Os passos de Virginia Woolf e Mrs. Dalloway em Londres
Virginia empresta seus passos para Clarissa, sua personagem, que mapeia Londres com precisão (Foto: Reprodução/Gisele Freund)
Londres, 16 de junho de 2021.
Num ponto entre East Sussex e Kent está a casa de campo onde Virginia Woolf morou com Leonard. No entorno do terreno corre o rio Ouse que afogou Virginia e suas pedras no bolso. A casa está reaberta, dentro das normas de segurança da nossa nova ordem, e agora não se pode mais entrar no quarto de Virginia. É possível olhar da porta a sua cama estreita, suas estantes de muitos livros, alguns pertences e belíssimos quadros da irmã. Também dá para ver de qualquer lugar da casa uma melancolia. A mesma melancolia de quem está no lugar errado. Virginia escreveu muitas cartas para Ethel Smyth, Vanessa Bell e Vita Sackville-West contando sobre o seu contentamento em estar no campo, em cultivar flores e saber nomes de plantas. Contentamento passa longe de paixão, todavia. Paixão mesmo Virginia sentia em e por Londres. Se a casa de campo lhe dava o ar fresco e a beleza estonteante da área rural do sul da Inglaterra, era no barulho, na sujeira, na dinâmica de Londres que ela se sentia viva. Eu não poderia concordar mais com Virginia sobre paixões e contentamentos.
Como que para homenagear esse bicho vivo e indomável que é a cidade da qual nós duas saímos só para ficar voltando com impressionante frequência, penso na Virginia sempre que o meu trem, que vem de Kent, cruza a ponte de Embankment de onde se vê o Big Ben. Mrs Dalloway teria se chamado As Horas. Confesso a minha preferência pelo título provisório. É, afinal, o Big Ben que estrutura o tempo daquela narrativa iniciada em Westminster. O tempo que passa a não ser só o de Clarissa Dalloway, mas o de Londres.
Semana passada, depois de muito tempo sem ir à biblioteca britânica, meu trem chegou em Charing Cross e sem tempo para ver a Trafalgar Square, tomei a Northern Line até Euston. Placas me distraíam mostrando direções para Boomsbury, Fitzrovia, o rio Tâmisa. É junho, o clima favorece um ar inquietante. Não é pra menos que Clarissa se ocupe da organização de uma festa na sua casa em Londres em meados deste mês. A cidade está acordada, bonita depois de um sono profundo, que pode ser o inverno ou uma pandemia, e as pessoas me parecem disponíveis; os ingleses sorriem como nunca tinha visto antes.
Na biblioteca reencontrei a coleção intitulada sem qualquer sombra de dúvida ou exagero de “Tesouros”. Além de um First Folio, a escrivaninha portátil de Jane Austen e manuscritos das Bronte, William Blake e Marlowe, nos surpreende sem grandes avisos um caderno de anotações cujo título, seguido de um ponto de interrogação, é nítido: The Hours. O primeiro de três manuscritos do que viria a ser Mrs Dalloway, com seus cortes, questionamentos sobre as palavras usadas, pequenas anotações nas margens. O primeiro parágrafo, tão célebre, nunca mudou e desde o primeiro rascunho Virginia decidiu que Mrs Dalloway compraria as flores ela mesma. Quando comparo aquele primeiro esboço com a versão do livro que eu tenho em casa, reconheço aspectos do exercício exaustivo da escrita que é, na maior parte do tempo, uma incessante tentativa de dar conta do impossível.
Há também algumas páginas em que a autora traça sua rota de Londres. Virginia nos entretêm com seu duvidoso conhecimento geográfico quando em A Viagem se confundiu com aspectos da Amazônia. Mas Londres é inequivocadamente de Virginia, e ela empresta seus passos para Clarissa que mapeia a cidade com precisão, ainda que à espreita, como se num exercício de observação que Londres requer ininterruptamente para que se note, se identifique os desdobramentos de vidas escondidas nos passos apressados das pessoas e das personagens em disfarces.
No vasto acervo da British Library, anotações sobre a relação entre Clarissa e P. Walsh. Como se a autora, para não perder seus pensamentos em outros, registrasse intenções narrativas. É realmente muito curioso observar a falta de refinamento de uma autora com características de escrita tão apuradas no momento apressado das anotações. Logo Virginia que pediu, em sua última carta a Leonard, que ele destruísse seus papéis, talvez ficasse surpresa se soubesse do imenso interesse nos seus rascunhos. Ela que tanto ponderou e refletiu sobre as palavras, a ficção, a leitura, a crítica, é apanhada ali sem proteção, nua como qualquer escritor que esboça suas primeiras ideias.
Ela data suas anotações: 27 de junho de 1923. O mês quase no fim, resgatado a tempo de se tornar Mrs Dalloway.
Nara Vidal é escritora, editora e tradutora, mestre em Artes pela London Metropolitan University. A partir de 21/6, ministra o curso Virginia sob um teto e sobre Londres, pelo Espaço Cult. Inscreva-se aqui.