A colonialidade e Porto Rico

A colonialidade e Porto Rico
Obra da série Geometria Brasileira, da artista Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)

 

Tendo alcançado notoriedade por suas contribuições aos debates sobre dependência, classes sociais, Estado e política na América Latina, em 1982 o Centro de Investigaciones Sociales da Universidad de Puerto Rico (CIS-UPR) convidou Aníbal Quijano para ser pesquisador visitante. Desde então, a história cultural e social-intelectual deste país, que ele visitou muitas vezes depois, esteve presente em suas vivências, reflexões e horizontes, a ponto de Quijano dizer, aberta e repetidamente, que, de suas identidades, “a de boricua (porto-riquenho) é uma das mais entranhadas” (1999).

Gostaria de compartilhar com o leitor as relações de Quijano e Porto Rico no importante desenvolvimento de suas análises sobre a colonialidade e suas sempre renovadas contribuições. Utilizarei amplamente seu ensaio “Fiesta y poder en el Caribe” (1999), no qual se evidencia que muitos processos caribenhos têm referências mais próximas do Brasil do que do mundo andino. O artigo, relativamente pouco conhecido, foi publicado em San Juan, tendo sido reproduzido como prólogo de meu livro Cuerpo y cultura: Las músicas “mulatas” y la subversión del baile (2009).

Antes, um detalhe revelador: o primeiro escrito de Quijano nas ciências sociais, de 1962, é um artigo-obituário sobre C. Wright Mills, o que é significativo por muitas razões, e gostaria de mencionar uma delas. Um dos primeiros livros de Wright Mills foi sobre Porto Rico, mais especificamente sobre nosso nomadismo; The Puerto Rican Journey (1950) constitui um primeiro vínculo entre nosso país e Quijano. Seu contexto andino – de velhas civilizações arraigadas territorialmente – não havia imprimido em seu consciente e subconsciente esse rasgo cultural que os caribenhos levam à flor da pele. Nosso mundo popular se conformou por meio de movimentos massivos de população, como foram o tão dramático tráfico de escravos, as revoltas cimarronas (quilombolas) e as migrações entre regiões do Caribe e, depois, para as metrópoles nos séculos 20 e 21. Tendo experimentado e compartilhado a vida diária em Porto Rico ao menos em três ocasiões entre os anos 1970 e 1990, e cinquenta anos após The Puerto Rican Journey, Quijano escreverá no ensaio antes mencionado: “A migração boricua aos Estados Unidos, como a de todos os caribenhos, de algum modo antecedeu a subversão cultural mundial que vai produzindo hoje as migrações a partir do mundo da colonialidade para os centros do poder mundial”.

Antes de suas longas estadias, Quijano conheceu Porto Rico no início dos anos 1970, como parte de programas que pretendiam mostrar aos latino-americanos a exemplaridade da modernização porto-riquenha à moda de Weber: centrada no reformismo modernizador de uma depurada burocracia racional (que denominam administração pública); o programa de “industrialização por convite” (em que o capital estrangeiro não era conceitualizado como “extrator” – ou explorador –, mas como aliado, provedor de empregos e conhecimentos manufatureiros); serviços sociais tipo welfare state; eleições livres; e amizade e harmonia com a “democracia” liberal estadunidense. Ele nunca havia me contado isso – até uma nota de pêsames pela morte de meu pai, em 1992. Ali, me confessava ter tido suas primeiras lições no que Arcadio Díaz-Quiñones chamaria de “el arte de bregar” (a arte de lidar). Reavaliou políticas de aprendizado de como relacionar-se com o Império, então muito desacreditadas pela esquerda; admirou, contava-me, meu pai (então na direção do Ministério de Educação) por essas titânicas mas muito sossegadas tentativas de elaborar criativamente políticas educativas próprias, que fortalecessem a democratização e as identidades nas brechas da política colonial, diante nada menos da mais poderosa nação imperial. Começava a perceber, em Porto Rico, como era ser latino-americano (com hífen).

Porto Rico tinha conseguido então desenvolver uma universidade moderna de qualidade. Enriquecida nas humanidades com o exílio da derrotada República espanhola de Juan Ramón Jiménez, Américo Castro, Pau Casals… e nas ciências sociais, nos anos 1940 e 1950, por latino-americanos e latino-americanistas como José Medina Echavarría, Jorge Ahumada, Jorge Millas, os venezuelanos Luis Lander e José Agustín Silva Michelena, entre tantos outros.

O populismo modernizador de Luis Muñoz Marín – que, junto com José Figueres Ferrer na Costa Rica e Rómulo Betancourt na Venezuela, formavam então o que denominaram “o triângulo democrático” no Caribe – representou uma espécie de último bastião do Novo Trato (New Deal) do presidente Roosevelt. Como tal, atraiu cientistas sociais de um novotratismo de esquerda desde meados dos anos 1940, ávidos por estudar e colaborar com a transformação social modernizadora democrática, sem a qual consideravam inevitável uma “catástrofe revolucionária do derramamento de sangue”. Assim, muitas das primeiras pesquisas de antropólogos e historiadores do “Primeiro Mundo” que seriam mais adiante muito importantes no desenvolvimento das ciências sociais latino-americanas foram levadas a cabo na UPR: Sidney Mintz, Eric Wolf, Gordon Lewis e o andinista John Murra, por exemplo. E, já com importantes contribuições no Brasil, Richard Morse. O paradigma analítico ao redor da economia de plantação começou a ter seu auge no Caribe, com paralelos evidentes ao dependentismo: uma estrutura de produção – a plantação – era colocada no cerne da análise social, e essa estrutura produtiva estava intrinsecamente vinculada à história econômica da expansão colonial europeia, e depois da expansão dos Estados Unidos. Na escravidão racial norte-americana e em suas posteriores sequelas, a engrenagem da produção correspondia à sua inserção no mercado capitalista mundial, o que gerava contínua dependência na economia e subordinação política. Mas essa literatura, produzida no Caribe mais por antropólogos do que por economistas, colocava a cultura no centro de suas indagações.

Os estudos sobre a Dependência concentraram seus significados e implicações entre a economia e a política. As pesquisas de Quijano sobre o fenômeno cholo – relativo ao carácter subversivo da reidentificação étnica dos imigrantes indígenas andinos em Lima –, preocupação inclusive prévia aos escritos dependentistas, incorporavam, como os estudos caribenhos da plantação, o olhar a partir – e a importância analítica – da etnicidade e da cultura. E aqui está um segundo vínculo fundamental entre Quijano e Porto Rico. Suas pesquisas sobre o cholo, um tanto ignoradas nos debates econômicos-políticos do dependentismo, encontraram ressonância na mulataria boricua, o que dialeticamente reforçou nos trabalhos de Quijano a consciência de sua pertinência.

Pouco se observou sobre o fato de que vários criadores iniciais dos estudos da Dependência começaram suas pesquisas com trabalhos sobre a escravidão. No Brasil, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Lúcio Kowarick… e na América Latina, também Quijano. Mas enquanto para a maioria isso foi o pano de fundo inicial das preocupações histórico-estruturais de uma desigualdade dependente, no trabalho de Quijano as vivências dessas pesquisas de arquivo (fortalecidas pela experiência porto-riquenha) seguiram no cerne de suas teorizações, e a historicidade do constructo “raça” foi a pedra angular de suas interpretações do padrão de poder, das lutas sociais e da possível emancipação do eurocentrismo. Como expressa em seu trabalho mais citado dos últimos anos, publicado no fértil livro editado por Edgardo Lander, A colonialidade do saber:

“Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, consequentemente, um elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico.”

Agora, qual foi o papel de sua experiência em Porto Rico no dito desenvolvimento conceitual? Somente haviam transcorrido duas semanas do estabelecimento de Quijano em Porto Rico em 1982 quando faleceu o grande timbaleiro Rafael Cortijo, figura fundamental na subversão musical de afrodescendentes em toda América Latina. Lembro de ter levado Aníbal ao enterro. Cito suas palavras: 

“A formidável experiência pessoal que foi para mim me fundir na multidão de milhares de ‘negro/as’ (entre aspas, para que não se perca a colonialidade do termo) que marchavam e cantavam no enterro de Rafael Cortijo. Pela primeira vez podia sentir diretamente o que tinha sido apenas uma suspeita prolongada durante quase três décadas, desde quando, nos arquivos peruanos, perguntava aos documentos coloniais como faziam os escravos ‘negros’ para continuar vivendo, torturados, humilhados e ofendidos, sem trégua e sem medida.

No cortejo funerário do grande músico boricua, comecei a entender que o mais poderoso descobrimento dos ‘negros’ na América era o ritmo contra o sofrimento, a porta para a outra margem.” 

Conversamos muitas vezes sobre como os afrossaberes do ritmo corporal quebravam a dualidade subjacente ao padrão racista de poder. Como o corpo na dança era sujeito fazedor de cultura, e como a dança sincopada era uma maneira de expressar esteticamente no espaço a multiplicidade de tempos na rítmica sonora. Continuando com seu ensaio clássico de 2000: 

“Sem essa ‘objetivização’ do ‘corpo’ como ‘natureza’, de sua expulsão do âmbito do ‘espírito’ (…) seria dificilmente explicável (…) a duradoura hegemonia mundial do eurocentrismo. Somente as necessidades do capital como tal não esgotam, não poderiam esgotar, a explicação do caráter e da trajetória dessa perspectiva de conhecimento.”

A “objetivação” do “corpo” como “natureza” abre todo um âmbito fundamental de análise da colonialidade nas relações de gênero. A expressividade corporal será entendida apenas como uma chamada da natureza ‘selvagem’ à concupiscência, no lugar de rítmicos afrossaberes comunicativos e da arte da sedução. Pondo em diálogo o dito “clássico” com o escrito porto-riquenho do ano anterior:

“Como todos os quilombolas deste mundo, sabia eu (…) que há uma relação entre música e sociedade/cultura. Mas, até então, meu saber não havia deixado de ser intelectual e não tinha me permitido entrar inteiro, corporalmente, no escondido espaço no qual o poder e as pessoas jogam a sua vida a cada dia. Porque o ritmo era exatamente isso: um espaço-tempo de confrontação entre o poder e a corporeidade (…) Desde então, no curso de minhas muitas estâncias boricuas, enquanto me familiarizava com os sons de todos os caribenhos da América, foi se cristalizando em mim a ideia de corporeidade, liberada, por fim, da velha prisão eurocentrista da dualidade corpo-alma, matéria-espírito, razão-emoção. Saindo dessa prisão de longa duração, a corporeidade emergia radiante como sede e modo de ser humano neste mundo e despia sua relação com o poder.”

Aníbal continua:

“Caribe (…) é o nome de uma geografia do som e da dança, e das formas de vida que ajuda a criar, comum à costa sudeste de Estados Unidos, às Antilhas, à costa colombiana e venezuelana, ao Nordeste brasileiro, a toda a costa do Equador e às costas norte e sul do Peru. Hoje, seu ritmo começou a se expandir pelo mundo, subvertendo os mais guardados labirintos das sociedades repressivas. O ritmo ‘negro’ que nasceu na resistência contra o sofrimento na América é o som da subversão do poder em todo o mundo.”

E, retomando suas experiências da Puerto Rican Journey:

“Na migração humana deste tempo, são as relações sociais diárias que estão em crise, as que produzem processos de reetnificação, de reidentificação inacabada, quilombola, toda uma subversão cultural. Ser ‘latino-americano’ (lembrem, com hífen) no atual coração maior do eurocentro, é uma subversão idêntica a ser ‘afro-americano’ ou ‘nativo-americano’. Porque as lutas de liberação da sociedade têm agora outro ponto de partida, partem do cenário maior da confrontação: a luta contra a colonialidade do poder, contra a classificação ‘racista/etnicista’ das gentes do mundo, eixo central do padrão de poder mundial do capitalismo colonial/moderno.”

Quis contribuir para este dossiê sobre Aníbal Quijano com algumas chaves para adentrarmos na dimensão porto-riquenha das análises e utopias de um dos mais importantes sociólogos de nosso tempo.

ÁNGEL G. QUINTERO-RIVERA é doutor em Economia e Ciências Políticas pela London School of Economics e professor da Universidad de Puerto Rico 


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