Nós, vitorianos, e nossas verdades secretas com o Estado

Nós, vitorianos, e nossas verdades secretas com o Estado
(Foto: Divulgação)

 

Indecente, imoral, obscena… Assim é definida a novela Verdades secretas 2 em uma de suas chamadas. Escrita por Walcyr Carrasco, a segunda temporada da produção vencedora do Emmy Internacional (2016) estreou em outubro do ano passado, sob forte expectativa do público, na plataforma de streaming Globoplay. A expectativa devia-se tanto à ansiedade dos fãs pela continuação da novela quanto à promessa de “cenas quentes” ao longo dos capítulos. Embora o sexo ocupe um lugar importante no enredo desde a primeira temporada, a sua importância foi consideravelmente ampliada na sequência da história, que tem como foco a investigação da morte do empresário Alex Ticiano (Rodrigo Lombardi), amante da protagonista, Arlete/Angel (Camila Queiroz). Às vésperas da estreia, foi noticiado que a novela teria 67 cenas de sexo distribuídas em 50 capítulos, abrangendo práticas sexuais diversas e múltiplas formas de expressão da sexualidade.

Desde o princípio, o enfoque sexual de Verdades secretas 2 parecia materializar uma resposta da dramaturgia ao momento pretensamente conservador que vivemos no Brasil. Afinal, toda forma de arte se realiza em um dado contexto sócio-histórico, o que a faz interagir, de algum modo, com os arranjos e disputas que permeiam esse contexto. A interação da arte com o seu contexto de produção compele o artista a fazer escolhas, tornando o processo criativo um fazer essencialmente político, como defende Walter Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (2012). Outro ponto a ser colocado é que a arte permite a circulação de pensamentos censurados, o que, na visão de Freud em Escritores criativos e devaneio (1970), propicia a experiência de um prazer libidinal, relacionado à concretização de um desejo recalcado, e de um prazer estético, referente à percepção do caráter simbólico da criação artística. Em ambos os casos, a arte é vista como uma atividade atravessada por fatores que a localizam no espaço, no tempo e na vida. Como afirma James Baldwin: “A arte é uma forma de confissão” (Conversations with James Baldwin, 1989).

Nesse sentido, considero que Verdades secretas 2 tem algo a confessar sobre o contexto em que foi produzida. Mas qual seria o teor dessa confissão? De modo geral, percebo que a novela de Walcyr Carrasco mobiliza duas confissões importantes sobre nós, brasileiros: o nosso desejo de ver e falar sobre sexo, e a nossa percepção moralista – e, portanto, conservadora – da sexualidade. Acerca da primeira confissão, é curioso notar que, mesmo com as fissuras socioculturais observadas no âmbito da sexualidade ao longo das últimas décadas, ainda vemos o sexo como um território sobre o qual paira uma névoa de mistério e interdição, o que justifica o nosso desejo de ver e falar sobre ele. Essa é uma das questões abordadas pelo filósofo Michel Foucault em História da Sexualidade 1 – a vontade de saber (1988), cujo objetivo é mapear os efeitos sociodiscursivos da repressão sexual que se pretendeu construir no Ocidente a partir do século 17. Na visão do autor, as interdições impostas à época no campo sexual acabaram produzindo um efeito reverso, já que, tomando por base os três últimos séculos, nota-se que “em torno e a propósito do sexo há uma verdadeira explosão discursiva”.

Já a segunda confissão destaca o olhar moralista que muitos de nós ainda lançam sobre a sexualidade, fato que remete à Era Vitoriana (1837-1901), marcada por um forte moralismo sexual e tentativa de repressão da sexualidade, que acabaram se espalhando pelo mundo ocidental devido à influência do Império Britânico. Esse olhar vitoriano – que, segundo o historiador Jason Tebbe, “não está morto, nem de longe” –, pode ser observado no desconforto que várias pessoas demonstraram sentir perante as cenas de sexo em Verdades secretas 2. Como exemplo, vejamos alguns comentários postados em notícias sobre a novela nas redes sociais:

  1. “Tá apelando demais … esqueceram a história e focaram na sacanagem !!!”
  2. “Meoldeols!!! Tem mais nhanhação nessa série que enredo… o povo não pode se encostar que estão nhanhando.”
  3. “[…] me decepcionou um pouco essa nova temporada de Verdades secretas muito apelo e pouco conteúdo.”
  4. “[…] me senti decepcionada… muito vuco vuco e nada de conteúdo… meio sem sentido.”
  5. “Muito ruim!!! Só trepa trepa dá não… Aliás geral “dá” muito e o enredo péssimo.”

A decepção enfatizada nesses comentários se relaciona à forte presença do sexo na segunda temporada da novela, o que teria resultado em uma narrativa com “pouco conteúdo” (3), “meio sem sentido” (4) e com “enredo péssimo” (5). Durante a exibição dos 20 primeiros capítulos, ouvi também, inclusive de pessoas progressistas, que a maioria das cenas de sexo “não têm contexto”. Na posição de telespectador, concordo que Verdades secretas 2 apresenta falhas consideráveis no roteiro e que muitas cenas poderiam ser descartadas, seja por sua irrelevância na construção da narrativa ou pela falta de um contexto que justifique a sua inserção na trama. Logo, a pergunta que não cala é: em meio a tantas cenas dispensáveis e/ou sem contexto, por que escolheríamos justamente as cenas de sexo para desqualificar o enredo? E mais: por que nos surpreenderíamos com o “apelo sexual” de uma história que, desde o princípio, deixou claro que teria o sexo como protagonista?

Trata-se, a meu ver, de uma resposta simples e direta: porque, a despeito de nossas orientações políticas, não percebemos – ou negamos – o protagonismo do sexo em nossas vidas e na realidade em que estamos inseridos. O que não deixa de ser uma posição curiosa, já que um rápido olhar sobre as diversas configurações afetivas que nos cercam – relações (não) monogâmicas, pessoas solteiras com vida sexual ativa, praticantes do autoprazer, casais que (não) querem ter filhos, pessoas que abdicam de seus sonhos para manter o relacionamento etc. – é capaz de revelar o destaque que o sexo possui na forma como as nossas vidas se organizam. Se analisarmos essas configurações honesta e criticamente, veremos que o sexo constitui a base de todas elas e, como tal, produz efeitos concretos sobre as nossas vivências. Até mesmo aqueles que optam por uma vida não sexual mantêm um vínculo direto com o sexo, pois, no plano do significado, a negação implica uma relação de contradição, formando, assim, uma classificação dicotômica – no caso, sexo/não-sexo.

Acerca da exigência de um “contexto” para as cenas de sexo, é interessante questionar sobre o que entendemos por um contexto que justifique o ato sexual. Além do desejo, o que mais poderia justificar a busca pelo prazer? Essa pergunta não me parece indevida, posto que, ao exigir um contexto plausível para o sexo, e sendo a arte uma espécie de imitação da realidade, colocamos o prazer sexual como um objetivo a ser buscado em situações específicas e pré-determinadas. Ora, se o que nos motiva para o sexo é o desejo de prazer, por que é difícil aceitar que esse seja também o “contexto” para as cenas de sexo na ficção? O debate se torna mais complexo quando reconhecemos que a “falta de contexto” parece não ser um problema em outros recortes ficcionais, como em cenas de violência, que, via de regra, performam situações em que pessoas são ofendidas, torturadas e/ou assassinadas. Em algum nível, esse dado revela que a estranheza com que vemos o sexo não se estende à violência: entre um e outro, preferimos enxergar a violência como fato. Não por acaso, o sexólogo espanhol Manuel Lucas Matheu conclui, após observar 66 culturas diferentes, que “as sociedades mais pacíficas são aquelas em que a moralidade sexual é mais flexível”.

O desconhecimento – ou a negação – do protagonismo sexual em nossas vidas mostra que ainda nos orientamos, em maior ou menor grau, por uma visão conservadora da sexualidade. Inclusive, há momentos em que essa visão se expressa com tamanha força que chegamos a negar o sexo discursivamente, a exemplo dos comentários em que a palavra sexo é substituída por outros termos, como “sacanagem” (1), “nhanhação” (2), “apelo” (3) e “vuco vuco” (4). A impressão é que a “explosão discursiva” em torno da sexualidade nos permitiu falar mais sobre o sexo, mas, em contrapartida, nos impediu de chamá-lo pelo nome. É como se a palavra sexo ainda remetesse a uma prática imoral e pecaminosa que não deve ser enunciada para além das paredes do quarto. Talvez isso ajude a explicar por que algumas pessoas se orgulham em dizer que o prazer sexual deixou de ser importante na relação, como se o sexo designasse um ato indecoroso e avesso do amor, ao qual devemos nos submeter até que os laços afetivos se fortaleçam. Uma posição que não deixa restar dúvidas sobre o que disse Foucault: “por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele nos sujeitaríamos ainda hoje”.

O problema de uma visão conservadora da sexualidade é que ela tende a reiterar a negação do sexo como uma questão de Estado. Se lançarmos um olhar crítico sobre a história, veremos que o sexo constitui a base da formação do Estado moderno, já que ele foi um elemento-chave na elaboração e imposição dos sentidos, práticas e configurações afetivas que materializaram o projeto de sociedade que nos trouxe até aqui. Na obra Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017), a filósofa Silvia Federici mostra como o surgimento do Estado está inextricavelmente relacionado à instituição de um conjunto de políticas sexuais, como a legalização do estupro, a degradação social das mulheres, o incentivo à abertura de bordeis e a perseguição de mulheres “selvagens”. Foi a partir dessa relação que, nas palavras da autora, o Estado se tornou “o supervisor da reprodução da força de trabalho”. No caso do Brasil, o vínculo entre sexo e Estado torna-se flagrante quando constatamos que a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em 2018, se deu em grande parte devido às políticas sexuais conservadoras que estruturam a sua proposta de governo, as quais envolvem temas como legalização do aborto, igualdade de gênero e educação para a diversidade. O sexo, portanto, está na alma do bolsonarismo.

Esse atrelamento pode também ser observado na obsessão que Bolsonaro e sua base aliada nutrem por temas sexuais. No dia 10 de novembro de 2020, o presidente declarou, em uma cerimônia no Palácio do Planalto, referindo-se ao trágico cenário da pandemia no Brasil: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. […] Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa?”. Não é preciso muito esforço para compreender que a palavra maricas faz uma referência explícita ao campo da sexualidade, na medida em que se trata de um termo culturalmente utilizado para nomear pejorativamente homens gays e diferenciá-los de homens heterossexuais. Logo, o objetivo era dizer que deveríamos enfrentar a pandemia como “homens de verdade”, e não como “maricas”, que supostamente marcam uma geração de homens covardes e sentimentais – naquele momento, o país contabilizava mais de 162.000 óbitos pela Covid-19. Somada a outros dizeres de mesma ordem enunciados por Bolsonaro e seus aliados, essa fala revela que, ao contrário do que se pretende fazer acreditar, o bolsonarismo não somente opera com base em uma lógica sexual, como depende dela para sobreviver: o sexo está em todos os poros da sua epiderme sociocultural. O que não deveria ser visto como novidade, pois, como mostra a história, esse é um aspecto notável de movimentos antidemocráticos e violentos, a exemplo do fascismo. Em diálogo com Freud, Theodor W. Adorno afirma em Freudian theory and the pattern of fascist propaganda (2001) que a propaganda fascista emerge dos vínculos libidinais entre o líder e seus seguidores; por isso, “ela precisa ser orientada psicologicamente e mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos” para convencer as massas.

Assim posto, não seria infundado dizer que o Estado é uma instituição sexuada e que visões conservadoras da sexualidade que emergem de campos progressistas podem construir laços discursivos com projetos nefastos de poder, já que são essas visões que respaldam e sustentam as políticas sexuais de governos autoritários e hipocritamente moralistas como o de Jair Bolsonaro. Digo isso porque a linguagem é uma atividade líquida, o que significa entender que as palavras e os sentidos que elas mobilizam não encerram a sua trajetória nos espaços em que são postos em circulação, podendo estabelecer vínculos com outros repertórios, em uma infinidade de espaços interativos, para muito além das nossas intenções. Como afirma o linguista Jan Blommaert em Discourse (2005), discursos são descontextualizados e recontextualizados, “de modo que se tornam um novo discurso, associado a um novo contexto”. Outro ponto importante é que a linguagem não se limita à descrição de coisas ou fatos da vida real; ela opera como forma de ação sobre o mundo e a realidade em que vivemos. A própria ascensão do Bolsonarismo e sua manutenção no poder podem ser compreendidas como efeitos da circulação massiva de enunciados injuriosos e moralistas, como posições misóginas e homo(trans)fóbicas, e comentários que abominam a “ideologia de gênero” e reiteram a supremacia da “família tradicional brasileira” no país.

Diante do exposto, vale uma (auto)provocação: em que medida as nossas visões conservadoras da sexualidade se contrapõem aos discursos que produziram e sustentam a realidade brasileira atual? Será que os discursos mobilizados por essas visões não favorecem, de algum modo, a construção de políticas sexuais moralistas e excludentes, que recaem sobre temas diretamente ligados ao bem-estar coletivo e, por assim dizer, à ideia de um Estado Democrático? A despeito de nossos argumentos, é interessante notar que Verdades secretas 2 acabou, ironicamente, confessando algumas de nossas próprias verdades, que, além de secretas, são perigosas, visto que tendem a se articular a outras verdades, não tão secretas, que produzem efeitos altamente perniciosos na vida social. Entretanto, o fato de a novela ter se tornado um fenômeno de audiência, ultrapassando o número de 50 milhões de visualizações, revela uma situação curiosa: ainda que o nosso olhar para a sexualidade tenda a seguir uma lógica moralista/vitoriana, queremos ver e falar sobre sexo. O que é corroborado pelos dados do Google Trends, segundo os quais a busca pelo termo XVideos – site de conteúdo sexual – foi consideravelmente maior do que a busca pelo termo Bíblia no Brasil – país dito “cristão e conservador” –, no período de 2004 a 2021. Ou seja, para além do que dizemos, o sexo é uma questão para nós. Assim como também o é, talvez de forma ainda mais pronunciada, para Bolsonaro e aqueles que aplaudem a sua propaganda irracional, inconsciente e regressiva, como diria Adorno.

Tendo em vista o cenário que se descortinou para nós nos últimos anos, acredito que um dos nossos grandes desafios contemporâneos é questionar visões conservadoras da sexualidade, o que não significa precisamente nos abrir para todas as práticas sexuais disponíveis, mas encarar o sexo de frente, reconhecendo-o como discurso, como fator estruturante da vida e, sobretudo, como uma questão de Estado. É preciso chamar o sexo pelo nome. Do contrário, seguiremos ignorando os arranjos e disputas que atravessam o campo da sexualidade, e negando a centralidade do sexo e das pautas sexuais nos movimentos de resistência e mudança. É um tanto complexo reivindicar-se progressista e, ao mesmo tempo, desqualificar uma produção artística por conta do seu “apelo sexual”. Mais complexo ainda é proclamar-se oposição a um governo como o de Jair Bolsonaro e se aparelhar com os seus repertórios na leitura de uma obra ficcional. Se quisermos nos opor radicalmente a projetos autoritários e construir uma sociedade mais livre, democrática e plural, deveremos perceber o sexo como parte da luta. Isso porque, como bem lembra Foucault, o sexo é uma causa política e, por isso, “também se inscreve no futuro”.

Marco Túlio de Urzêda-Freitas é doutor em Estudos Linguísticos pela UFG, professor dos cursos de Letras da PUC-GO e da UNIP e autor do livro Ensino de línguas como transgressão: corpo, discursos de identidades e mudança social.


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