A sra. Dalloway e o sr. Bloom vão às compras

A sra. Dalloway e o sr. Bloom vão às compras
Mestres do romance, James Joyce e Virginia Woolf têm semelhanças biográficas e convergências literárias (Fotos: Reprodução)

 

Quando James Joyce nasceu, em 2 de fevereiro de 1882, em Dublin, Virginia Woolf (então Virginia Stephen), nascida em 25 de janeiro do mesmo ano, em Londres, tinha apenas oito dias de vida. Ambos eram súditos da rainha Vitória, já que a independência da Irlanda só ocorreria no século 20. Essas não são as únicas coincidências nas suas biografias. Woolf e Joyce escreveram obras reconhecidas como pontos máximos da literatura modernista.

Ambos escreveram romances, contos e ensaios, além de terem se aventurado no teatro: Woolf com Freshwater (1923) e Joyce com Exilados (Exiles, 1918). Entre os dez romances escritos por Woolf, de A viagem (The Voyage Out, 1915) a Entre os atos (Between the Acts, 1941), destacamos aqui Sra. Dalloway (Mrs Dalloway, 1925) e Passeio ao farol (To the Lighthouse, 1927). Da lavra de Joyce, sobressaem quatro obras: Dublinenses (Dubliners, 1914), Um retrato do artista quando jovem (A Portrait of the Artist as a Young Man, 1916), Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Todas essas obras já foram traduzidas para o português.

James Joyce estudou em colégios jesuítas e se formou em Letras Modernas pela University College Dublin em 1902. Sua infância foi marcada pela decadência financeira da família, que obrigou os Joyces a diversas mudanças de endereço. Quando seu pai não pôde mais arcar com os preços de Clongowes Wood, reputado colégio interno jesuíta, ele passou por um interlúdio na Christian Brothers School antes que lhe fosse conseguida uma vaga como bolsista em Belvedere. Como essa escola, também dirigida por jesuítas, não o mantinha ocupado por tempo integral, Joyce teve a oportunidade de explorar a cidade.

Sua obra é marcada por elementos biográficos, que Joyce soube utilizar com maestria, pelo experimentalismo formal e temático, e pela rebeldia. Joyce não se deixou vencer pela censura e lutou para que suas obras fossem impressas como ele queria. Foram precisos dez anos para que um editor, na Inglaterra, aceitasse publicar Dublinenses. Quanto a Ulysses, teve que ser publicado na França e chegou a ter cópias queimadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Contra as duas obras, pesava a força da censura, que fazia o medo de processos judiciais vencer o ímpeto de publicar. Mas Joyce, como seu alter ego Stephen Dedalus, de Um retrato, estava disposto a romper com tudo em que não acreditava:

Não servirei àquilo em que não mais acredito, chame-se minha casa, minha pátria ou minha igreja: e tentarei me expressar por alguma forma de vida ou arte tão livremente quanto possa e tão completamente quanto possa, usando para minha defesa as únicas armas que me permito usar –silêncio, exílio e astúcia.

Nascida na capital do Império Britânico, Virginia Woolf teve percurso de vida diferente do de Joyce, contudo não mais fácil. Ela escreveu em seu diário que era “a única mulher na Inglaterra livre para escrever o que quisesse”. É preciso pôr essa afirmação em perspectiva. De fato, ninguém, principalmente uma mulher, era livre para escrever o que quisesse sem temer consequências em 1925, data da anotação no diário de Woolf, a menos que o que se quisesse expressar estivesse de acordo com as normas morais estabelecidas.

Ampliando ainda mais a perspectiva, compreendemos melhor a afirmação da escritora. Woolf, na condição de “mulher” e “livre” que ela mesma ressaltou, teve circunstâncias de vida favoráveis do ponto de vista econômico e intelectual. Em uma sociedade resistente à educação das mulheres, seu pai, Leslie Stephen, deu-lhe a liberdade fundamental: a jovem Virginia pôde ler à vontade! Ainda que seu acesso à universidade tenha sido limitado, a criação de Woolf lhe permitiu ter a autoconsciência necessária para entender a condição geral da mulher em seu tempo e sua condição de mulher, escritora e livre. Woolf atuou como voluntária na campanha pelo voto feminino e recusou-se a receber títulos honorários das Universidades de Manchester e Liverpool.

Ela viajou para países como França, Irlanda, Itália, Grécia e Turquia, mas, como Joyce, não saiu da Europa. Em 1904, publicou seu primeiro texto, uma resenha no Guardian. Aqui, outra coincidência, os primeiros contos de Joyce foram publicados no mesmo ano. E, claro, 1904, foi tão importante para ele que o dia 16 de junho daquele ano foi homenageado em Ulysses.

No ensaio “Ficção moderna” (“Modern Fiction”, cuja primeira versão é de 1919), ao elogiar Um retrato e Ulysses, reconhecendo que Joyce estava “preocupado em revelar a todo custo as centelhas daquela chama interior que cintila suas mensagens através do cérebro” e que era capaz de escrever algo em que se pode encontrar “a vida”, Woolf identificava uma das principais qualidades da literatura modernista: o interesse pelo tempo. O pensamento de Henri Bergson e William James penetrava a literatura; a vivência do tempo importava tanto ou mais do que a sua passagem. O que ocorria em um minuto não era percebido pelos escritores apenas objetivamente, pela exterioridade, mas também subjetivamente, pela interioridade de quem vivia aquele minuto. A literatura de Woolf e Joyce fazia parte dessa mudança de olhar sobre a vida e sobre o tempo que implicou mudanças na construção de enredos e personagens.

 

Leopold Bloom, de Ulysses,
e Clarissa Dalloway, de Sra.
Dalloway, são as personagens
mais conhecidas de Joyce e
Woolf e, não seria exagero
afirmar, das mais emblemáticas
da literatura do século 20.

 

 

No dia 16 de junho de 1904, o sr. Leopold Bloom sai de sua casa na Rua Eccles, n. 7, em Dublim, para comprar rim para o café da manhã seu e da mulher, Molly. Ele prepara o café, vai ao banheiro (alguma personagem da literatura “séria” já tinha sido antes flagrada no banheiro pensando nas hemorroidas?), sai de casa e só volta na madrugada do dia 17, proporcionando à esposa uma tarde com seu amante. É verão, Bloom precisa de um banho. Ele, que trabalha captando clientes para anunciar nos jornais, passa pela redação. Bloom também precisa comer, fazer as contas, escrever para a amante por correspondência. Mais para o fim do livro, ele se encontra com Stephen Dedalus na zona da luz vermelha. Ulisses e Telêmaco, pai e filho, finalmente juntos. Antonio Houaiss, tradutor do romance no Brasil, estava certo quando disse que Joyce escreveu um romance que ressalta o heroísmo do homem comum, demonstrando que “somos todos, de Ulisses a João da Silva, feitos da mesma argamassa”.

Certa manhã de junho de 1923, a sra. Dalloway decide que vai “comprar as flores ela mesma”. A guerra tinha terminado e o rei e a rainha estavam no palácio. Reina a paz naquela manhã de junho e a sra. Dalloway vai organizar uma festa em casa, à noite. Nada mais banal e, no entanto, todo o romance de Woolf tem na festa o seu grande motivo. Ao sair de casa, naquela manhã, Clarissa Dalloway, casada com Richard Dalloway, político e membro do parlamento inglês, encara Londres, com suas pessoas, movimentos e ruídos. Até mesmo um avião faz com que as pessoas olhem para o alto. Septimus, veterano de guerra traumatizado, está na cidade com sua mulher para uma consulta como o dr. Bradshaw. Mais tarde, ele vai cometer suicídio e o médico, presente à festa, vai comentar o ocorrido, levando o mundo de Septimus e o de Clarissa a se encontrarem durante a festa.

Da manhã à noite, acompanhamos a sra. Dalloway e suas lembranças. Como em Ulysses, tudo se passa em menos de vinte e quatro horas, preenchidas da vida das personagens, principalmente da vida da protagonista. Não é o tempo objetivo dos ponteiros do relógio que mais importa, mas aquela “chama interior” à qual Woolf tinha se referido com relação a Joyce; a chama que trabalha na mente e que não pode ser medida em minutos; a chama vivida. Em Ulysses e em Sra. Dalloway, essas chamas interiores, ou consciências, fluem, e Joyce e Woolf sabem nos dar acesso a elas, cada um à sua maneira, com sua técnica.

Que Ulysses é o grande romance do século 20, não é preciso ter dúvida em afirmar. Mas o que significa “grande”? Para alguns, o melhor. Mas isso é discutível. Afinal, o que é “melhor”? Fiquemos, então, com “mais influente”. Ulysses, o romance que vem à mente quando se pensa nos limites do romance (Finnegans Wake já ultrapassa qualquer limite). Mas teve Ulysses alguma força sobre a escrita de Sra. Dalloway?

Com essa pergunta em mente, é ao menos intrigante sabermos que, depois de ler Ulysses, Woolf cogitou chamar Sra. Dalloway de As horas (The Hours). (E se você pensou no romance de Michael Cunningham, adaptado para o cinema com Nicole Kidman no papel de Virginia Woolf, acertou na mosca!) Teria ela cogitado dar destaque ao tempo já no título de seu romance pensando nas horas de Ulysses?

 

As vidas de Woolf e Joyce
quase se cruzaram quando
a Hogarth Press, editora do
casal Leonard e Virginia
Woolf (Virginia recebeu o
sobrenome Woolf ao casar-se
com Leonard), aberta em
1917, considerou publicar
o romance de Joyce.

 

 

Em uma carta a Harriet Shaw Weaver, amiga e benfeitora de Joyce, de julho de 1918, Joyce acusava o recebimento de A viagem, romance de Woolf que ele pretendia começar a ler sem demora, e pedia que Weaver agradecesse à escritora pelo interesse em seu Ulysses. À altura, Woolf tinha lido apenas os quatro primeiros episódios do livro publicados pela revista Little Review.

Apesar do interesse genuíno do casal na publicação do romance, os Woolfs se recusaram a publicar o livro de Joyce. A desculpa foi polida: com as prensas manuais de que dispunham, um livro tão grande levaria ao menos dois anos para ser impresso. Se essa questão prática foi ou não preponderante, é fato que Virginia e Leonard temiam ser processados pela publicação de tal conteúdo. Leonard chegou a conversar com outros editores, que o desencorajaram, alegando que nenhuma editora que zelasse por sua reputação poderia endossar aquele material.

Mesmo a editora da mulher inglesa livre para escrever o que bem entendesse não deixou de temer pagar algum preço pelas liberdades de Joyce. Talvez a história tivesse sido outra se ela tivesse apreciado o romance sem reservas. Mas, o fato é que Ulysses, mesmo em seu promissor início, era para ela a obra de um escritor cuja liberdade criativa foi possivelmente vencida pelo rigor do método. Ao avançar na leitura, passou a considerar o livro “de baixa qualidade, vulgar”. Mas acrescentou: “pode ser que eu revise essa impressão mais tarde”.

Em setembro de 1922, ao terminar de ler Ulysses, ela anotou:

Acabei Ulysses e acho um fracasso. Até que tem gênio, acho; mas de estirpe inferior. O livro é prolixo. É repugnante. É pretensioso. É vulgar, não apenas no sentido óbvio, mas no sentido literário. Um escritor de primeira linha respeita demais a escrita para ser traiçoeiro; exagerado; querer aparecer. Penso o tempo todo em algum estudante convencido, cheio de qualidades, mas tão autocentrado e egoísta que perde a cabeça, se torna extravagante, amaneirado, barulhento, inquieto, que faz as pessoas bondosas sentirem pena dele e as mais severas apenas se aborrecerem; só se pode esperar que ele supere isso; mas como Joyce já tem 40 anos, é bem pouco provável que consiga.

Mas ela também confessou ao diário que não leu o livro com atenção e que ele podia ter mais qualidades do que ela fora capaz de captar em uma leitura. Ainda em setembro, depois de ler uma resenha do livro, ela reconheceu que a obra talvez tivesse mais valor do que ela julgara de início, mas não quis anular as suas “primeiras impressões”: “Tenho que reler alguns capítulos. Provavelmente a beleza última da escrita jamais seja sentida pelos contemporâneos; mas eles devem, eu acho, ao menos ficar desconcertados; e isso eu não fiquei”.

T.S. Eliot perguntou a Woolf como alguém poderia escrever novamente depois do prodígio que era o último capítulo de Ulysses. Quase vinte anos depois, em 1941, ela se lembrava da conversa com Eliot sem ainda compreender o entusiasmo do amigo com o livro. Mas, ela também se perguntava: “Devotaríamos nossas vidas a imprimi-lo?” E nós nos perguntamos: reside nessa indagação um sentimento de que a Hogarth Press perdera a oportunidade de publicar uma das principais obras do século 20?

O sr. Bloom e a sra. Dalloway são personagens exemplares da literatura ocidental. Profundas, redondas e surpreendentes sem, no entanto, ofuscarem o cenário dos romances em que aparecem. Antes, integram-se a eles e às demais personagens. Bloom não seria o mesmo sem Dedalus e Dublim; Clarissa não seria a mesma sem Septimus e Londres. Nos dois romances, aprendemos que as pessoas, como as personagens de Sra. Dalloway, estão “ligadas [umas às outras] por um tênue fio que se esticaria mais e mais, se tornaria mais e mais tênue.”

Joyce e Woolf, mestres do romance, souberam criar narrativas tão primorosas do ponto de vista técnico que suas grandes personagens, em vez de imperiosos centros de órbita desinteressados do mundo ao redor, são parte dele e revelam para nós a sua – e a nossa – humanidade.

Nascidos ambos em 1882, Joyce e Woolf morreriam em 1941. Joyce morreu em 13 de janeiro, em um hospital de Zurique, após ter passado por cirurgia em razão de uma úlcera duodenal perfurada. Dois dias depois, Woolf anotou em seu diário: “Então Joyce está morto: Joyce, cerca de duas semanas mais novo do que eu”. Woolf, que já enfrentara diversos colapsos nervosos, matou-se, atirando-se no rio Ouse, em 28 de março.

Vitor Alevato do Amaral leciona Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal Fluminense. Está atualmente trabalhando na tradução dos poemas de ocasião e poemas da juventude de James Joyce. Entre 01 e 03 de fevereiro de 2021, vai ministrar o curso online “Introdução à obra de James Joyce” pelo Espaço Cult.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você

Deixe o seu comentário

TV Cult