender da lição cabralina para se constituir? E mais: o que ela descobriu recentemente ao reler Cabral sob essa perspectiva “sem remédio, sem receita”?
Minha poesia, de nascença, foi uma mixórdia de Carlos Drummond, João Cabral e Ferreira Gullar, meus mosqueteiros. A lição ainda levava valiosas pitadas indispensáveis de Manuel Bandeira. Portanto, para constituir a minha essência o mexido foi esse. Mas como eu adoro o Deus Drummond ele é quem me alimenta mais. Tenho, constante, o pedido de socorro à sua poesia magnífica.Uma verdadeira Bíblia. Não desaprendi tampouco por que meu vetor é outro, meu esquema é este irredutível, inamovível. Mas é esse o quarteto que me segurou, me prendeu, me soltou para poder voar um pouco, mesmo quando me esborracho. Não custa dizer que eu copiei à mão o livro de Gullar, A luta corporal, que foi a princípio muito comprado porque julgavam que era um livro sobre lutas, mas era logo devolvido quando percebiam que se tratava de poesia. Muitos anos depois, ao ler Jorge Luis Borges deparei com o conto “Pierre Menard, o autor de Quixote”, em que o personagem copiava o livro D. Quixote de Cervantes tal qual. É claro que não estou me comparando ao personagem de Borges: ele o fez para criar uma ficção do original, eu fiz somente para poder apreender o texto de Gullar.
Thiago E – No seu livro 3×4, de 1985, há um adorável poema que começa com “a muleta do gago”. Eu também sou gago, Armando, já tratamos por e-mail das nossas gagueiras. Há outros poemas seus sobre? Sua gagueira é genética? Quando vejo você falar, me reconheço, me identifico com a contração de seus lábios, e a boca aberta sem a palavra sair, a repetição do vocábulo “compreende?”, “compreende?”, sua testa franzida sobre as pálpebras espremendo, como se nos mostrasse, enfim, que a fala precisa dos olhos para fluir… Você pode falar sobre a importância da gagueira na sua expressão, na sua poesia, na sua vida?
Minha gagueira não é genética. Tenho 77 anos ela me acompanha por esses anos todos. Não lembro de mim sem ser gago. É uma espécie de sombra oral. Me lembrei deste poema que vai junto. Está no livro 3×4, de 1985. Mas deve ter outros, se não poemas, menções. Creio que minha poesia tem algo da minha gagueira, com muitas vírgulas. Adoro repetir-me para ver se acrescento algo desviante daquele assunto já estabelecido e pensado. Muito obrigado pelos elogios, que me justificam. Todo gago tem seus coringas verbais, digamos assim. Um dos meus é “compreende?” João Cabral, que não era um gago explícito usava a mesma palavra, para abrir outro parágrafo verbal. Abraço agradecido do Armando.
Meu “irmão” gago: tive que repetir o que já tinha dito a você por e-mail há três anos. Não saberia dizer tão bem agora com 80 anos. Iria gaguejar feio. Sem nexo, sem eixo, sem força. Muito obrigado pela força e vá em frente como eu faço, com toda a certeza melhor que eu. Te abraço aqui de longe por causa do coronavírus. Em tempo: vou mandar o poema que você conhece para os outros leitores, gagos ou não, conhecerem.
A muleta do gago
é outra voz, uma gag
um ventríloquo ferido
pelo garfo da gafe
um tapa de luva de pelica
no lugar outrora ocupado
por um rosto
ou a sensação, a fantasia
de que são incompletos
o jogo e a palavra golf
Ricardo Rizzo – Armando, a relação do som e sentido na sua poesia tem um efeito hipnótico. Há uma qualidade compulsiva no andamento da forma se montando e das imagens se corporificando, e a leitura se torna também um pouco compulsão, necessidade meio cega de ver aonde o poema vai dar. O arrasto da aliteração, o arranque, o ataque, o engate, o atrito, talvez sejam alguns dos muitos gestos com que o movimento dos poemas se constrói. Mas não são gestos abstratos. O corpo parece ser o terreno por excelência dessas operações (nunca apenas corpo, “vagão de sangue correndo sobre os trilhos dos ossos”, mas sempre o próprio sujeito, com memória, tesão, compulsivo, lançado nas ruas, na cidade, no mar e na montanha…). Tanto que a pele também é outro núcleo que surge com muita obstinação nessa mecânica geral do corpo-palavra-realidade: as coisas e as relações têm pele, sentem, arranham, etc. O som, gravitando em torno dessas aliterações preferenciais e corpóreas, ferindo a pele das coisas, parece conduzir o sentido e o próprio pensamento, “rasgando / todas as regras de entrega” – e ao mesmo tempo, há muito rigor e desejo de serialidade nessas operações, nessas progressões; a compulsão é metódica, tem disciplina, “os números são maníacos”, etc. Em um poema de “Dever” você fala sobre esses pólos, “mais ânsia do que ensaio”. De onde você acha que vem essa relação corpórea com a escrita, essa ânsia da aliteração, que contém de um lado a vertigem da palavra e de outro a serialidade, o sofrimento da repetição? Você considera que essa “sofrescrita”, que parece buscar o atrito e o arrasto, atende também a um modo de sobreviver ao real?
Antes de mais nada, muito obrigado pelo seu ensaio sobre mim. Mereço tanto? Sinceramente, gostaria. Mas estou sempre em dúvida, “com medo de ter medo”. Sem dúvida você acertou. Minha poesia, meu corpo e minha sombra procuram “um modo de sobreviver ao real”. Espero que consiga, nos degraus que me faltam, cair sem dor na escada obrigatória.
Alice Sant’anna – Armando, você uma vez disse uma frase que nunca mais esqueci: “o poeta não tem temas, tem problemas”. Hoje, aos 80 anos, os seus temas, digo, problemas, continuam os mesmos da época em que você começou a publicar, nos anos 1960? Ou você sente que os temas/problemas mudam com o passar do tempo?
Sem dúvida mudam. Pouca coisa, mas mudam. Não sou aquele que relê o seu próprio livro, pois eu os acho quase repetidos com outras palavras. Tenho esperança contudo de que quando passar o tempo reconheçam pelo menos a minha incansável escrita. Que essas pequenas mudanças consigam embelezar, um tico que seja, o que ficou no último papel. Mantenho, portanto, alguma esperança, de que os “problemas” perdurem sempre areando os temas passados ou vencidos.
Laura Liuzzi – O corpo é sempre muito presente nos seus poemas. Você já sentiu que saiu de si? Você sai de si?
Às vezes me sinto pregado no chão. Outras tantas me sinto saindo do meu corpo tão presente nas linhas em que foi escrito, fora de mim como se estivesse fugindo dele, do espelho, do reflexo. Posso me sentir também como os velozes ponteiros do cronômetro, que vão parar num dia xis a ser apagado. Assim, portanto, vou indo com meu corpo repetido, se esvaindo sem conseguir sequer reter a sombra fantástica dele. Como toda gente eu acho: mais ou menos.
Sofia Mariutti – Armando, lembro de você dizer numa entrevista que escrevia os poemas primeiro no caderno, depois passava para a máquina de escrever e só então para o computador. Como se refizesse o caminho da tecnologia a cada poema, pra não esquecer de nenhum passo da ourivesaria. Recentemente, durante a pandemia, você entrou no Instagram – como a tecnologia tem influenciado seu processo de escrita?
Sou novato nisso, sou ainda avesso à tecnologia. Gosto de escrever com a ponta do meu lápis cotoco, da minha bic qualquer, sempre tão amável e variável, da minha máquina de escrever Lettera 22, dos anos 1960, perfeita, e do computador banal. Tenho um poema chamado “Trifásico” que vai sair no meu livro Arremate, em novembro, se o coronavírus deixar. Quanto ao Instagram alguém é que abastece o dito cujo num instante.
Viviana Bosi – Armando, gosto do título Raro mar, pois me faz pensar tanto em possíveis anagramas quanto em sua poética, como se fosse uma súmula, um emblema. Observo que seus livros mais recentes são diferentes dos anteriores. Além de uma maior incidência de evocações da infância e da adolescência, há um baixo contínuo que vem crescendo: uma ruminação, um ensimesmamento, um tipo de interrogação reflexiva que já existia, talvez, mas agora tornou-se mais evidente. Gostaria que você falasse sobre como você percebe este período mais recente de sua obra poética. Houve uma mudança de ritmo? Ela veio aflorando desde Numeral, talvez? O que permanece, o que se alterou?
Você acertou em cheio: foi Numeral. Não sei dizer ao certo, mas desconfio que vem “aflorando” desde o número primeiro em 1999. Às vezes, creio que houve uma mudança de ritmo, sim. O “que permanece” não sei ainda determiná-lo ou sei que almejo o impossível: que o risco da minha vida seja infinito.
André Luiz Pinto – Lar, Dever e Rol tinham na memória, eu até diria, na experiência que constitui a memória, seu mais forte elemento, aquele que parecia guiar seus poemas. Contudo, se por um lado o olhar é dirigido ao passado, por outro a locomotiva da seção “Numeral” continuou nos três livros, como que a encarar o presente e a apostar no futuro. O título do novo livro é Arremate. Arremate exatamente do quê? Da trilogia que se encerra com esse quarto livro, numa espécie de D’Artagnan da própria trilogia? Além disso, como se dá esse concílio, se concílio houver, entre o arremate e aquela contagem que, desde Máquina de escrever, você decidiu fazer de forma progressiva?
Arremate pode ser algo que finda. Ou um bom chute de futebol. Está no Aurélio e no Houaiss. Arremate não tem nada a ver com a trilogia citada. Portanto, a presença de D’Artagnan como brincadeira não serve. Quanto a “Numeral”, continua. Tem a ver com o meu contar, que por sinal está indo embora, sempre. Além do Arremate.
Paulo Ferraz – Nas décadas de 1960 e 1970, o debate ideológico mobilizou poetas e artistas em geral a respostas que foram de uma reavaliação dos procedimentos de vanguarda à demolição de valores tradicionais pela contracultura, passando certamente pela militância política imediata, tendo alguns logrado confluir essas respostas em suas obras. Por sua vez, o cenário político atual, munido de um revanchismo em relação às conquistas da liberdade e da cultura, não só resgatou alguns fantasmas que rondavam as cabeças dos militares, como também elegeu novos adversários bem reais que são identificados por seu gênero, cor e classe social, numa espécie de orgulho da truculência. Nesse sentido, em relação à sua poesia, como foi estrear, aos 23 anos, num ambiente político tão adverso, embora com tantas ferramentas de enfrentamento? Quais caminhos você vislumbra para que a poesia consiga responder a uma violência que não se restringe apenas ao discurso? Para que essa resposta seja robusta, acaso seria necessário antes democratizar o próprio meio literário?
Desde que me entendo sou de esquerda. Sou petista ainda por cima desde que o Partido foi fundado em 1980 pelos trabalhadores do ABC, liderados por Lula, e com o apoio intelectual de três homens formidáveis: Mario Pedrosa, Sergio Buarque de Holanda e Antonio Candido. Sou fiel a essa trinca formada por pessoas que não morrem e ajudam sempre. E Lula muito aprendeu com eles. Estreei um ano antes do repugnante golpe militar de 1964. O que posso fazer, devido à idade, é quando possível escrever poemas participantes sem perder o valor do poema. Creio que o melhor que escrevi nesse sentido foi A flor da pele publicado em papel jornal em 1978, com fotos de Roberto Maia, e em 1979 no meu livro, À mão livre. Anos mais tarde, Mariana Quadros Pinheiro fez sua dissertação em 2009 na UFRJ: “Na fenda dos dias: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho”.
Paulo Ferraz – Armando, nessas quase seis décadas dedicadas à poesia você dialogou com alguns dos principais personagens da poesia brasileira, a começar pelo Manuel Bandeira, seu primeiro leitor entre os poetas, passando em seguida para o José Guilherme Merquior, em cuja companhia você entrou em contato com a poesia práxis, capitaneada pelo Mário Chamie, e que também atraiu nomes como Mauro Gama e Yone Giannetti Fonseca. Era um momento de reorientação dos procedimentos de vanguarda, que suponho tenha sido importante na formulação dos seus dois primeiros livros Palavra e Dual, ambos publicados na década de 1960. Na década seguinte você foi companheiro de viagem de uma geração que deu uma guinada na poesia brasileira e teve interlocutores próximos como Tite de Lemos, Ana Cristina Cesar, Heloisa Buarque de Hollanda e Maria Rita Kehl. Na sua percepção, como essas relações intelectuais e afetivas contribuíram na sua poesia? Qual a porção de coletividade você acredita que haja numa expressão que cremos ser individual? E por falar em coletividade, como foi sua experiência como gestor cultural com passagens pela Casa de Ruy Barbosa, Biblioteca Nacional e Funarte, órgãos que, infelizmente, vêm sendo alvos do menosprezo pela arte e pela pesquisa por parte do governo federal?
O livro Palavra acabou de ser escrito em 1962 e foi publicado em 1963, quando não conhecia Mario Chamie nem a Praxis. Dual, na sua primeira parte, ainda era ligado ao livro anterior. Na segunda parte, não. Já conhecia o Mario e a Praxis, a qual aderi. O José Guilherme Merquior, meu amigo, foi quem indicou a revista Praxis. Aliás o Zé é que, anos depois, prefaciou À mão livre, meu primeiro livro em editora em 1979, a Nova Fronteira, quando já tinha me afastado da Praxis. Ela já tinha se arrefecido para mim. Heloisa Buarque de Hollanda, Maria Rita Kehl, Tite de Lemos são meus amigos profundos. A Ana Cristina Cesar é outro caso mais profundo e complexo e sempre eu a tenho dentro de mim. Antes de morrer ela disse à mãe: se me acontecer alguma coisa todas as caixas de papelão devem ir para casa do Armando. Assim foi feito. Sou curador da obra dela, e tirei das caixas de papelão a papelada e montei livros, a seguir: Inéditos e dispersos: poesia / prosa, em 1985, Escritos da Inglaterra, em 1988, Escritos no Rio, em 1993, Correspondência incompleta com Heloisa Buarque de Hollanda, em 1999, Novas seletas, em 2004. No livro Poética fui curador editorial, em 2013. A conversa sobre poesia e vida com Ana Cristina foi até o último dia dela. Aliás, na revista piauí número 87, o texto que escrevi, “Confissões e inconfidências” mostra a meu ver a Ana Cristina, intimamente. Quem melhor contribuiu para minha poesia fui eu mesmo. Escrevo para mim e não para os outros. Mas há dois milagres que me seguram para todo sempre: Carlos Drummond e Antonio Candido. Nunca fui “gestor cultural’. Fui um funcionário comum que durou 35 anos e fiquei feliz da vida quando me aposentei. O governo federal de hoje, então, não vale nada. É tão ruim que Bolsonaro é quem vai destruir Bolsonaro.
Tarso de Melo – Armando, o que é escrever poesia em 2020?
O que der e vier.