Viver bem, viver melhor
A releitura da filosofia na formação da teoria crítica aponta para a transformação utópica – e possível – da realidade social
Robespierre de Oliveira
Herbert Marcuse escreveu, em 1937, Filosofia e teoria crítica, ensaio que não só complementa o artigo de Max Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, do mesmo ano, como faz parte da elaboração do projeto teórico do “Instituto de Pesquisa Social” (Institut für Sozialforschung) e também do próprio Marcuse. Inicialmente, Marcuse havia se aproximado da filosofia buscando justificar filosoficamente a teoria de Marx e, assim, criticar o marxismo institucionalizado e partidário. Pode-se falar numa preocupação ontológica em Marcuse, que ao mesmo tempo visava resguardar o papel do indivíduo e a tarefa da transformação social. É nesse sentido que Marcuse lerá Ser e tempo (1927) de Heidegger, mediante História e consciência de classe (1922), de Georg Lukács, e Marxismo e filosofia (1922), de Karl Korsch.
Esse primeiro projeto de Marcuse foi denominado por ele de “filosofia concreta”, que seria uma tentativa de unir a fenomenologia heideggeriana com a teoria marxista (tal como expresso em Contribuições para uma fenomenologia do materialismo histórico, 1928). Em seus textos, Marcuse traduzia o marxismo em termos filosóficos, visando à crítica prática: a ação radical dos indivíduos e a revolução total. Para ele, a filosofia, como atividade humana, deve ocupar-se com os problemas da existência humana, a qual aparece na presente realidade histórica como “inautêntica”. A autenticidade viria com o conhecimento da verdade, ou em outros termos: com a consciência de classe. Para Marcuse, os indivíduos sabem de sua opressão diária, não sabem, porém, como libertar-se dela. Assim, a filosofia, como potência histórica real, teria como tarefa confrontar-se com o marxismo enquanto teoria da revolução proletária. Para isso a filosofia deveria ultrapassar seus limites e enfrentar a realidade dada para transformá-la. Entretanto, a filosofia existencial de Heidegger parecia cada vez menos concreta aos olhos de Marcuse. Isso, mais o descontentamento pessoal com o seu orientador, que não autorizou sua tese sobre a ontologia de Hegel, e a posterior adesão de Heidegger ao Nacional Socialismo, levaram-no a abandonar o projeto da filosofia concreta. Entretanto, foi a publicação dos Manuscritos econômico-filosóficos (1844) de Marx, em 1932, o principal motivo de ruptura.
Um novo Marx e a crítica à história da filosofia
Segundo o próprio Marcuse, ele encontrou nos Manuscritos um novo Marx. Com o título Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico (1932), Marcuse não só resenhara em primeira mão o texto de Marx, como também passava a construir uma nova perspectiva ontológica. Mais do que a historicidade, o que aparecia no “jovem” Marx era uma ontologia articulada com uma antropologia, ambas negativas. Em poucas palavras, as características humanas, abstraídas da particularidade, como trabalho, razão, liberdade, felicidade, sociabilidade, entre outras, apresentam-se como essência humana apenas na medida em que são potencialidades, pois não são realizadas na realidade particular de cada um, na história. Os homens, ao transformarem suas relações em relações econômicas (basicamente entre seres desiguais), desenvolveram uma série de alienações que negariam sua própria condição humana. Segundo Marx, haveria a alienação entre o homem e a natureza, na medida em que os homens não se reconhecem como seres naturais; a alienação de gênero, entre homens e mulheres (poder-se-ia acrescentar também a alienação racial); e a alienação em relação ao trabalho, em que os homens não se reconhecem no produto do seu trabalho ou são expropriados dele. Assim, a essência humana não se realiza plenamente na realidade concreta, a qual é basicamente a história da exploração do homem pelo homem. Segundo Marcuse, o “capitalismo é catástrofe da essência humana”, na medida em que o trabalho que deveria libertar e formar os homens, na verdade os escraviza e os deforma. Marcuse mantém sua preocupação com a “revolução total”, pois a revolução social não pode ser apenas econômica ou política, mas sim uma que transforme toda a realidade humana.
É, assim, que, em Sobre o conceito de essência (1936), Marcuse elabora seu conceito materialista de essência em crítica aos conceitos tradicionais de essência da história da filosofia. Para ele, o conceito de essência humana é dinâmico na medida em que se trata de potencialidades humanas não realizadas, as quais deveriam ser visadas na prática. O materialismo histórico, a teoria de Marx, tomou a sério a tarefa de realizar na prática esse conceito de essência mediante a realização da filosofia. Em Filosofia e teoria crítica (1937), Marcuse retoma o projeto do “jovem” Marx, propondo a realização da Razão. Para Marcuse, a história da filosofia teve um duplo caráter: por um lado, contribuiu (e continua contribuindo) para o sistema ideológico de dominação; por outro, desenvolveu um instrumental crítico (tanto para a própria filosofia quanto para o conhecimento em geral). Mais ainda: a filosofia em sua história, também devido ao seu caráter idealista, desenvolveu e preserva conteúdos de verdade sobre as relações humanas. Assim, o conceito de essência humana não é um conceito puramente metafísico e abstrato, pois é articulado com uma antropologia; também não é um conceito prescritivo, não é um dever ser, mas aponta sim para aquilo que os homens podem ser. Marcuse também critica as ciências, como a antropologia filosófica, que tratam apenas do que o homem é, isto é, de descrever a situação humana. Para ele, as potencialidades humanas postas em face da realidade brutal em que se vive seriam um forte argumento contra essa mesma realidade. É nesse sentido que ele utiliza o termo “utopia”, não como algo irrealizável, mas como algo possível ainda não realizado. Assim, o conhecimento crítico da filosofia aliado à imaginação e à fantasia possibilitam a utopia como um guia para a transformação da realidade social.
Razão e felicidade
Parte essencial do projeto “utópico” marcuseano baseia-se na relação entre razão e felicidade. A razão que Marcuse visava em seu ensaio é o que Max Horkheimer denominou de “razão objetiva”, a razão dos grandes sistemas filosóficos, a razão como fim para si mesma, uma razão que comporta a totalidade da experiência humana. Segundo Marcuse, a filosofia teria sobrevivido até hoje “da não realização da razão”. Por um lado, isso indica o desenvolvimento do que Horkheimer chamou de “razão instrumental”, uma razão que é meio para atingir outros fins. Segundo a teoria crítica, desde Descartes houve uma redução no conceito de razão, deixando de significar a totalidade para tornar-se sinônimo de verdade, certeza, lógica. A razão tornou-se ordenadora, classificadora, calculadora, um instrumento de fato. Por outro lado, a filosofia constituiu-se contra o conhecimento sensível e material, ao agrupar os particulares em universais. Este “caráter idealista” da filosofia não é problema para Marcuse, ele mesmo defende os universais. O que critica é a hierarquização e superioridade dada ao “mundo das idéias” que se mantém, com diferenças, de Platão a Hegel.
O conceito de felicidade, por exemplo, enquanto vinculado à sensibilidade, sempre foi considerado inferior pela história da filosofia, como algo efêmero e contingente. Somente vinculado à razão abstrata que o conceito de felicidade passava a ter significado. De fato, a felicidade sempre foi reivindicada como a tarefa da comunidade política, desde Aristóteles, porém “a busca da felicidade” não significa a realização da felicidade. Marcuse enfatiza: “Há sobretudo dois momentos que vinculam o materialismo à correta teoria da sociedade: a preocupação com a felicidade dos homens, e a convicção de que esta felicidade seja conseguida somente mediante uma transformação das relações materiais de existência”. Por isso, em Razão e revolução – Hegel e o advento da teoria social (1941), afirmará ainda que a teoria de Marx superou a de Hegel, justamente por pretender não só a realização da razão, mas, principalmente, a realização da felicidade. E em Eros e civilização – Uma interpretação filosófica de Freud (1955), discutirá a possibilidade da convergência entre razão e felicidade, mediante o conceito de razão sensível (ou libidinal). De fato, a segunda parte do livro trata justamente de especular para além do princípio de realidade.
Utopia na sociedade unidimensional
Está claro que o projeto utópico marcuseano de liberdade e felicidade humanas é construído a partir do enfrentamento crítico com a realidade social existente. Em linhas gerais, pode-se ressaltar a crítica à racionalidade tecnológica (ou instrumental), a qual seria a expansão da racionalidade de trabalho da fábrica para o todo da sociedade, visando eficiência, produtividade e lucro. Marcuse também criticou a dissolução do indivíduo, cuja identidade (formação egóica) é dada cada vez mais de fora do próprio indivíduo, por mecanismos aos quais ele próprio não tem controle ou acesso, mesmo que eventualmente participe deles, como a indústria cultural ou a mídia. Assim, o indivíduo insere-se em comunidades artificiais, como grupos de jovens, grupos religiosos, agremiações esportivas, fãs de celebridades etc. Mais ainda: a partir da chamada “cultura afirmativa” (a qual afirma valores sem base material de sustentação, como, por exemplo, liberdade e igualdade para todos) para a indústria cultural, os meios de entretenimento visam controlar a descarga energética acumulada para garantir sua reposição para a volta ao trabalho. De tal modo que sentimentos como felicidade, amor e paixão, entre outros, são dados de fora para sujeitos cada vez mais passivos. A moda, por exemplo, determina que alguém seja mais feliz usando a roupa “certa”. A perda da autonomia dos indivíduos efetuou-se principalmente com o processo de integração ao mercado de consumo. Houve um processo de acesso democrático dos trabalhadores a mercadorias mais baratas, integrando-os cada vez mais ao modo de produção que deveriam combater, o capitalismo. Assim, um trabalhador que compre a prazo, compromete-se durante esse tempo a não lutar contra o sistema. Este desenvolvimento chegou a tal ponto que, mesmo numa época marcada pela Guerra Fria entre União Soviética e Estados Unidos, Marcuse declarou que a sociedade havia se transformado em unidimensional. O caráter unidimensional refere-se à perda da liberdade, restando aos homens unicamente a dimensão da necessidade.
Mais ainda: dada a racionalidade tecnológica, o modo de produção desenvolveu cada vez mais falsas necessidades, isto é, necessidades que aprisionam cada vez mais os homens ao sistema de exploração. Marcuse pergunta, por exemplo, qual a necessidade de se trocar de carro a cada ano. A sociedade também é unidimensional por racionalizar (organizar, coordenar) a vida do todo, como sociedade da total administração (Adorno). Os indivíduos podem crer que escolhem sua comida numa praça de alimentação, que gostam da música de sucesso, que apreciam o filme, que vestem o que querem. Os indivíduos inclusive crêem que são felizes nesse cenário previamente estabelecido. Marcuse não os condena: por um lado, tal felicidade é falsa, pois não leva à libertação individual; por outro, ela é verdadeira na medida em que é sentida de fato pelo indivíduo. A realização da felicidade deve ser tarefa da sociedade, da transformação consciente da realidade social, pois a verdadeira felicidade é incompatível com a infelicidade e miséria de muitos outros.
O projeto utópico de Marcuse, embasado na crítica à filosofia e na teoria marxiana, visa à libertação da humanidade de sua própria canga, criada por ela própria. No entendimento de Marcuse, a crítica da economia política de Marx é crítica das relações sociais ou das formas de sociabilidade, e a utopia seria a reorganização racional da sociedade. Desse modo, a necessidade de transformação da realidade social é uma necessidade que os homens deveriam pôr-se para si mesmos, para repensar a sociedade em que vivem e seus problemas, causados por eles mesmos. Assim, Marcuse discutiu questões como ecologia, o feminismo, a dimensão estética, a sociedade industrial avançada, a abolição do trabalho alienado, entre outros temas. O objetivo de Marcuse para a humanidade, apoiando Whitehead, é “de viver, de viver bem, de viver melhor”. Nesse sentido, foi muito mais otimista, embora consciente da realidade, do que muitos de seus críticos visualizam.
Robespierre de Oliveira é professor de filosofia da UEM (Universidade Estadual de Maringá) e da Pós-Graduação da UNESP (Marília) e um dos tradutores da obra de Marcuse no Brasil