While My Guitar Gently Weeps
Uma versão desse conto foi publicada em Livro Branco, coletânea de contos organizada por Henrique Rodrigues (Record, 2012).
Reescrevi, sobretudo, para que os escritores do Laboratório de Escrita Criativa, minha eterna parceria com Evandro Affonso Ferreira, saibam que a gente está, na escrita, como na vida, sempre aprendendo alguma coisa nova.
A imagem é foto de Cripta Djan que a cedeu gentilmente para compor essa postagem. Agradecimento de fã.
While my guitar Gently Weeps era o que eu ouvia atrás da porta enquanto pensava no roubo. A guitarra, uns discos daqueles antigos de vinil, era só o que eu queria levar. While my guitar Gently Weeps é a música que minha mãe ouve quando está triste sem ter ideia do que a letra quer dizer. Talvez que a música não seja a letra, mas o espírito, e o que cumpra por nós que nela nos embalamos seja só chorar.
É assim que eu penso. Não sei bem o que pensa minha mãe em silêncio há dias. Não ouve a música, não fala nada. Há uma semana atrás era um disco quebrado falando o diabo, as drogas, a música, o medo da rua. O destino das mães e o destino dos discos, penso enquanto a porta em minha mente ainda range movida por um traço de vento. A mãe passou a semana com a conversa de que me envolvo com o que não devo, que meus pensamentos foram roubados por um deus pagão. Ela anda lendo a Bíblia, pega umas palavras diferentes pra usar. Foi assim desde que eu era pequeno, uma leitora da Bíblia. Falta de outros livros, eu sei. Ela não sabe.
Dias atrás ela falava que em vez de pensar em música eu devia trabalhar. Aprender um ofício são, foram suas palavras. Ela não pensa nos deuses pagãos sentando tijolos na irrupção violenta dos prédios pelo centro da cidade enquanto sentem inveja do meu desejo. Não sentem a minha fúria, não sentem meus dedos devorados pelas cordas do som. O som vagabundo do radinho de pilhas cortado pelo bate-estaca das britadeiras, o ronco indigesto das betoneiras, é o que sobrou para quem não tem mais ouvidos. De vez em quando tomo com eles aquele café amargo para fingir que ainda sinto gosto.
Escuto o labirinto de palavras com que ela constrói nossa casa. While my guitar Gently Weeps atravessa as paredes, derruba a minha mãe no sofá velho no canto da sala. As pausas de silêncio duram semanas até que ela explode em choro e me abraça me fazendo nascer ontem. Voltando às poucas palavras que se guardaram depois de um grande período de silêncio, ela pede que eu leia um dos livros que estão sempre comigo sem me perguntar de onde os trago, que título tem, quem os escreveu. Pego nas livrarias, são meus como são meus os tênis, os relógios, os celulares que trago das lojas em que minha mãe nunca vai entrar. Os livros, os discos e o toca-discos. Uns tem demais, outros de menos, eu digo sem que ela possa entender. E o que eu queria dizer é que se pode partilhar não apenas a miséria. Como o dinheiro que levo do mercado, da farmácia ou da carteira dos descuidados.
Desde que me lembro, desde a época em meu pai vivia, é assim. Eu ponho um disco, ela escuta até dormir. Seguem as semanas na quietude de tanque e cozinha a que está acostumada. Até que um dia ela explode em soluços, me pede pra ouvir música, eu escolho um som de piano. Passa uns dias, ela me presenteia com cds comprados nos camelôs. Cópias piratas de sertanejos e outros barulhos que ela encontra no centro, perto do ponto do ônibus, na parada onde ela enrola a solidão dentro da bolsa, como um dinheirinho economizado que se tem medo de gastar.
Minha mãe não sabe de nada. Até ontem eu não sabia que eu também não sabia de nada.
A coisa foi lenta como nos sonhos. Tocava While my guitar Gently Weeps. A música da minha perseguição. Vejo agora. Dois copos com vinho pela metade na mesa branca de plástico escondida sob a toalha suja de macarrão, pedaços de pão, manteiga em papel laminado, faca de mesa, garrafa de água, bancos de madeira soltos no meio da sala. A totalidade da cena. Não pensei naquela hora em outra cena que pudesse estar escondida. A porta meio aberta mais ao fundo, era a coisa da queda em abismo, fui entender muito depois. Havia livros sobre o sofá e entre as panelas na prateleira acima da mesa. Não pensei em tocar neles, não daria tempo, só a vontade. Povo agora deu de ler, pensei só eu amasse palavras e frases arrumadinhas. Quarto e sala velados um pelo outro eram o todo do alojamento, mais o banheirinho mínimo sem azulejos e aquele chuveiro onde os dois tomavam banho.
Eu ouvia o barulho da água certamente fria como é a da minha casa. Se houvesse vapor o espelho estaria embaçado. Refletido no quadrado apenas um sinal da cortina de plástico estampada de flores desbotadas. O banho demorava. O par devia estar naquela coisa de sexo debaixo d’água, combatendo o frio objetivo do momento com o calor do corpo que nessas horas é causa de toda cegueira. Na hora do sexo há quem perca até mesmo o tato aparentemente tão fundamental à causa, esquecendo-se das temperaturas, das dores, do jeito monstruoso de parto desses prazeres singelos. O sexo me dá medo. Nada de ruídos além da água que escorria como um choro acionado mecanicamente. A música se repetia sem parar até que a agulha da eletrola quebrou ali, na hora mesma em que acreditei poder sair do meu esconderijo e pegar a guitarra, quando já não pensava em levar comigo os discos. Não tinha uma mochila para ajudar, saí de casa meio sem projeto fugindo do silêncio da minha mãe nesse ponto de contrangimento em que a coisa fica de vez em quando, querendo me distrair, concentrar no que apaga essas angústias milenares a que, todas juntas, o povo chama de dia a dia. Eu não queria era ser visto e criar problema para a minha mãe que não suportaria me ver envolvido com a polícia.
Eu conhecia um dos dois de uns anos atrás na escola. Não lembrei o nome dele, embora o tenha observado nas últimas semanas nas mesmas lojas que eu. Imaginava que a guitarra fosse tão importante pra ele quanto para mim, e sabia que ele tinha pego em uma loja grande. Certamente ela faz mais falta para ele e para mim, do que para o dono da loja. Era esse o meu jeito de ver as coisas. O parceiro foi mais corajoso e mais rápido do que eu que perdi ali a certeza, essa coisa entre covardia e coragem, de que realmente devia fazer o que pretendia fazer. Ele era o ladrão e eu o ladrão que roubaria o ladrão.
Eu só queria a guitarra. O disco repetia o travo na fissura mínima que certamente estava ali há mais tempo. Pensei que um dos dois logo sairia do banheiro irritado com a repetição perturbadora no ponto do gently weeps, gently weeps. Entre a expectativa e o sobressalto, fiquei ali parado esperando para sair do meu canto, pegar a guitarra e sair correndo.
Petrifiquei ao escutar a sirene da polícia. Os porcos entraram na casa e em segundos tiraram do banheiro os dois já mortos. Encostaram na parede, deixando-os meio que abraçados e deram um tiro a mais na cabeça de cada um. Nunca vou entender porque se mata alguém já morto. A música continuava repetindo na fissura daquelas duas palavras como passos no mesmo lugar, marcha para lugar nenhum. Chorei, nunca chorei tanto, eu que não sou de chorar. A água escorria dos corpos formando um fio de sangue na direção das lajotas descascadas.
Bateram a porta com força na saída. Deu tempo de eu pegar a guitarra e pular o muro de trás. Agora eu posso tocar While my guitar Gently Weeps. Não vou dizer para a minha mãe o que a letra quer dizer.