Vivas, livres, sem dívidas e transitando nos amamos

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Crônica de uma assembleia de migrantas de e desde NuestraAmérica

Neste dia 18 de dezembro de 2021, Dia Global de Ação pelos direitos humanos dos migrantes, contamos como nos acorpamos em um pacto virtual para cons-pirar entre migrantas, para aprender com sua episteme, sua raiva, suas dores, suas reinvenções e, acima de tudo, sua resistência à violência patriarcal, racista e de classe ao longo dos corredores migratórios das Américas.

Soledad Álvarez Velasco, Cristina Burneo Salazar e Amarela Varela

Em consonância com os tempos digitais pandêmicos, durante quase três horas, no dia 25 de novembro de 2021, nos conectamos de vários pontos do continente e da Europa para levantar nossa voz contra as formas multidimensionais de violência patriarcal, racista, classista e nacionalista que o regime de controle fronteiriço neoliberal exerce contra milhões de mulheres em movimento nas Américas. Os relatos, críticas e queixas de dezessete mulheres migrantes criaram um tecido polifônico de vozes que revelaram como essas violências se materializam, se concretizam, tomam forma. Algumas são mães que buscam seus filhos migrantes desaparecidos na rota; outras trabalhadoras em fábricas impactadas pela exploração do neoliberalismo em jornadas de trabalho extenuantes, salários limitados e condições indignas, sem qualquer proteção trabalhista. Outras cruzaram a fronteira por trilhas para chegar à Colômbia, Equador, Brasil, México ou Estados Unidos, enfrentaram agentes de imigração, negociaram com coiotes e com a migra. A maioria das mulheres que participaram desse evento virtual transnacional vive sem documentos, ilegalizadas por um sistema anti-humano que priva as pessoas migrantes de seus direitos, semeia o medo em suas vidas como forma de controle e se multiplica pelas Américas. Outras companheiras já acumularam experiências de violência muito antes de decidirem migrar: foram abusadas quando crianças, cresceram na violência da pobreza e receberam tratamento racista por serem indígenas, afrodescendentes ou discriminadas por sua origem de classe sem ter acesso ao direito à educação, ao trabalho decente ou à liberdade de expressão pelo fato de ser mulher.

Cada vez que tomaram a palavra durante a Assembleia das Mulheres Migrantes, não só nos ensinaram com as suas histórias que estas violências deixaram profundas feridas coloniais nos seus corpos e histórias, mas e sobretudo nos ensinaram, partilhando, que por cada violência que viveram , também imaginaram estratégias de luta e resistência que incorporam e praticam. São mulheres que se ressentem e resistem, que lutam contra a opressão pondo em prática a política da voz e a política do silêncio. Ao usar sua voz para narrarem-se com outras mulheres, as dores que carregam tornam-se menos pesadas e todas aprendem a reduzir esse peso. “Contar-nos o que vivemos, contar-nos as nossas histórias”, disse uma delas, “também ajuda a aumentar a consciência de que temos que lutar pelos nossos direitos e combater tantas injustiças contra as mulheres migrantes”. Muitas das assembleístas fazem parte de coletivos feministas nos locais onde residem ou em espaços onde convergem arte e militância feminista. Por exemplo, Natalia Giraldo, uma colombiana no Brasil, é membro do Magdas Migram do Rio de Janeiro, um coletivo de mulheres das Américas que migraram para o Brasil e trabalham no teatro das oprimidas para curar a dor e politizar suas vidas. A política do silêncio também faz parte do combate: saber o que falar, a quem contar, quando contar, por que fazer e quando calar é uma estratégia de luta. Nem toda a dor experimentada pode ser compartilhada com seus entes queridos; nem todas as experiências de violência podem ser compartilhadas em qualquer família ou espaço público. Em suas histórias, elas também nos ensinaram como, em sua experiência migratória, aprenderam a medir o que devem cuidar: suas mães e pais nos países de origem não foram informados de toda a dor que suportam por terem sido discriminadas e violadas no caminho, também não contam a seus filhos todos os sacrifícios que fizeram para mandar remessas todos os meses, nem todas as vezes em que choraram em silêncio por medo ou desejo de viver outras vidas possíveis.

Os corpos de mulheres migrantes que se ressentem e resistem à violência e que ativam a política da voz e do silêncio reuniram-se virtualmente em assembleia. Na ocasião, algo mais aconteceu: as mulheres construíram um bem comum com suas memórias, suas experiências e suas vidas, ensinando-nos que a única forma de nos sustentarmos vivas, cuidadas, livres, desendividadas e em movimento transfronteiriço é criando tecidos de solidariedade feminista transnacional e uma memória coletiva. “Não dá mais para deixar de nos cuidarmos porque já nos juntamos”, disse uma delas. Por isso, desde o grupo Inmovilidad en las Américas, de La Laboratoria e de Migratory Corridors, como tantas outras plataformas que foram tecidas naquele coven virtual, nos comprometemos a sustentar esse tecido polifônico de mulheres migrantes em resistência nas Américas, sua voz e seus silêncios são lições fundamentais para continuar a luta por uma justiça migrante, feminista e transnacional.

Por que uma assembleia? O bem comum se constrói entre os pares com amor e cuidado cotidiano, e a assembleia é parte fundamental desse processo. Como o Comitê Invisível sempre nos lembrou, a assembleia radical não divide a palavra de uns poucos que governam muitos outros. Ao contrário, a assembleia se realiza pensando coletivamente, enquanto a palavra se compartilha e se organiza a ação, e são as protagonistas de uma determinada experiência do mundo que a sustentam. As experiências de mundo compartilhadas pelas mulheres da Assembleia de Mulheres Migrantes das Américas se dão pelo movimento: migração, deportação, retorno, refúgio, travessia, espera. O movimento, as suas pausas e voltas num espaço tão vasto como as Américas e a Europa, principal destino das migrações transatlânticas, fazem um bem comum ao serem narradas, tecidas e partilhadas com a determinação com que o fazem, permitindo-nos inclusive acompanhá-las.

Dezenas de práticas de organização política foram compartilhadas pelos membros da assembleia. Minouch caminha desde o Haiti e tem dois filhos. No exato momento da Assembleia, ela está em Necoclí, Antioquia, e pretende cruzar a perigosa Tampão de Darién. Natalia Hernández Fajardo é colombiana na Argentina e faz parte da Revista Amazonas e Ação Feminista Global pela Colômbia, grupo que contribuiu para tornar visíveis as violações de direitos humanos durante a greve nacional na Colômbia, a mesma que reproduziu violências que conhecemos bem em todos os nossos países, violência que também expulsa. Lourdes Aldana, uma venezuelana do Equador, começou como recicladora para reorganizar sua vida, “de joelhos diante da terra”, como contou na assembleia. Esther, também no Equador, luta pela auto-organização não documentada em um país como o Equador, onde xenofobia institucionalizada, violência burocrática e violência obstétrica contra mulheres migrantes acontecem diariamente. Anayelisth Carpio, da cidade de Manta, aposta de Juana la Avanzadora pela luta compartilhada entre mulheres venezuelanas, colombianas, equatorianas e espanholas. Susana Vázquez é cubana no México, colabora com a organização de mulheres Ayuuk Nääxwiin, que trabalha com mulheres indígenas em situação de violência. Ela faz parte do Coletivo Caminantas, que acompanha os migrantes em seu trânsito e processo migratório em Jalisco. Susana se refere justamente a algo fundamental na assembleia: a violência política é um fator de despolitização das lutas dos migrantes, por exemplo, quando os Estados proíbem o protesto social a quem não nasceu no terreno onde deseja mobilizar sua indignação. “A violência política nos persegue longe de nossos países”, diz também Alba Pereira.

Ana Enamorado é uma mulher simbólica entre as mães “buscadoras”. Hondurenha no México, ela está lá há 9 anos. É mãe de Oscar Antonio López Enamorado, desaparecido em 2010. Ana procura seu filho e acompanha centenas de famílias de migrantes em busca de seus entes queridos que desapareceram no trânsito. Delia Colque Kilca, boliviana aimará da Bolívia e regressada da Argentina, pertence ao Ni Una Migrante Menos Argentina-Bolívia e à Articulación de Mujeres y Feministas Pluridiversas de la Paz y el Alto. Ela é uma mãe transnacional, emigrou para a Argentina em 2005 fugindo da violência sexista, e tem um filho de quase 13 anos, para o qual retorna constantemente. Quxabel Cárdenas, hondurenha na Costa Rica, pertence à Enlaces Nicaragüenses, nasceu em Honduras e viajou para a Nicarágua para ingressar nos processos sociais em 1975. Depois teve que migrar para a Costa Rica. Enlaces Nicaragüenses é uma organização de mulheres migrantes econômicas. Alba Pereira é uma líder venezuelana na Colômbia, diretora da fundação “Entre dos Tierras” em Bucaramanga, chegou a Santander em 2011. De “Entre dos Tierras” saem quase 800 pratos de comida por dia para os caminhantes do caminho e é considerado um “consulado” informal na região.

Yolanda Varona Palacios é mexicana no México, sobrevivente de violência sexual e foi deportada. Com base em sua experiência, ela fundou Dreamers Moms Usa Tijuana A.C., politizando a maternidade transnacional e a realidade compartilhada da deportação. Ela não vê sua filha há dez anos. Odilia Romero é uma zapoteca na Califórnia, onde vive há 40 anos como migrante. Ela é a diretora executiva da Cielo, uma organização comunitária que atende comunidades indígenas migrantes nos Estados Unidos. Sustentar a vida em um espaço transnacional, se proteger contra a exploração do trabalho, perseguições políticas, tornar visível a violência sexista como motivo para fugir, encontrar seus filhos, são lutas que essas mulheres enfrentam há décadas. Ross Oliveras é mexicana nos Estados Unidos. Ross migrou para os EUA em 2000 e, 20 anos depois, policiais chegaram a sua casa, ela foi presa com o marido e a filha e esteve prestes a ser deportada. Ela ficou detida em um ICE por 6 meses e denunciou, não sem dor, na assembleia, como acabara de acontecer. A violência migratória está sempre acontecendo, assim como sua resistência.

As lutas das mulheres migrantes estão nos dizendo que temos muitas origens, que as cidadanias nacionais com uma única língua, uma única identidade, um único solo, são insuficientes quando a vitalidade do movimento se opõe a elas. A assembleia está nos mostrando uma outra forma de habitar o mundo.

Muitas visões feministas da migração: a de suas protagonistas

Esta segunda assembleia de migrantes realiza-se no âmbito de um compromisso de longo prazo que, como intérpretes da migração, como jornalistas e pesquisadoras de refúgio, exílio, deslocamento forçado e migração em geral, fazemos desde os coletivos e plataformas em que trabalhamos neste esforço há anos.

Partimos do desafio, do impulso dos grupos de migrantes que nos têm repetidamente dito que faltam suas vozes no debate público e publicado, por isso propõem que #NadaSobreMigrantesSemSuasVozes. Ao mesmo tempo, nos estudos críticos sobre as migrações, já há algum tempo pensamos na categoria de espetáculo de fronteira para nos referirmos ao instrumentalismo que a mídia hegemônica e não poucos discursos acadêmicos fazem da dor de pessoas migrantes e de suas comunidades. Diante desse uso pornonecropolítico da migração, que distorce a vida e as feridas de pessoas migrantes, aquelas que se deslocam em busca de uma vida que possa ser vivida nos ensinaram a necessidade de hackear o espetáculo da fronteira, a partir de uma aposta, um comum concreto: uma política de autorrepresentação radical. É por isso que estamos realizando esta segunda assembleia e faremos muitas mais. Junto com elas, vamos cuidar do bem comum da migração narrada em todas as suas dimensões e na primeira pessoa do plural, compartilhada, revitalizada pela luta, acompanhada e persistente.

Aqui você pode ver a gravação completa da Asamblea de mujeres migrantes, 25 de novembro de 2021, dentro do arquivo digital do projeto (In)Movilidades en las Américas y COVID-19, no qual você também pode visualizar a Primeira assemblea de migrantes do passado 15 de maio de 2021.

Este texto é resultado de
uma parceria entre a Revista
Cult e a La Laboratoria:
espacio transnacional de
investigación feminista

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