A afronta como estratégia política do bolsonarismo

A afronta como estratégia política do bolsonarismo
(Arte Revista CULT)

 

São já 15 dias de insultos, declarações ofensivas, afirmações incompatíveis com o cargo e provocações infantis. Foram 15 dias consecutivas de “caneladas” de Bolsonaro, para usar a expressão que ele mesmo adota. Mas por que um presidente da República se comporta desta maneira? Por que não filtra o que diz, pensa um pouco mais, busca informação, pondera, minimiza? Por que não se cala, de vez em quando, ao invés de procurar todas as oportunidades de buscar confusão fazer declarações chocantes?  Indagado sobre isso por uma repórter da Folha de S.Paulo, a resposta veio direta e bruta, como sempre: “Sou assim mesmo. Não tem estratégia. (…) O dia [em] que não apanho da imprensa, eu até estranho”. Ou talvez seja justamente esta a estratégia: buscar apanhar da imprensa, ser contestado por aqueles que têm verdadeiro horror ao seu comportamento e à sua postura, desagradar os adversários, para, justamente por esse meio, fazer um agrado aos seguidores.

Ser desagradável tanto lhe é natural como estratégico. Tem um aspecto pessoal, claro. Bolsonaro é aquele sujeito feroz que se sente acossado, perseguido o tempo todo e que ao primeiro constrangimento, real ou imaginário, ataca com grosseria. Na outra semana mesmo, tendo sido indagado pela repórter do jornal Valor se o ataque aos nordestinos poderia atrapalha a reforma da Previdência, Bolsonaro já foi de faca na bota e pé no peito: “Pelo amor de Deus, né? Se eu te chamar de feia agora, acabou o mundo. Todas as mulheres vão estar contra mim”. Bolsonaro não saberia diferente disso, a não ser que, como alguém andou sugerindo, o amordaçassem. Bolsonaro é a grosseria com faixa presidencial.

Autoridades públicas cometem gafes, dizem coisas indevidas, põem os pés pelas mãos em declarações. Todo mundo tem um dia ruim. É assim em qualquer parte do mundo. Mas depois vêm a público se explicar, pedem desculpas, reconhecem que esse não é um modelo de comportamento que gostariam que fosse reproduzido pela sociedade. Eventualmente, até pagam pelo erro com afastamentos, perda de mandatos ou cargos e derrotas eleitorais. Mas com Bolsonaro é diferente. A grosseria extrema, a incivilidade e a expressão de ideias torpes e inaceitáveis não é vista como falha moral, defeito de temperamento a ser corrigido, deslizes a serem reparados. Não. Bolsonaro tem orgulho de ser grosso, adota a grosseria como a atitude que o define, e, o que é provavelmente pior, foi escolhido por grande parte dos seus eleitores por ser exatamente assim: afrontoso e malcriado. Afinal de contas, foi na prateleira dos toscos e mal-educados, dos que não têm o menor pudor de gritar ideias que deixariam qualquer pessoa lúcida e consciente morta de vergonha, que Bolsonaro foi achado pelos consumidores eleitorais em 2018 e empossado presidente. E foi assim durante toda a sua longa vida política, não tem novidade.

Fui contar. Foram no mínimo 11 chutes na canela em 15 dias. Poderia dizer que o nosso brucutu presidencial está em surto. Não vou lhe negar que foi talhado para o papel de grosso, mas tampouco é possível negar que há uma seleção clara de alvos com objetivos muito precisos. O ego frágil de Bolsonaro precisa de adesão entusiasmada e lisonjas e não suporta quem o contradiga, quem faz perguntas ou declarações de que ele não gosta. Quem discorda ou despreza suas ideias e atitudes, ou quem parece estar aliado com os seus “inimigos” (sim, na paranoia do presidente, é sempre caso de inimizade e não de divergência) precisa ser agredido. 

Dois dos alvos do período eram jornalistas, Miriam Leitão e Glenn Greenwald, culpados de desagradar Sua Excelência. Mentiu afrontosamente sobre a jornalista da Globo usando fake news geradas por seus próprios correligionários, e no caso do jornalista do Intercept chegou à ameaça pura e simples, como um arruaceiro de boteco. 

Outros alvos estão relacionados aos pés de barro do seu governo. E aí podem ser pessoas, dados científicos ou até mesmo informações, nada pode contrariar Bolsonaro e a sua autoimagem. Falar que se passa fome no Brasil? Pode não. Aqui não tem fome, disse Bolsonaro, apesar das tantas mortes diárias documentadas por desnutrição. Os dados dizem que há desmatamento no Brasil? Pode não. “Nosso sentimento é que isso não coincide com a verdade, e parece até que [o presidente do Inpe] está a serviço de alguma ONG”. Ah, sim, malditas ONGs, que existem só para atazanar o presidente. 

Aliás, dentro da loucura de Bolsonaro, ONG é uma palavra que não pode ser pronunciada. No dia em que marcou um barbeiro para fazer uma live contra o presidente da OAB (vejam só), descobriu-se que havia cancelado, em cima da hora, um encontro com nada menos que o chanceler francês. Indagado sobre as razões de atitude tão descortês, respondeu irritado que chanceler havia marcado compromissos com ONGs no Brasil. E acrescentou, já furibundo: “O que que ele veio tratar com ONG aqui? Quando fala em ONG, já nasce um alerta na cabeça de quem tem o mínimo de juízo.”. O remate dá um retrato da mente bolsonariana: “Quem é que ferra o Brasil? ONGs.” Pronto. No mundo simplório de Bolsonaro, os vilões estão todos marcados. Quem gosta de ONG, que vá pra França. 

Com o presidente da OAB, tratou-se do mesmo problema em enfrentar divergências. Tudo começa com Bolsonaro acreditando nas mentiras que os bolsonaristas inventam e põem para circular. E, na primeira oportunidade, ataca; não a instituição, mas a pessoa. Com Bolsonaro é assim: não tem instituição, não tem freios, é à vista de todos e é pessoal. Vai atacar onde quer que doa e, se não puder xingar a mãe, ataca o pai, tanto faz.   

Divergências são normais na democracia, mas com Bolsonaro é inimizade mesmo. Do governador do Maranhão, declarou “tem que ter nada com esse cara”. Assim como tem que ter nada com ambientalistas, outro dos inimigos imaginários do presidente a serem afrontados sempre que possível. Afinal, quem gosta de meio ambiente no Brasil é “vegano que só come vegetais”, declarou para um público militar. Quem ferra o Brasil? Ambientalista. E já avisou que como mudou o presidente do país, mudou também a questão ambiental. Ponto. Quem não gostou que vá, sei lá, para a Noruega ou para a Alemanha. E eu que pensei que o ambientalismo no século 21 fosse uma questão de inteligência e decência, e não de ideologia. 

Não duvidem, porém, há um teor estratégico em tudo isso. É uma aposta arriscada, mas que até agora têm se comprovado vencedora. Bolsonaro não quer governar com a maioria. Quem quer governar com e para a maioria dos concidadãos concilia, chega a termos, cede, negocia, diminui as arestas e os pontos de tensão entre as partes. E, sobretudo, disfarça o interesse particular em interesse geral. Mas Bolsonaro, seus filhos e os seus ministros não querem isso. Buscam a tensão, a provocação desnecessária, o conflito explícito. É tudo gente de faca na bota e pé no peito. Obviamente resolveram governar para a minoria, a sua minoria, aquela parte da sociedade que escolheu o bolsonarismo não por estratégia, mas por identificação. Jair Bolsonaro não é certamente o pior dos bolsonaristas nem o bolsonarismo se resume a ele. Foi o bolsonarismo dos brasileiros que foi buscar Bolsonaro, não foi Bolsonaro quem criou uma seita. Reconhecer isso é muito importante para a compreensão do estado de coisas em que nos encontramos. 

Maquiavel ensinou que para um governante é melhor quando ele apenas parece ser alguma coisa, não sendo exatamente assim. Acreditava o mestre que quem só parece ser, mas não é, pode mudar quando lhe for conveniente, o que não é facultado a quem é exatamente o que parece. Pois no caso de Bolsonaro, data venia, ele é exatamente o que parece ser e os seus seguidores adoram justamente isso: o grosso, o sincerão, o autêntico, o afrontoso. Desde que ele não precise mudar, por necessidade de negociar com outra parte da sociedade ou quando a minoria que ele prefere não for mais suficiente eleitoralmente para o eleger, poderá continuar fazendo o que sempre fez. E a aposta é exatamente esta: enquanto não se formar uma maioria que despreze ou rejeite o que Bolsonaro faz ou representa, a sua minoria bastará para garantir-lhe suficiente apoio popular e base eleitoral. A fragmentação da sociedade em várias minorias, todas elas colidindo entre si, faz com que a sua minoria – mais coesa, cada vez mais identificada ao líder e mais comprometida com o seu estilo e ideias – possa ser suficiente para governar. 

Bolsonaro não quer conciliar a Nação nem buscar unanimidade ou maioria. Para a estratégia de Bolsonaro não interessa buscar solidariedade nem empatia fora da tribo. Ao contrário, interessa-lhe a polarização, o conflito, o vínculo identitário com os seus, a fúria dos seus adversários e instigar no conjunto da sociedade o medo de uma outra minoria, o petismo. O que lhe é mais do que bastante para manter a desagregação do resto enquanto ele une os seus contra todo mundo. O que ele quer é coesão interna das suas tropas e não construir pontes com “os outros”. 

Preparem-se então, para mais chutes na canela e mais brutalidade presidencial. 

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

 


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