Wittgenstein e a ética

Wittgenstein e a ética

Transitando entre o pensamento lógico-científico de Frege e Russell, a crítica da linguagem de Mauthner e o misticismo de Tolstoi, o autor do Tractatus logico-philosophicus empreendeu o desafio de conciliar a análise lógica com um projeto ético, estabelecendo as fronteiras daquilo que é dizível filosoficamente para tornar possível a contemplação beatífica do eterno presente 

Paulo Roberto Margutti Pinto 

Ludwig Wittgenstein, um dos maiores pensadores do século XX, era um filósofo que queria ser santo através da penitência. Daí a necessidade de esclarecer a sua maneira de entender e viver a ética, que desempenha um papel importantíssimo em toda a sua evolução intelectual, desde o Tractatus até as Investigações. Consideraremos aqui sobretudo o papel da ética na primeira filosofia de Wittgenstein, fazendo porém uma ligação com o espírito de sua segunda filosofia.

O Tractatus surgiu no interior de uma atmosfera intelectual peculiar, que influenciou profundamente o jovem Wittgenstein. Os autores cujas idéias constituem tal atmosfera podem ser reunidos em três grupos, dos quais o primeiro é formado por James, Tolstoi, Schopenhauer e Weininger. Eles caracterizam a tendência ético-metafísica, na qual se enfatiza o misticismo como a experiência que dá sentido à vida. Tal experiência consiste na contemplação beatífica de uma realidade superior, que só pode ser obtida a partir de uma revolução ética interior. Dentre estes autores, destaca-se Weininger, para quem esta revolução surge como um imperativo categórico que, não obedecido, exige o suicídio como forma de auto-punição. Percebendo-se incapaz de obedecer a este imperativo, Weininger se suicidou tragicamente.

O segundo grupo é formado por Hertz, Boltzmann, Frege e Russell, que caracterizam a tendência lógico-científica. Todos acreditam que a maior parte dos problemas científicos e filosóficos só poderão ser resolvidos através da análise lógica da linguagem. Em alguns casos, a mera troca de um formalismo por outro mais adequado pode levar ao desaparecimento de dificuldades aparentemente insuperáveis. Em virtude disso, estes autores partilham a crença de que a linguagem lógico-científica é capaz de descrever o mundo de maneira adequada.

O terceiro grupo é formado apenas por Mauthner, e se caracteriza pela perspectiva radical da crítica da linguagem. Para ele, a linguagem é congenitamente incapaz de descrever a realidade e isto exige que nos refugiemos no silêncio místico. Este último é indescritível e a ciência da natureza, impossível. Mauthner defende um ceticismo extremo, segundo o qual devemos parar de fazer perguntas e buscar respostas. Para ele, a crítica da linguagem é uma escada que, ao ser percorrida, nos leva à única solução possível: o suicídio da linguagem e a redenção no silêncio total.

Muitas das convicções filosóficas do jovem Wittgenstein, expressas nos seus escritos da época, têm sua origem nas idéias dos autores acima. Há fortes indicações de que ele acreditava no cristianismo tolstoiano, para o qual encontramos o verdadeiro sentido da vida na contemplação beatífica do eterno presente, através duma vitória do espírito sobre a carne. Este cristianismo era entendido numa perspectiva schopenhaueriana, em que o espírito corresponde ao sujeito transcendental, que se encontra num domínio fora do espaço e do tempo, e a carne corresponde ao sujeito individual ou empírico, que constitui um dos inúmeros fenômenos mundanos. O sujeito transcendental e o mundo fenomênico são manifestações complementares do princípio último de toda a realidade: a vontade. As relações entre ambos podem ser compreendidas através da conhecida analogia com a relação entre o olho e o campo visual: um não existe sem o outro, mas o olho não está dentro do campo visual. Esta perspectiva metafísica era complementada por uma rígida moral de tipo weiningeriano, que envolvia o dever interior de renunciar a si próprio para encontrar o sentido da vida. Embora Wittgenstein acreditasse nestas idéias, faltava-lhe experimentar a vivência tolstoiana do eterno presente para tornar-se um homem em sentido completo. Esta carência o deixava existencialmente angustiado, já que suas rígidas convicções morais exigiam implacavelmente que ele descobrisse o sentido da vida ou se matasse. Isto explica sua obsessão com o suicídio nesta época.

Wittgenstein também acreditava na possibilidade da descrição científica do mundo através das técnicas de análise lógica baseadas nos trabalhos de Frege e Russell. Isto estava porém em conflito com algumas das idéias céticas de Mauthner. Se, por um lado, este autor parecia ter razão em sua descrença na possibilidade de descrever adequadamente a vivência mística, por outro, ele devia estar errado em algum ponto, já que a descrição científica do mundo através de modelos logicamente articulados constituía uma alternativa concreta. Supondo que os autores ligados à tendência lógico-científica estivessem certos, poder-se-ia concluir que a linguagem pode dizer algo. Assim, era preciso estabelecer, de maneira criteriosa e do interior da própria linguagem, o que pode e o que não pode ser dito. Wittgenstein sentia a necessidade duma nova delimitação, que deveria ser feita através de uma crítica da linguagem ainda mais radical que a mauthneriana. Na verdade, seu desafio era maior, pois ele tinha de conciliar a análise lógica com o projeto ético.

Para solucionar o seu intenso drama existencial, Wittgenstein parece ter utilizado não apenas uma, mas duas escadas em sentido mauthneriano. Uma delas é a escada lógica, explícita no Tractatus, que, através da empreitada suicida da crítica da linguagem, tenta estabelecer as condições transcendentais de possibilidade do que pode ser dito. A outra é a escada ética, não explícita no Tractatus, que busca criar as condições favoráveis à contemplação beatífica do eterno presente. Num surpreendente paralelismo com a postura suicida da crítica da linguagem, Wittgenstein recorreu ao expediente também suicida de alistar-se como voluntário no exército austríaco, colocando a própria vida em perigo para, assim, aplainar o caminho em direção à experiência mística. O resultado final da combinação destas duas escadas foi a almejada conciliação das pesquisas lógicas com as convicções éticas, através de uma experiência peculiar de iniciação.

A escada lógica revelou que a linguagem só é adequada para descrever fatos ou para lidar com expressões cujo conteúdo surja dos fatos. Isto exige um paralelismo estrito entre a estrutura da linguagem e a do mundo, que possuem a mesma essência, representada pela ordem lógica das coisas. Todavia, as afirmações sobre a essência envolvem condições tão gerais que ultrapassam o domínio dos fatos e não podem ser adequadamente descritas pela linguagem.

A escada ética possibilitou a experiência mística. O sofrimento e os horrores da guerra foram intensamente vividos pelo jovem Wittgenstein, que colocou sua vida em risco diversas vezes, tendo recebido inclusive quatro medalhas por bravura. A proximidade com a morte levou-o a descobrir o sentido da vida, através da contemplação inefável do eterno presente do cristianismo tolstoiano. É por isto que Wittgenstein declara, no aforismo 6.522, que o místico existe e é inexprimível.

Agora podemos compreender a articulação das duas escadas numa experiência de iniciação. O mundo e a linguagem possuem uma essência, que pode ser contemplada misticamente pelo sujeito transcendental, mas não pode ser colocada em palavras. A intuição filosófica descrita pelo Tractatus é perfeitamente correta, mas não pode ser dita. Isto pode ser explicado através da distinção wittgensteiniana entre dizer e mostrar. O dizer é um fato mundano, submetido às leis fenomênicas, ao passo que o mostrar pertence ao sujeito transcendental e ultrapassa estas mesmas leis. O procedimento pouco ortodoxo – mas inevitável – da crítica tractatiana da linguagem envolve o tentar dizer o que apenas se mostra. Esta tentativa está fadada ao fracasso, mas se revela indispensável para a clarificação conceitual: é preciso tentar dizer o que não pode ser dito, é preciso chocar-se contra as fronteiras do dizível para poder perceber os seus limites efetivos. As proposições do Tractatus, quando assim entendidas, não passam de contra-sensos que, ao serem enunciados, revelam a sua própria insuficiência expressiva. Mas o fracasso de cada aforismo vai aos poucos gerando a almejada clarificação conceitual, como se estivéssemos subindo uma escada. Nesta, cada degrau é abandonado depois de percorrido, porque envolve uma derrota parcial duma dada forma de dizer e uma vitória parcial duma forma de mostrar. Ao término do processo, a escada toda é abandonada como um grande contra-senso, porque reconhecemos finalmente a incapacidade da linguagem como um todo para exprimir o inexprimível. Em contrapartida, conseguimos subir por intermédio dela em direção a uma posição para além dela, que nos permite ver o mundo corretamente em silêncio. Assim, embora girando em falso através da enunciação de contra-sensos que conduzem à “morte” do dizer, o Tractatus consegue aos poucos o formidável efeito de propiciar um “renascimento” através do mostrar: a clarificação última surge quando o sujeito empírico e seu discurso são anulados, para que o sujeito transcendental possa contemplar silenciosamente aquilo que apenas se mostra e não pode ser dito. A “morte” e o “renascimento” envolvidos tornam claro que se trata de uma complexa experiência de iniciação, em que lógica e ética se complementam. A primeira mostra que é irracional tentar descrever o que apenas se mostra e a segunda mostra que ceder à tentação de descrever é imoral. Este é o sentido ético-lógico do último aforismo tractatiano: sobre o que não se pode falar, deve-se calar.

O texto do Tractatus descreve a experiência wittgensteiniana predominantemente do ponto de vista da crítica da linguagem, da escada lógica que questiona os fundamentos do dizer. Esta, porém, revela-se insuficiente para resolver o problema de descobrir o sentido da vida. Este último exige a adoção de uma postura ética condizente com o questionamento radical da crítica da linguagem. E Wittgenstein assume esta postura alistando-se como voluntário no exército austríaco. Ao colocar a própria vida em risco, ele mostra que não basta trabalhar apenas a questão da linguagem, tão bem expressa no texto tractatiano. É preciso fazer igualmente uma crítica radical do sentido da própria vida. A lição fundamental da crítica da linguagem deve ser complementada pelo correspondente exemplo de vida. Esta constitui a razão pela qual, ao descrever a mensagem do Tractatus ao editor von Ficker, Wittgenstein diz que ele possui duas partes: a que corresponde ao texto escrito e a realmente importante, que não foi escrita.

Depois de escrever o Tractatus, Wittgenstein acreditou que tinha resolvido todos os problemas da filosofia e afastou-se do meio acadêmico por muitos anos. Só retornou quando começou a perceber as deficiências da crítica tractatiana da linguagem. Para resolvê-las, ele foi levado a conceber uma nova filosofia, que se encontra expressa nas Investigações. Nesta obra, ele rejeitou a perspectiva tractatiana e mudou completamente o enfoque da pesquisa. Ao invés de buscar pelas condições transcendentais de possibilidade da linguagem, como foi feito no Tractatus, ele procurou apenas descrever as condições contingentes de uso das expressões lingüísticas numa dada forma de vida. O resultado foi a constatação de que as proposições metafísicas são contra-sensos decorrentes da má compreensão do funcionamento da linguagem.

Apesar das diferenças entre as duas filosofias, o espírito que as anima ainda parece ser o mesmo. Nos dois casos, Wittgenstein se propõe a fazer uma crítica radical da linguagem e suas possibilidades, concluindo pela vacuidade das proposições metafísicas. Nos dois casos, Wittgenstein aponta em direção à contemplação silenciosa do absoluto como constituindo a solução do problema ético. No Tractatus, a mensagem a este respeito é explícita. Nas Investigações, a referência é mais sutil. No prefácio desta obra, Wittgenstein afirma que sua nova filosofia deve ser compreendida em contraste com a antiga. Isto sugere alguma ligação entre as idéias ético-religiosas do Tractatus e as das Investigações, só que agora o silêncio sobre o misticismo é total. Mesmo assim, ele parece constituir a fonte espiritual da nova perspectiva, que, desprovida de tal motivação, não passaria de um jogo de desconstrução da filosofia tradicional, sem qualquer finalidade mais elevada. Além disso, tendo em vista o caráter profundamente marcante da experiência mística na vida daqueles que a experimentaram, seria muito difícil imaginar que Wittgenstein, depois de passar por ela, seria capaz de esquecê-la ou de diminuir a sua importância. Nos diversos textos que ele escreveu, desde seu retorno à filosofia até o momento de sua morte, encontramos preciosas indicações de que a visão ético-religiosa permaneceu viva em sua mente mesmo depois do abandono da filosofia do Tractatus. A maneira de fazer a crítica da linguagem pode ter mudado, mas não a sede de absoluto. Assim, a prática da auto-renúncia para atingir a contemplação silenciosa do sentido da vida parece constituir o cimento comum que dá continuidade ao pensamento de Wittgenstein.

Paulo Roberto Margutti Pinto
professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG, é doutor em filosofia pela Universidade de Edinburgh e autor de Iniciação ao Silêncio. Análise do Tractatus de Wittgenstein (Edições Loyola)

(2) Comentários

  1. faz tempo que procuro na internet, textos que discorram ou traduzam um pouco do pensamento e filosofia de wittgenstein, e me deparei com esse belo texto que me permitiu entender um pouco dos fundamentos de sua filosofia.Agradeço pela clareza do texto.

  2. Me pareceu que é um contra-senso tentar descer a escada que ele descreveu e que serviu para retomar outro caminho apesar de torná-lo (Ele, o filósofo), mais coerente com a lógica formal!

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