A minoria que nos governa
Jair Bolsonaro durante o Lançamento do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil)
A popularidade de Bolsonaro anda mal, sim, muito mal. Mas por que então ele não está sendo tratado como cachorro morto pelo jornalismo e pela opinião pública, nem há uma debandada geral da sua base parlamentar? Afinal, os jornais repetem corretamente que é o governo em primeiro mandato com menor taxa de apoio, pelo menos desde que essas sondagens são feitas. Além disso, é claro que quando você compara os números de Bolsonaro com os do primeiro mandato de FHC, dos dois mandatos de Lula e do primeiro de Dilma, a impressão que se impõe é que o governo atual sequer teve a tradicional lua de mel com a opinião pública nacional e já nasceu impopular.
Mas, cuidado, que você pode não estar olhando direito os dados. Não compare Bolsonaro em agosto de 2015 com dados de governos de 1999, 2003, 2007 ou 2011. A memória ativa das pessoas não chega tão longe. Memória de eleitor é como memória de peixinho: é de curto alcance e é sobretudo lembrança de traumas e alegrias pessoais vividas em primeira pessoa. Neste tipo de memória, o alcance chega, no máximo, a 2015.
De que as pessoas se lembram espontaneamente, então, é do segundo mandato de Dilma e do governo Temer. Pois bem, oito meses depois da posse para o segundo mandato, o governo da presidente Dilma tinha 8% de avaliações em ótimo ou bom e 71% de ruim ou péssimo. 71%! Temer tinha 10% de ótimo e bom e 51% de ruim ou péssimo. Pois Bolsonaro tem 29% de ótimo ou bom, o que é três vezes mais que Temer e três vezes e meia mais que Dilma. E tem 38% de ruim ou péssimo, que é quase a metade da reprovação do segundo governo de Dilma no seu oitavo mês. Assim, Bolsonaro vai mal e pode piorar, mas comparativamente ao caos recente, ainda registrado na memória espontânea, não aparece como um presidente moribundo e até tem uma quota resiliente e vistosa de admiradores. É por isso que a este ponto Dilma já agonizava e era atacada por hienas saídas de tudo quanto é buraco, e Temer sangrava nos telejornais da noite, enquanto Bolsonaro dá para o gasto, apesar de tanta besteira que faz e de tanta porrada que recebe.
Os cerca de 30% de pessoas que continuam com Bolsonaro, achando-o ótimo ou bom, não são em número suficiente para elegê-lo novamente. É claro que não. Mas os que gostam dele já não representavam número suficiente nem mesmo durante as eleições de 2018, e ainda assim Bolsonaro conseguiu completar o que lhe faltava para ganhar a presidência usando os antipetistas e antipolíticos, que superabundavam então e ainda há de sobra por aí.
Notem que os dados das sondagens dizem claramente, primeiro, qual é o tamanho do Bolsonarismo (30%), e, segundo, que o bolsonarismo como base de apoio popular de Bolsonaro não mudou desde a posse. Eram 32% aos três meses de governo e agora, oito meses depois, são 30%, segundo o Datafolha. A proporção dos que rejeitam o governo evoluiu também muito pouco desde a posse. Quem parece estar se distanciando de Bolsonaro, pouco a pouco, é o bolsonarismo light, o antipetista que se converteu em eleitor e torcedor de Bolsonaro em 2014 e início de 2015 porque evitar a volta do PT à presidência era a sua prioridade política e existencial.
Há muita água ainda por rolar, mas enquanto houver petismo e antipetismo, e estes forem os principais motores da política nacional, um apoio popular em torno de 30% será suficiente para garantir a Bolsonaro não apenas sobrevivência política, mas também, quiçá, uma reeleição. O cálculo é simples e cristalino e se resume em uma sentença: o que faltar ao bolsonarismo, o antipetismo completa.
Funcionou exatamente assim em 2018, quando faltou ao PT e a Lula a percepção de que naquela eleição eles não eram simplesmente atores de uma disputa eleitoral, mas sim o que uma grande parte dos eleitores considerava o principal problema do país. Não, os problemas fundamentais do país, para grande parte dos eleitores, não podiam ser resolvidos pelo PT simplesmente porque o próprio PT e o próprio Lula haviam sido eleitos o principal problema nacional. Formou-se, então, um curioso e perverso circuito em que quanto mais força Lula e o PT demonstrassem, mas alimentavam a reação do antipetismo e o sentido de urgência de votar no candidato com maior probabilidade de salvar o Brasil do Partido dos Trabalhadores e da influência de Lula.
2019 está sendo apenas o ano em que o eleitor convertido a Bolsonaro no ano passado começa a enxergar o que havia por baixo da armadura do campeão do antipetismo, e crescentemente desgosta dele. Mas o bolsonarismo não, este continua onde sempre esteve e confia que, quando for necessário, o antipetismo continuará a ser o conveniente hospedeiro de que ele precisa para que se torne uma maioria eleitoral, embora, na verdade, seja uma minoria demográfica de não mais que 30% da população em idade de votar. Bolsonaro tem, de fato, um governo de minoria. Uma minoria de 1/3 que precisa assombrar um segundo terço da população com a ideia de que o monstruoso terceiro terço precisa ser mantido longe do poder. Enquanto o truque ilusionista durar, nós, os 70%, a maioria, seremos governados pelos 30% que souberam nos dividir e nos fazer odiar uns aos outros.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)