Verbo Verde? Literatura & Amazônia

Verbo Verde? Literatura & Amazônia
Vicente Franz Cecim: 'Eu, quando falo do que tento em Literatura, sou um Sonhador Prático' (Foto: Divulgação)

 

Literatura Amazônica?

A mim mesmo pergunto.

E através de mim mesmo busco resposta.

Aqui como que se conta, primeiro, uma história, situada na História.

Sem dúvida o Movimento Surrealista, germinando por Dada, e alucinado pela abertura do chamado Inconsciente por Freud e, na sua mais deslumbrante epifania literária, por Kafka – foi aquilo que ecoou em um Clamor planetário, na Aurora do século 20, no Ocidente, a absoluta necessidade de dar Voz ao Imaginário Humano. Meio milênio antes, o Clamor já havia sido lançado na Idade Média pelas alucinações do Maneirismo, que, assim, fica sendo, deste lado da Terra – a Origem de tudo que veio depois.

Aqui, na Amazônia, e bem exatamente em Santa Maria de Belém do Grão Pará, imersos em naturalismos imitativos dos costumes e miméticas da natureza da região, nasci em uma geração em que alguns de nós – mas não muitos – se sentiam sufocados, olhando a literatura no mundo se reinventando em todos os lugares: além de Kafka, Beckett, Proust, e o Joyce de Finnegans Wake, Ulisses. E por que não – aqui? Anos 1960.

No Brasil, havia o clarão de João Guimarães Rosa, havia o crepúsculo de Clarice Lispector.

Pede um longo ensaio narrar o que entre nós alguns rebeldes esboçaram, tentaram, ou conseguiram fazer.

Com uma Ditadura uivando em nossos calcanhares, de onde estou, agora, observo e interrogo o que eu próprio então tentei.

Me lancei bem no centro do conflito entre o que se chama Tradição & Modernidade e escrevi o primeiro livro visível de Viagem a Andara o O livro invisível, não por acaso com o título A asa e a serpente. E depois de mais dois – Os animais da terra e Os jardins e a noite – sob a rigorosa via que me impus para uma mais ampla, possível ou impossível Libertação, existencial e literária, transformei esses primeiros passos na reflexão crítica e autocrítica lançada no primeiro congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Sbpc, realizado naquela época em Belém: Flagrados em delito contra a noite/Manifesto Curau.

Na via que escolhi, escrevi Atravessar o que nos nega: chegar ao Sim.

Da perspectiva unicamente literária, o que eu queria era que viesse à tona na Amazônia escrita – e não apenas na Amazônia contada pelos seus contadores de histórias – nossa mais legítima Fonte de Invenções – também sua dimensão mítica, sua submersa realidade mítica poética.

Das asas abertas em 1979 a Fonte dos que dormem, publicado recentemente, em 2015, faça as contas. Surgiram dezessete livros. Logo a Viagem a Andara completará quarenta anos.

Dessa travessia guardo, na Memória, fragmentos de um combate.

Que passo adiante, a seguir.

Para atravessar o que nos nega e chegar ao sim

I

Existe um Imaginário Surrealista? E existe um Imaginário Amazônico? A resposta é: Sim. E, ao mesmo tempo: Não. Sim: porque, ao se manifestar no Tempo, na História, em determinada época e em determinado território de cultura, o Imaginário Humano se reveste de aspectos exteriores os mais diversos. A ele aderem os adereços com que vai sendo ataviado. E assim ele se mostra aos nossos Olhos de Ver o Visível. Não: porque, embora se dando em condições exteriores que o revestem, e o atualizam, cada uma a sua maneira, o Imaginário Humano deriva de Matriz Invisível, Una e sempre igual a si mesma, que o institui desde a Atemporalidade das origens formadoras da Vida Visível. Assim: o fato de o vermos em suas manifestações diversificadas, contextualizadas, não nos impedisse, ao mesmo tempo, de pelo menos intuí-lo como pré-existente às suas manifestações dadas aos sentidos humanos. No que nos toca mais de perto, caberia fazer a pergunta: Existe um Surrealismo Amazônico? Existe uma Amazônia Surrealista?

II

Por mim, persisto em minha própria resposta, lançada no Manifesto Curau: Neste Imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós. Bastará deixar que ela nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os individuais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a vida. É preciso dar-se, deliberadamente, a ela. E é preciso insistir: – Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor.

III

Sem esquecermos a advertência: Um lance de dados jamais abolirá o Acaso. Acaso que é sempre Presença-Ausência nas veredas obscuras da Imaginação por onde se lança o homem, europeu ou amazônico, convertido em pura espreita humana, em Demanda de Luz. Para mim, nem rotulados de surrealistas nem de naturalistas, preferia que seguíssemos, por entre o Natural & o Sobrenatural, a senda que um dia defini para mim mesmo com esta frase: A Literatura praticada como Ontologia, a Palavra praticada como Vida.

IV

Eu, quando falo do que tento em Literatura, sou um Sonhador Prático. Não é por sonhar Andara que eu não mantenho um olho aberto sobre as perturbações do mundo visível ao meu redor – quer dizer, sonhar não é se alienar, ao contrário: é um engajamento profundo, lembrando o título de Dostoievski: é um engajamento no Subsolo Humano. O combate essencial em Andara é a subversão da Linguagem, e a emersão de outras realidades submersas – mas não preciso de Freud, porque não me dividido em Consciência e Inconsciência. Como Maiakovski disse: – Comigo a anatomia fica louca, sou todo coração. E através dos livros de Andara, conclamo: – Venham todos para a Consciência Una Esfera que, Imersa na Vida Oceânica, habita onde se dá que, apenas, que quanto mais à tona, mais claro, e quanto mais no fundo, mais escuro. Mas o humano acende luzes interiores para muitas profundidades e alturas.

V

Mas, principalmente, tudo em Andara é demanda de uma Ascensão, ascensão pessoal e levando toda a Floresta Sagrada onde nasci comigo, com suas águas e aves, realidades e sonhos, sofrimentos e esperanças institucionalmente frustradas – indo para a Noite Estrelada de Van Gogh. Nada de antropofagias literárias – mas inclusão literária, estética, do legado humano que nas Artes cintilou. Nesse sentido, digamos que a invenção de Andara é a invenção de universo imaginário mais Medieval do que Moderno. E até mais ancestral, se for legítimo o que disse um crítico francês, lá do Le Monde, Jean de tal, não lembro mais, que passou por aqui e levou uns livros visíveis para Paris, em um e-mail: – Tu escreves como João Evangelista, o Discípulo Dileto. Mas não sou discípulo dileto nem detestado de ninguém: tenho é cúmplices que me precederam e que virão depois de mim como eu vim depois deles: Kafka, Beckett, Guimarães Rosa, Rulfo, Gombrowicz, Bruno Schulz, Céline, Giono, Swift, Cervantes, Gracián – digo com Alegria seus Nomes, e ainda: Vallejo, Lautréamont, Pessoa, Trakl, Celan, Rilke, Novalis, Hoelderlin – esses que eu sempre conclamo na mais fraterna confraternidade.

E aqui, agora – ainda mais uma vez.

Literatura: Escritura: Rarefação

Também guardo, na Memória, os passos mais íntimos, por dentro do Dentro, que venho dando desde aqueles remotos princípios através da Viagem a Andara.

Curioso é que eles começaram no fundo do Profundo, na intenção de abolir toda a palavra na Literatura gerando um livro nãoescrito, o nãolivro Viagem a Andara oO livro invisível. E quando agora atingem a rarefação das palavras, isso parece ser muito – mas não é – porque há muito já estava nesse início, sob a evocação de um cada vez menos, bem menos que apenas essa rarefação.

Por ocasião da publicação dos primeiros livro visíveis de Andara, eu disse:

Prefiro interrogar os limites

e a existência da própria literatura. E insinuar, para além da literatura fantástica, o advento de uma literatura fantasma.

Mais adiante, alguns passos adiante, disse: O natural é

sobrenatural, o sobrenatural é natural. Foi o que o

Andara me revelou.

Ao que depois acrescentei:

Já não faço Literatura: faço Escritura.

Até dar o passo que diz: Andara não é Literatura. É Rarefação.

E sobre o Humano, que em Andara se propõe se buscando além de si: como o umanoH, disse: O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável em que se fixou

para ter o direito de adquirir asas.

 Será durante a sua queda que descobrirá a sua leveza possível.


 

 

suspeito de Si

 

 

pois poderia nem ter sido o que é,

um homem,

não poderia?

 

suspeito de Si,

pois poderia ser,
em uma Floresta Sem Frutos
por onde não passam os homens,

a Raiz
de uma Árvore de Treva,

não poderia? Mistério e luzes, longe

 

 

suspeito de Si,

em seu Jejum de Ninho Branco,

aguarda

que a Ave da V oO z lhe diga tu és Tu

 

 

 

um clarão dentro de um Clarão

 

 

Mente

é por fora,

o dentro

é Eco

florestas e estrelas e o animal que passa e a Face Silenciosa que te vê de Ti,

Mente é por fora

 

Mas se uma foice de lua pende sobre nós,

no Oco ecoam

as Memórias dos caminhos

a Curva das ruínas e um Lamento esquecido

 

uma centelha dentro de um clarão dentro de um Clarão dentro

d oO Clarão

é o Adormecido despertando em Outro Sonho

 

pois sonha Ser,

mesmonãosendo,

o seu Ser Sendo

 

Mesmo não sendo

 

 

Os Jogos Sagrados

 

 

por Sua inocência

e Silêncio,

 

eu me abrigo na Imortalidade desta Árvore que se inclina

 

aqui, agora

 

imerso em Sua Sombra

Também semeado pela Sombra Mais Alta nesta tarde que passa

 

Eu

 

Quem?

 

também

aqui,

 

à sombra da minha Sombra,

salvo na palavra Eternidade nesta tarde que passa,

 

Aqui,

no

Como Se

 

Eu

Como tu

Quem?

 

que lês isto

em tuas manhãs de abrir os olhos para mais um Dia de Mistérios,

 

antes que Anoiteça

 

em nossos Sonhos de Sombras,

 

com um Sorriso Luminoso de Doador de Lágrimas,

da minha Sombra

 

eu saúdo O Vento que detém no ar esta folha que cai,

 

e Te Celebro

***

 

E eis: a tarjada e luminosa e sempre oculta Coisa, a vida, então ali.
Pois,
curiosos para saber o que havia sido feito dos nossos rostos,
fomos procurar
os nossos antigos rostos nas águas dos rios.

Vimos vários rostos passando, levados pelas águas.
Eram os nossos rostos, mas misturados como estavam, e sendo levados juntos para onde não sabíamos, como reavê-los?

Tentei pegar o meu rosto que passava, sorrindo.
Mas as águas eram muito velozes, e só consegui pegar o rosto de um outro, que não era o meu,
e esse rosto, não cabendo em mim, tive que devolvê-lo, chorando, às águas outra vez.

Eu corri muito tempo ao longo do rio, e ao longo das águas,
perseguindo o meu rosto que se afastava.
E, como eu, outros também corriam perseguindo seus rostos naquela água veloz.

Mas o rio terminava num abismo.
E levou, em suas águas, todos os nossos rostos com ele.

Se precipitaram, se desfazendo nas pedras lá embaixo. Os nossos risos e os nossos prantos.

Seivas sempre afloram, por fendas sem esperanças?

Ficamos olhando, com ternura, a espuma branca que se formou dos nossos rostos misturados e perdidos para sempre.

E dizíamos, baixinho, com soluços iguais ao do homem quando ele nos beijou:
– Para sempre, eis que se foram.

E:
– Nunca mais um rosto.
Dizíamos na margem do rio.

 


Vicente Franz Cecim nasceu e vive na Amazônia, Brasil, em Belém, Pará. Sua Escritura se entrega à abolição das fronteiras entre prosa e poesia, demanda o Silêncio, funde Profano e Sagrado, e partindo da Natureza se lança como sede metafísica do Ser da Vida: Atravessar o que nos nega,chegar ao Sim. E é assim que tu verás um S nestes dias cegos. É a inscrição no portal dos seus livros, oposta àquela dantesca que intimida.

Em 1979, com A asa e a serpente, iniciou a obra imaginária Viagem a Andara o O livro invisível, transfiguração da Amazônia em Andara: região-metáfora da vida em que o natural e sobrenatural convivem em mútua epifania. É onde ambienta todos os seus livros. Andara sendo a Amazônia vista com olhos mágicos, como já foi dito, à medida em que, um a um, os livros visíveis de Andara vão sendo escritos como literatura fantástica, desvelam a literatura fantasma do livro invisível de Andara, livro puramente imaginário, do qual só existe o título e que não é escrito – segundo o autor, o não-livro, corpo de um corpo que se sonha.

Em 1980, o segundo livro de Andara, Os animais da terra, recebeu o Prêmio Revelação de Autor da Apca – Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1981, A noite do Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, recebeu Menção Especial no Prêmio Plural, no México. Em 1988, Viagem a Andara (Editora Iluminuras, São Paulo) reunindo os 7 primeiros  livros de Andara recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Apca. Em 1995, Cecim publicou Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, São Paulo) reunindo mais 4 livros visíveis de Andara. Em 2001, quando a invenção de Andara completou 22 anos, publicou Ó Serdespanto (Íman Edições, Lisboa) com 2 novos livros de Andara, apontado pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento do ano – publicado no Brasil em 2006 (Editora Bertrand, Rio de janeiro).

Em 2004 relançou, em versões finais, transcriadas, os 7 primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa  e a serpente e Terra da sombra e do Não (Cejup, Belém). Em 2005, publicou seu primeiro livro em Iconescritura, unindo imagens & palavras, também em Portugal: KO escuro da semente (Ver o Verso, Maia) – publicado no Brasil em 2016 (Editora Letra Selvagem, São Paulo). Em 2008 e 2014 lançou as novas iconescritura o Ó: Desnutrir a pedra (Tessitura, Minas Gerais) e Breve é a febre da terra  (Iap, Belém, Prêmio Haroldo Maranhão de Romance). Em 2015, Fonte dos que dormem (Editora Córrego, São Paulo). Tem inéditos os novos livros de Andara: Coisas escuras procurando a luz com dedos finos cheios de ervas e o O Círculo  suas Rendas de Fogo. Atualmente gera o novo livro visível Oniá  um Lugar cintilante.


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