Arcas de Babel: Marcos Siscar traduz Beckett
(Fotos: Divulgação)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Para esta sexta edição, o poeta e crítico Marcos Siscar traduz, apresenta e comenta poemas de Beckett escritos originalmente em francês e ainda inéditos em português.
Pesquisador e professor da Unicamp, Marcos Siscar publicou vários livros de poesia, alguns deles finalistas dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom e Oceanos, e recentemente lançou Isto não é um documentário (7Letras, 2020). Tem livros traduzidos na Argentina, na França e na Espanha e participou de antologias publicadas em vários países. Traduziu em português Tristan Corbière, Michel Deguy e Jacques Roubaud, entre outros. Publicou também diversos livros de ensaios, entre os quais De volta ao fim: o fim das vanguardas como questão da poesia contemporânea (7Letras, 2016), que recebeu o Prêmio Jabuti.
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Beckett não é prioritariamente, ou programaticamente, um poeta. Marjorie Perloff dizia, na década de 1980, que era possível observar um contraste muito nítido entre a exclusão de Beckett das disciplinas de poesia e a importância de sua “lírica de ficção” entre os poetas de língua inglesa. Considerada por alguns como laboratório de sua escrita, a produção em versos do autor foi desacreditada por ele próprio. Eu diria que a “poesia” ocupa o lugar daquilo que Beckett precisou superar para se realizar como escritor, o que o coloca numa espécie de linhagem de escritores-poetas-frustrados – situação comum, por exemplo, entre aqueles que se identificam com o “romance”, mas que ganha sentido peculiar neste caso.
O recalque da “poesia” (como se a palavra nomeasse o oposto da liberdade criativa) não atenuou o impacto relativo da obra de Beckett – muito pelo contrário –, mas impôs à sua relativamente curta produção em verso um curioso ostracismo. Por outro lado, a atenção que ele próprio destinou a esses textos não confirma necessariamente a situação. Do primeiro conjunto de poemas Whoroscope, de 1930 (no modelo eliotiano de The wast land, do longo poema seguido de notas, sob influência também de Joyce e Yeats) até o último texto escrito em vida (o poema “Comment dire”, de 1988), já no hospital, passando por coletâneas de poemas organizadas e reeditadas de tempos em tempos, configura‑se uma relação consistente e problemática com a “poesia”.
O projeto “Arcas de Babel”, de Patrícia Lavelle, me anima a tirar da gaveta alguns dos textos em verso de Beckett, especificamente os de língua francesa, a fim de ilustrar esse aspecto de sua produção. Lembremos que uma anedota atribuída ao autor (e confirmada indiretamente em seus textos) é que havia escolhido escrever em francês porque o francês seria uma língua “mais pobre” que o inglês. Essa pobreza, no caso, tem valor criativo e acaba por engendrar um estilo literário fragmentário, minimalista, inconfundível (tanto na prosa, quanto nos versos ou no teatro), configurando o que Deleuze chamaria de “gagueira” estilística, bem característica da escrita beckettiana do pós-guerra.
As traduções que aqui apresento são parte de um trabalho iniciado na primeira metade dos anos 1990 e interrompido precocemente. Escolho o início de uma das suas séries de poemas, chamada Mirlitonnades (escrita de 1976 a 1978). Creio que ela recupera uma das facetas conhecidas da escrita de Beckett, de aspecto meio “circense”, porém vinculada a temas graves e mesmo trágicos. A síntese e o jogo de palavra se associam aos constantes ecos sonoros (inclusive às rimas) para dar uma tonalidade ao mesmo tempo jocosa e absurda aos textos. – Marcos Siscar
na frente
a desgraça
até que a gente
ache graça
*
volver
ao lar
acender
apagar
só para ver
a noite ver
colada a face
na vidraça
*
no fim das contas
feitas as contas
parte de inúmeras
partes de hora
sem contar
os tempos mortos
*
nos quintos do nada
ao fim de alguma guerra
o olho pensou ter visto
levemente se mexendo
a cabeça o acalmou dizendo
é coisa de sua cabeça
*
silêncio tal que o que havia
antes nunca mais seria
por murmúrio dilacerado
de uma palavra sem passado
de repetir que se exauria
jurando que jamais se calaria
*
ouça-os
acumular
palavras
às palavras
sem uma palavra
passos
aos passos
um a
um
*
brilhos bordas
daquele veículo
um passo se apagam
meia-volta reluzem
pare é melhor
em casa depois
longe de si e deles
dos dois
*
imagine se isso
um dia isso
um belo dia
imagine
se um dia
um belo dia isso
cessasse
imagine
*
Mirlitonnades (1976-1978)
en face
le pire
jusqu’à ce
qu’il fasse rire
*
rentrer
à la nuit
au logis
allumer
éteindre voir
la nuit voir
collé à la vitre
le visage
*
somme toute
tout compte fait
un quart de milliasse
de quarts d’heure
sans compter
les temps morts
*
fin fond du néant
au bout de quelle guerre
l’œil crut entrevoir
remuer faiblement
la tête le calma disant
ce ne fut que dans ta tête
*
silence tel que ce qui fut
avant jamais ne sera plus
par le murmure déchiré
d’une parole sans passé
d’avoir trop dit n’en pouvant plus
jurant de ne se taire plus
*
écoute-les
s’ajouter
les mots
aux mots
sans mot
les pas
aux pas
un à
un
*
lueurs lisières
de la navette
plus qu’un pas s’éteignent
demi-tour remiroitent
halte plutôt
loin des deux
chez soi sans soi
ni eux
*
imagine si ceci
un jour ceci
un beau jour
imagine
si un jour
un beau jour ceci
cessait
imagine