Às voltas com o casamento homoafetivo

Às voltas com o casamento homoafetivo
(Fotos: Reprodução/Antônio Cruz/Agência Brasil)

 

A discussão do casamento homoafetivo tomou as redes sociais nos últimos dias, provocada pela tentativa de certos setores fundamentalistas e conservadores de nossa política de proibir o direito à união civil homoafetiva. Veja que o termo é “união civil”, e não casamento… Afinal, a instituição do casamento é sempre entendida em seu aspecto religioso, profundamente conservador, contudo, para efeitos práticos uma coisa e outra se equiparam. Evitarei nesse texto os nomes daqueles que se esmeram contra esse direito conquistado por entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Não quero aqui fazer mais uma repetida análise política ou jurídica do evento, pois creio que muitas outras, com mais qualidade e capacidade que as minhas, foram feitas. Quero propor algumas reflexões em torno da própria noção de “família” no interior das instituições formadoras do sujeito, das instituições de gênero em nossa sociedade. Percebam que a questão “família” está sempre no centro dessas discussões: todo o tempo alguém evoca uma suposta defesa da “família”, quase sempre caracterizada como unidade abstrata e autointuitiva, referindo-se a um modelo familiar ideal, instituído ao longo da modernidade: a família nuclear moderna, composta idealmente por pai, mãe e filhos.

A família moderna

 

A categoria “família” da modernidade nasce com uma função social muito clara. Conforme indica Silvia Federici em Caliban e a bruxa, o nascimento da família moderna representa o aprisionamento da mulher no lar e sua transformação de um ser complexo em um útero ambulante, condenado à reprodução biológica e social. A apropriação do útero ocorre, segundo a autora, como parte do processo de acumulação primitiva do capital. Em um mundo que começa a se industrializar (em meados do século 18 e início do 19), uma necessidade, dentre tantas, se faz evidente. Qual seria? A produção de mão de obra para trabalhar nas fábricas. E como se produz “gente” para trabalhar? Garantindo o funcionamento das famílias como “unidades reprodutivas”, pequenas fábricas de trabalhadores. Uma curiosidade sobre esse momento se pode perceber no termo “proletariado”, que, antes de significar “aquele que não detém os meios de produção”, significou “aquele cuja única riqueza é sua prole”, ou seja, aquele cujo produto que fabrica e comercializa é a força de trabalho de sua descendência.

O casamento na modernidade ganha, assim, a função de instituição ordenadora e fundadora da família reprodutiva. Caberá a cada unidade familiar uma dupla tarefa: reproduzir-se e garantir que os seus filhos, que suas crias, possam reproduzir também. A manutenção do modelo “ heterossexual” é o centro da função familiar e do casamento. Tendo em vista tal aspecto da discussão, damo-nos conta de que, quando se discute no Congresso Nacional o “casamento homoafetivo”, isso nada tem a ver com amor ou moralidade, como ingenuamente podemos pensar, mas com o regimento político da heterossexualidade, nos termos pensados pro Monique Wittig.

Não é sobre amor, é sobre poder! No fundo das discussões em torno do casamento homoafetivo, estão questões de poder. Alargar o sentido de casamento ou de união civil poderá interromper a reprodução social do modelo familiar e existencial heterocentrado? Chamar de família os novos arranjos não poderia causar uma crise reprodutiva? E se as mulheres não quiserem mais ter filhos?

O mito do amor materno e a troca de mulheres

 

A feminista francesa Elisabeth Badinter, ao estudar a relação entre mulheres e sua prole no século 18 em sua famosa obra O mito do amor materno, descobre que apenas a partir do século 19 passou-se a imaginar um “amor natural”, um amor materno superior a todos os outros que emergiria como dado natural. Antes, esse amor não existia, ao menos não deste modo. É assim que ela chega a postular que o amor materno foi inventado no século 19 como mais uma técnica de aprisionamento da mulher, a partir da ideia de que ela desejaria naturalmente responsabilizar-se integralmente pela criação de seus filhos, algo que estaria ligado à sua realização existencial como mulher.

A matriz quádrupla – família, casamento, reprodução e amor – é tão amplamente difundida como “o modelo natural” que a projetamos até mesmo na natureza: vemos a vida dos animais como se fossem novelas humanas que comprovam que aquilo que observamos com o filtro da cultura é natureza. Ou então apelamos ao trans-histórico, como se existissem os modelos cis-heterossexuais há muitos anos ou desde sempre.

Ainda sobre a instituição casamento, gostaria de lembrar sua função e operatividade em sociedades primitivas, conforme discute o antropólogo Claude Lévi-Strauss em Estruturas elementares do parentesco. No interior de suas discussões sobre estado de natureza e estado de cultura, atrelado à discussão sobre o tabu do incesto, o casamento surge como uma forma de trocar mulheres, o que garantia a relação entre homens de clãs diferentes e, assim, permitia alianças e a circulação de relações no interior de uma comunidade. O casamento, nesse contexto, era a forma como a troca poderia acontecer, garantindo, ainda, a patrilinearidade para cada clã. Quando Rubin ou Butler apontam para as teorias de Lévi-Strauss, fazem-no para pensar em como colaboram com a subalternização da mulher. Afinal, qual seria o valor da mulher? É um pouco nesse mesmo sentido que Butler dirá que o parentesco é sempre heterossexual.

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O direito à união estável homoafetiva, recusada por parte da população queer, que compreende o casamento como uma forma de captura, uma forma de higienizar as relações que nascem na dissidência através da normalização, tem uma dimensão fundamentalmente prática: herança, previdência e partilha das obrigações econômicas da existência. Não se trata de ser ou não ser uma família, de ser ou não ser um casal, mas de acessar condições básicas de segurança.

Contudo, e acho importante frisar isso, não é apenas o casamento homoafetivo que emerge como novas formas de união ou novos arranjos familiares. A família moderna não existe mais, talvez nunca tenha existido. É chegado o momento em que possamos criar uniões com quaisquer pessoas: com amigos, com mais de um amor… Porque, assim, as formas de coabitar a existência serão mais múltiplas e diversas.

Helena Vieira é escritora e transfeminista.

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